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Silvio Rodríguez, a voz da Revolução Cubana

Grande nome da Nova Trova cubana, a obra de Silvio Rodríguez constitui uma feliz fusão de revolução, música, poesia e crônica.
Grande nome da Nova Trova cubana, a obra de Silvio Rodríguez constitui uma feliz fusão de revolução, música, poesia e crônica. Por Bruno Ribeiro | Revista Opera
Silvio Rodríguez, Fidel Castro e Pablo Milanés. (Foto: Estudios Revolución)

Numa noite chuvosa, 23 de novembro de 2012, Silvio Rodríguez se apresentou no teatro Luna Park, em Buenos Aires. Era o primeiro dos dois shows que o trovador cubano faria na capital da Argentina, seis meses depois de ter realizado um concerto naquela mesma cidade. Eu estava lá, na fila do gargarejo.

“Que grata surpresa para mim, voltar em tão pouco tempo”, declarou o cantor assim que as luzes se acenderam sobre o palco. Após uma salva de palmas que durou uma eternidade, o artista nos avisou que estava resfriado e pediu que perdoássemos eventuais deslizes da voz. “Não se sintam culpados, pois a gripe veio comigo de Havana.”, informou, para depois arrancar risos. “Mas o clima de Buenos Aires acabou de me destruir”. Da plateia ressoaram os gritos de “Cuba! Cuba! El pueblo te saluda!” 

Alguém, no meio da multidão, sacou uma bandeira de Cuba. Mais perto do palco, outra bandeira cubana apareceu ao lado da bandeira argentina. E depois uma da Venezuela. E do México. E do Brasil. Em poucos minutos, o Luna Park havia se convertido em um grande espaço de confraternização dos povos latino-americanos. Ao meu lado, um jovem casal peruano me disse ter viajado por quase todos os países da América Latina atrás de Silvio.  

Como sucede a poucos artistas ao longo da história, Silvio Rodríguez se converteu em uma espécie de embaixador cultural. Não apenas de seu país, mas de todo um continente, graças ao caráter universal de sua obra e à forma com que suas canções abordam a vida dos pobres, dos trabalhadores, dos amantes e dos que lutam contra as opressões no Terceiro Mundo.

Seu posicionamento político jamais passou despercebido. Na noite anterior ao show, a extrema direita argentina organizou um protesto em frente ao hotel onde estava hospedado o compositor. Entre palavras de ordem como “Fuera, Silvio!” e “Libertad para los cubanos!”, uma bandeira de Cuba foi queimada. 

Na manhã seguinte, o cantor foi recebido na Casa Rosada com honras de chefe de Estado pela presidente Cristina Kirchner — e isso foi o suficiente para que a imprensa portenha publicasse críticas requentadas contra a mandatária argentina. Segundo a cartilha anticubana, em vigor nas redações corporativas do mundo ocidental, o nome de Silvio Rodríguez deve vir sempre associado à “ditadura comunista” e sua obra musical deve ser reduzida a um mero “panfleto político”, mesmo que suas canções nunca tenham tido caráter de marchas ou manifestos.

Se, por um lado, Silvio Rodríguez pode ser considerado sim o grande porta-voz da Revolução Cubana no meio musical, por outro nunca condicionou seu apoio à adesão cega ao regime, sendo possível encontrar, em algumas entrevistas e artigos publicados na internet, críticas pontuais ao governo cubano. Tais críticas, porém, nunca flertaram com a dissidência ou com o anticomunismo, como querem acreditar seus detratores. 

Em seu blog Segunda Cita, o compositor conta como foi demitido do programa musical “Mientras Tanto”, que apresentava na TV cubana em 1968: “Me lembro que nem me convidaram a sentar. Como se estivesse em um tribunal, o novo diretor do Instituto Cubano de Radiodifusão exigiu que eu desse explicações sobre dois episódios acontecidos no programa: um era o suposto elogio que eu teria feito aos Beatles, e outro era o trecho de um filme em que um casal se beijava.”

