Nos dias 11 e 12 de julho, em meio a um aumento de casos de Covid-19 e num contexto de declínio econômico, manifestantes saíram às ruas de algumas cidades de Cuba para protestar, com queixas que iam das crises de abastecimento e energia que a ilha vem vivendo a contestações do sistema político-econômico do país, sob motes contrarrevolucionários como “Patria y Vida”. Houve atos de desordem pública, como ataques contra veículos privados, instituições estatais e casas, e saques de mercados e lojas. O número de detidos