Quanto aos Beatles, Silvio respondeu que não os via como “agentes do imperialismo”, mas apenas como uma banda de rock que estava “apagando as fronteiras entre a música popular e a música culta”, e que isso era muito bom. Quanto ao beijo, não havia explicação possível. “Eu sabia que cenas de beijo na boca estavam proibidas. Mas, ao mesmo tempo, um beijo era algo tão comum que não vi problemas em passar o filme”, disse.

Por fim, pressionado a assinar uma confissão de culpa e um termo em que prometia ao governo cubano “não voltar a cometer aqueles erros”, Silvio Rodríguez preferiu dizer que não fizera nada de errado e que eles poderiam mandá-lo embora. “Pois, de hoje em diante, a Revolução não precisa mais de você para nada. Saia daqui!”, gritou o diretor. 

O modo ríspido com que foi desligado da emissora fez com que o artista questionasse a validade do apoio que dedicava ao regime desde a tomada do poder pelos revolucionários, em 1959. Silvio via a Revolução como um feito histórico único, concebida por jovens que queriam mudar o mundo, como ele. Estranhava, por isso, as atitudes “caretas” do Partido Comunista.

Cansado de ruminar a mágoa pela forma como fora tratado, decidiu consultar um conhecido psiquiatra para tentar processar o que havia sucedido. No entanto, o médico lhe aconselhou a “esquecer da política e cuidar da própria vida”. Silvio nunca mais pisou no consultório. “Decidi me curar sozinho, assumindo o meu país com todas as suas contradições”, disse.

Silvio Rodríguez termina sua confissão dizendo que, apesar de sofrer grande decepção, nunca pensou em sair de Cuba ou se voltar contra o governo, como fariam alguns de seus companheiros. “Eu não era um dissidente. Tinha um coração socialista e sabia que a Revolução era de quem a sentisse e a abraçasse”, declarou. 

Mesmo assim, em 1969, decidiu passar um tempo fora de Havana. Levando consigo violão, caderno e caneta, integrou-se à tripulação do navio pesqueiro Playa Girón, onde passou cinco meses em alto-mar, tocando e cantando para os pescadores. Com eles cruzou o Oceano Atlântico, conheceu a costa africana e escreveu 62 canções, entre elas “Ojalá“, que se tornaria um clássico de seu repertório.

Mais tarde, por conta desta canção, acusaram-no de fazer “música contrarrevolucionária”. Na opinião de alguns dirigentes comunistas, os versos carregados de metáforas em “Ojalá” só poderiam ter sido endereçados a Fidel Castro, líder supremo da Revolução Cubana:

“Ojalá que la aurora no de gritos que caigan en mi espalda
Ojalá que tu nombre se le olvide a esa voz
Ojalá las paredes no retengan tu ruido de camino cansado
Ojalá que el deseo se vaya tras de ti
A tu viejo gobierno de difuntos y flores.”

Anos mais tarde, Silvio Rodríguez esclareceu a polêmica: “Esta canção foi escrita pra uma mulher. Um amor que tive quando estava no exército, cumprindo o serviço militar. Ela era uma garota muito mais evoluída do que eu, mais inteligente, mais culta. Me ensinou, por exemplo, César Vallejo. Aí a gente teve que nos separar, ela voltou para sua cidade, Camagüey, e fiquei sozinho em Havana, desolado. Os anos se passaram e a memória daquele amor ficou feito um fantasma. E porque foi um amor frustrado, quebrado pelas circunstâncias da vida, foi algo que não se esgotou totalmente.”

Silvio viria a superar o episódio de sua demissão mais tarde, ao descobrir que o funcionário do governo — aquele que o demitira por causa dos Beatles —, tinha todos os discos do grupo e os escutava escondido. O músico compreendeu ali que o conservadorismo, na cultura e nos costumes, estava com os dias contados. Seria impossível conter o desejo da juventude de imprimir a sua própria marca na construção de uma nova sociedade. 

A Nova Trova Cubana

Nascido em 29 de novembro de 1946, em San Antonio de Los Baños, Silvio Rodríguez Dominguez é o maior expoente da moderna música cubana. Ao lado de Pablo Milanés, Noel Nicola, Sara González e outros jovens compositores, ajudou a dar corpo e alma ao movimento conhecido como Nova Trova, deflagrado em 1972 e marcado por canções geralmente politizadas, portadoras de mensagens alinhadas a uma visão de mundo socialista, mas que valorizavam a poesia em lugar do discurso estritamente ideológico. Musicalmente, a Nova Trova rompia com as formas tradicionais do danzón e do bolero para assumir influências do rock, do jazz e da música brasileira.

Em 1970, Silvio teria ouvido de um produtor musical que ele poderia se tornar um “pop star” em poucos meses, caso deixasse de cantar “canções tão estranhas”. O trovador rebateu dizendo que jamais desejou ser uma estrela da música e que “a canção tem que ser colocada em contato direto com a realidade, deve comunicar-se com os interesses básicos do homem. Nisto reside, para mim, a eficácia fundamental da música. Compor por compor, cantar por cantar, são coisas que nunca compreendi.”

Mas a estranheza inicial que a Nova Trova causou aos ouvidos mais ortodoxos não durou muito. O próprio governo, ao perceber que a rebeldia daquela geração de músicos e seu desejo de romper com o passado para criar seu próprio caminho estava em sintonia com o espírito revolucionário da “nova sociedade cubana”, interessou-se em encontrar um campo cultural em comum com outros países do continente. O apoio ao movimento foi benéfico para ambas as partes.

Um dos eventos determinantes para essa mudança de postura do governo em relação aos jovens músicos cubanos foi o concerto que Victor Jara, Isabel Parra e o grupo Inti Illimani, do Chile, fizeram em 1971 na Casa de Las Américas, em Havana. A canção de protesto latino-americana estava na crista da onda. Artistas que agregavam conteúdo político à canções de raiz popular e folclórica faziam muito sucesso entre a juventude engajada, inclusive no Brasil. 

O despertar da consciência

Silvio Rodríguez era um adolescente de 13 anos quando os guerrilheiros liderados por Fidel Castro derrubaram pelas armas o ditador Fulgêncio Batista e tomaram o poder em Cuba. Pouco depois, empolgado com a Revolução e sua promessa de criar uma sociedade justa e igualitária, onde todos fossem solidários e se tratassem como irmãos, juntou-se à Brigada Conrado Benitez de Alfabetização, programa criado em 1961 para ensinar famílias pobres a ler e a escrever.

É possível dizer que sua formação como ativista social tem início na zona montanhosa de Escambray, onde passa um ano imerso na tarefa de alfabetizar camponeses e soldados. Durante este período de intensas descobertas, Silvio mora na casa de uma família camponesa e conhece de perto a realidade miserável de um povo submetido a séculos de colonialismo espanhol e a sucessivas ditaduras chefiadas por títeres dos Estados Unidos.

O próprio artista reconhece que a tarefa desempenhada nas brigadas de alfabetização representa o despertar de sua consciência política. “Minha primeira ideia era ir à Sierra Maestra. Os jovens tinham a imagem da epopeia da guerrilha muito fresca nas mentes. Se os guerrilheiros libertaram o país pela luta armada, queríamos libertá-lo quebrando as correntes do analfabetismo”, declara o compositor no filme “Silvio Rodríguez: Mi Primera Tarea”, da norte-americana Catherine Murphy.

Em Cuba, o modelo de “homem novo”, criado por Ernesto Che Guevara, consistia na perspectiva de uma nova mentalidade, em que os valores humanos estavam à frente dos valores do mercado. Uma consciência coletiva que levaria à superação do individualismo por meio da educação. Assim, cada cubano, independente de sua profissão ou classe social, realizaria as tarefas diárias como se fosse um guerrilheiro, colocando a pátria e o povo acima dos interesses pessoais. 

Os artistas da Nova Trova se sentiram entusiasmados com a possibilidade de ajudar a construir as bases para o surgimento do “homem novo” — apesar de musicalmente estarem distantes do realismo socialista soviético, que pautava esteticamente as ações de propaganda do governo cubano. Apesar desta discordância pontual, o desejo de “mudar o mundo” leva Silvio Rodríguez e outros jovens de sua idade à missão de alfabetizar. 

A temporada como voluntário na brigada o marca profundamente. Antes, Silvio considerava improvável que pudesse haver gente vivendo em condições piores do que a de seus pais, agricultores pobres que trabalhavam em lavouras de tabaco. O contato direto com a miséria em Escambray preencheu seu espírito com a carga de indignação necessária à criação artística (cinco anos mais tarde, a composição daria vazão ao seu inconformismo quando o rapaz, um soldado raso cumprindo o serviço militar obrigatório, aprende a tocar violão no quartel).

Che Guevara é assassinado na Bolívia, em 9 outubro de 1967. Horas depois, Silvio compõe “Fusil contra Fusil” e “La Era Está Pariendo un Corazón”, em honra ao mítico guerrilheiro. Não seriam as únicas de sua lavra a citar o homem a quem mais cantou em sua obra: “Hombre” e “América, Te Hablo de Ernesto” seriam compostas alguns anos mais tarde.

“Che não influenciou apenas a minha arte, mas a minha pessoa. Eu não estava convencido do internacionalismo guerrilheiro, a princípio. Pensava que havia muito o que consertar em Cuba e que era um erro se lançar ao mundo, com tanto por fazer. Porém, depois que o Che morreu, percebi a força de seu exemplo e isso despertou em mim o desejo de imitá-lo. Parece absurdo, porque sua morte implicava certo fracasso de suas ideias. Mas assim funcionou, pelo menos pra mim”, disse em entrevista ao Página12

“La Era Está Pariendo un Corazón” é talvez a canção mais bonita dentre todas as que foram dedicadas ao Che. Ela, porém, não cita o seu nome, preferindo uma abordagem mais lírica e atemporal — o que facilitou, talvez, para que fosse gravada pela diva Omara Portuondo, em registro antológico. A letra descreve a terra que chora a morte do guerrilheiro, um homem do povo que deixa o conforto do sofá para lutar pelos explorados em qualquer parte do mundo:

“Debo dejar la casa y el sillón
La madre vive hasta que muere el sol
Y hay que quemar el cielo
Si es preciso, por vivir
Por cualquier hombre del mundo
Por cualquier casa.”

Poeta e guerrilheiro

Em 1975, Silvio grava seu primeiro elepê, “Dias y Flores”, onde se destacam as faixas “Playa Girón” e “Santiago de Chile” — esta em referência ao golpe militar que derrubou Salvador Allende e interrompeu a promissora experiência socialista em território chileno. O disco seria proibido na Espanha, durante o franquismo, e no Chile, sob a ditadura de Augusto Pinochet. 

Em 1976, o compositor já era um artista reconhecido quando se alistou para lutar junto dos internacionalistas cubanos na guerra civil de Angola. Além de prestar apoio no treinamento das forças guerrilheiras do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), comandadas por Agostinho Neto, Cuba enviou ao país africano mais de trinta mil combatentes, entre soldados, professores, médicos e… músicos. 

Na carta endereçada ao governo, na qual solicita que o envie à guerra como voluntário da recém-criada Brigada Artística, Silvio Rodríguez escreve: “Creio que posso ser útil na elaboração de textos e, claro, de músicas e canções. Informo que farei todo o possível por esta decisão. O caminho está escolhido com serenidade e sem romantismo.”

Vários nomes da Nova Trova, entre eles Pablo Milanés, Vicente Feliú, Lázaro Garcia, Noel Nicola e Silvio Rodríguez, cumpriam um papel bastante específico no conflito: além de compor e interpretar canções sobre os acontecimentos sociais e políticos angolanos, estavam de prontidão para entrar em combate, como todos ali. Silvio andava munido de seu violão e de uma AK-47, o lendário fuzil de fabricação soviética. 

Voltou a Cuba com algumas canções inéditas na mala, como “La Gaviota”, que descreve sua própria epifania ao ver uma gaivota riscando o céu, alheia à destruição causada pela guerra lá embaixo: 

“Corrían los días de a fines de guerra
había un soldado regresando intacto:
intacto del frío mortal de la tierra,
intacto de flores de horror en su cuarto
Elevó los ojos, respiró profundo,
la palabra cielo se hizo en su boca
y como si no hubiera más en el mundo
por el firmamento pasó una gaviota.”

Mais de dois mil cubanos morreram em Angola, mas a imagem de Cuba como um país solidário, capaz de arriscar a vida de seus próprios compatriotas para ajudar na libertação de um país estrangeiro acossado por um regime racista, saía fortalecida da incursão militar. Em 2007, a África do Sul inaugurou, na capital Pretória, um monumento dedicado à memória dos mortos nas guerras contra o Apartheid. O Muro dos Nomes incluía o nome dos 2.103 cubanos que perderam suas vidas em solo africano. Cuba é o único país estrangeiro representado no memorial.

O retorno dos compositores da Nova Trova à “vida normal” começaria a se dar em 1979. No Brasil, o desprendimento dos músicos cubanos era visto com admiração pelos estudantes e por seus colegas de ofício. Chico Buarque foi o primeiro brasileiro a gravar Silvio Rodríguez ao incluir “Pequeña Serenata Diurna” em seu disco de 1978. Milton Nascimento foi ainda mais longe: chamou a argentina Mercedes Sosa para dividir com ele “Sueño con Serpientes“, em 1980.  

O álbum mais emblemático da discografia de Silvio, “Al Final de Este Viaje”, foi lançado em 1978, logo após sua participação na guerra de Angola. Gravado inteiramente no formato voz e violão, traz canções compostas entre 1968 e 1970, como “Canción del Elegido“, que abre o disco com uma homenagem a Abel Santamaría, jovem patriota assassinado pela ditadura de Batista; “La Família, La Propriedad Privada y El Amor“, que critica a futilidade e o falso moralismo da burguesia; e “Debo Partirme en Dos“, que ironiza a cobrança dos críticos em relação ao seu posicionamento político. 

Na década de 1980, Silvio cumpre uma intensa agenda de shows pela América Latina e pela Europa. Sua carreira internacional ganha corpo. É dessa época o álbum “Unicornio”, que inclui a canção do mesmo título e veio a ser o maior sucesso de sua carreira (Ney Matogrosso acaba de regravá-la em seu novo disco). A letra, enigmática, fala de um unicórnio azul que desaparece sem deixar rastros. A interpretação do que seja o unicórnio é livre. Pode ser o fim de um amor ou de um sonho. 

Lançado em 1982, o disco trazia ainda “Canción Urgente para Nicarágua“, em homenagem à Revolução Sandinista, ocorrida no país centro-americano três anos antes; “La Maza“, que em ritmo de chacarera argentina seria gravada por Mercedes Sosa; e “Por Quien Merece Amor“, em referência ao internacionalismo cubano e seu “amor pela humanidade”. A canção faz uma crítica velada aos Estados Unidos, cujo ódio ao “amor da juventude” seria despertado pelo caráter solidário da pequena ilha caribenha.

Com a dissolução do bloco socialista no Leste Europeu, a década de 1990 é particularmente cruel para com o povo cubano. Sem poder contar com o apoio militar e econômico da União Soviética, Cuba se torna um alvo fácil do império ianque: com o intuito de sufocar a economia da ilha, os Estados Unidos recrudescem o bloqueio e voltam a financiar grupos contrarrevolucionários de extrema direita com sede em Miami, à exemplo do que tinham feito nos primeiros anos da Revolução. A década de 1990 é marcada por uma série de atentados terroristas que visavam prejudicar a indústria do turismo.

Não era a primeira vez que Cuba sofria com ataques terroristas. Em 1976, o exilado Luis Posada Carriles, agente da CIA e membro da associação neofascista Fundación Nacional Cubano-Americana, planejou e levou a cabo, juntamente com Orlando Bosch, um atentado contra o voo 455 da empresa Cubana de Aviação. Na ocasião, 73 pessoas morreram, incluindo toda a equipe juvenil cubana de esgrima, que retornava da Venezuela após disputar um campeonato. A diferença é que a partir de 1990 os atentados passam a acontecer em território cubano. 

Em 1997, o dissidente Raul Cruz León, a serviço de Carriles, plantou uma bomba na recepção do Hotel Copacabana, em Havana. A explosão causou a morte do turista italiano Fabio Di Celmo, de 32 anos. Um ano depois, desde sua mansão na Flórida, Carriles era entrevistado pelo New York Times. Justificou o atentado dizendo que se tratava de um “ato de guerra” contra a “ditadura comunista”. O terrorista morreu em 2018, aos 90 anos, protegido pelo governo estadunidense e sem pagar pelos crimes que cometeu.

A obra de Silvio, ao longo da década de 1990, reflete o clima denso do “período especial” provocado pelo fim da ajuda soviética e pelo acirramento do bloqueio contra Cuba. A depressão econômica advinda de tais ocorrências foi a mais grave da história cubana pós-revolução e ficou marcada pela escassez de gasolina, diesel e derivados de petróleo, bem como de roupas e alimentos. O período transformou radicalmente a sociedade cubana, forçando-a a viver sem muitos bens materiais. 

O trabalho de maior destaque do compositor neste período é a trilogia que começa com “Silvio” (1992), passa por “Rodríguez” (1994) e culmina com “Domínguez” (1996). As canções destes álbuns foram as últimas a obter grande repercussão popular e a entrar para a lista de hits obrigatórios de sua discografia. Destacam-se “El Necio“, em que reafirma sua crença nos princípios revolucionários; “Quién Fuera“, que homenageia personalidades como John Lennon, Violeta Parra e Chico Buarque; e “La Guitarra del Joven Soldado“, que evoca o tempo de recruta do exército cubano. 

Dentre as músicas que não fizeram sucesso, mas que merecem uma audição atenta, está “Reino de Todavía”, que aborda a situação entre Cuba e Estados Unidos e, de certa forma, a oposição entre socialismo e capitalismo:

“Dios le llaman algunos, otros Comercio
Mas para mi es el Reino de Todavía
Balseros, navidades, absolutismo
Bautismos, testamentos, odio y ternura
Nadie sabe qué cosa es el comunismo
Y eso puede ser pasto de la censura.”

O socialismo é inegociável

No concerto que realizou no Luna Park, em 2012, aquele do qual fui testemunha ocular, Silvio Rodríguez falou rapidamente sobre seu processo de composição e definiu-se como um “cronista” de seu tempo. Depois cantou “San Petersburgo“, música recente nascida de uma conversa casual com o escritor Gabriel García Márquez durante um voo de Cuba para o México. 

“Gabo me disse que, às vezes, vinham-lhe à mente ideias curtas, que não podiam ser aproveitadas em contos, mas que ele gostaria de aproveitá-las em forma de canções, caso soubesse fazer canções. Passamos a viagem filosofando sobre isso”, contou o compositor.

No hotel, Silvio desenvolveu uma dessas pequenas ideias anotadas por Garcia Márquez: era sobre uma noiva abandonada no altar. Mas a letra, que poderia ser banal a julgar pelo tema, veio-lhe com elementos da literatura russa, mais especificamente de Alexander Pushkin, um de seus autores favoritos. O resultado é uma canção repleta de imagens que se sucedem, aparentemente desvinculadas (como num sonho), mas que encontram sentido comum no arremate final.

Talvez esta seja a grande diferença de Silvio Rodríguez para a maioria dos letristas da geração atual: a de ser, acima de tudo, um compositor comprometido com a poesia e com a crônica, unidas em forma de canção. Quem diz que uma letra de música não pode ser considerada literatura desconhece a obra do autor cubano. E não é difícil chegar a esta conclusão, bastando para isso ter acesso ao seu compêndio de letras, “Cancionero”, publicado pelo Instituto Cubano do Livro. Mesmo desacompanhadas de suas respectivas melodias, as letras se sustentam como poemas, sem perder a força das mensagens.

Como cronista, há cinquenta anos Silvio Rodríguez tem cantado as transformações pelas quais passou o seu país e o mundo, ao longo do século XX e do século presente. Não só as transformações de ordem política e social, mas também as comportamentais. Ele canta as revoluções e seus personagens, a pátria, os amores e os pequenos e grandes dramas existenciais da alma humana. 

Aos 76 anos de idade, o artista continua produtivo. Pouco antes da chegada da pandemia, mantinha uma agenda de shows mensais e gratuitos à população cubana. Desde 2010, sem fazer propaganda e sem contar com grandes apoios, vinha percorrendo os bairros mais pobres da ilha, como um missionário a levar canções da Nova Trova a uma geração hoje mais afeita ao rap e ao reggaeton. 

Silvio chegava com sua equipe, armava o modesto palco em local público, estendia uma enorme bandeira de Cuba ao fundo e cantava para as pessoas. Entre uma canção e outra, falava da importância de se preservar as conquistas do socialismo, apesar das mudanças provocadas pela massificação das redes sociais e pela abertura do regime em relação à iniciativa privada. O projeto, que ele chama de “giro pelos bairros”, contava com mais de cem apresentações quando foi interrompido pelo novo coronavírus. 

Dono de uma carreira internacional sólida e bem remunerada, Silvio Rodríguez não precisava, em teoria, apresentar-se de graça em vilarejos pobres e afastados dos grandes centros urbanos. Contudo, afirma que não poderia agir diferente tendo dentro de si o ideário socialista ainda muito vivo. “Ao triunfo da Revolução, havia gente em Cuba que nunca havia ido a um cinema, nem sequer sabia o que era. Alfredo Guevara, fundador do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos, comprou caminhões com projetores e os fazia subir as montanhas para mostrar a sétima arte a pessoas que não poderiam nem sonhar com isto. Minha adolescência transcorreu em uma realidade onde a arte e os artistas estavam em função social. Havia uma filosofia de generosidade. Foi essa realidade que me formou”, afirmou em entrevista publicada em seu blog.

Aproveitando a paralisação temporária do “giro pelos bairros”, o músico lançou no ano passado seu álbum mais recente, “Para La Espera”, dedicado a sete personalidades latino-americanas que morreram vítimas da Covid-19, dentre os quais o cineasta Tupac Pinilla Nuñez e o cartunista Juan Padrón. A faixa “Danzón para la Espera”, carro-chefe do disco, ganhou videoclipe feito com celular durante a quarentena. As imagens captam toda a beleza natural que circunda sua casa de praia em Santa Cruz del Norte, escoltada por montanhas e banhada pelo verde mar do Caribe. 

Bastou para que o artista voltasse a apanhar, tanto da direita (que o acusou de “defender o comunismo para os outros, enquanto passa as férias numa mansão de frente pro mar”), quanto da esquerda (para quem o cantor “deixara para trás seu compromisso revolucionário, rendendo-se aos luxos capitalistas em meio à grave crise que assola o país”). As críticas ficaram sem resposta.

Silvio tem preferido manter um comportamento mais discreto junto à imprensa. Quando questionado sobre a razão pela qual não se mete mais nos assuntos políticos com a gana de ontem, responde que sua vida e sua obra falam por ele. Em seu blog, atualizado quase que diariamente pelo próprio cantor, deixa claro o que pensa a respeito de diversos temas. Escreveu recentemente que Cuba não pode abrir mão do socialismo, mas precisa “meditar sobre a situação atual”.

Ao contrário de Pablo Milanés — que foi de “garoto-propaganda de Fidel” a opositor do regime —, Silvio Rodríguez não correu a defender os manifestantes cubanos que, no começo de o começo de julho deste ano, foram ido às ruas de todo o país com pautas difusas e não muito claras, à exemplo do que ocorreu no Brasil em 2013. Curiosamente, os protestos tiveram início em San Antonio de Los Baños, sua cidade natal. 

Silvio mandou um recado ao governo do presidente Miguel Díaz-Canel ao dizer que “ser autocrítico é imprescindível para avançar” e que “assim como a vida, a política também está em constante construção”. No entanto, alertou para o caráter anticomunista dos protestos e voltou a dizer que “as conquistas da Revolução são inegociáveis”.

A lembrança mais nítida que guardo de Silvio Rodríguez, no palco do Luna Park, é a do artista que, ao se despedir das cinco mil pessoas que se deslocaram de várias partes da América Latina para vê-lo, tratou-as como velhas conhecidas: “Eu sei quem vocês são, apesar de não nos conhecermos pessoalmente. Para mim é sempre muito gratificante rever amigos. Boa noite, companheiros.”

Ao jornal mexicano La Jornada, o trovador cubano declarou que não tinha a pretensão de ser lembrado após a morte. “Gostaria de inscrever em meu epitáfio uma frase cunhada por John Keats: ‘Aqui jaz alguém cujo nome foi escrito na água'”. Felizmente, sua obra não permitirá que isso aconteça.

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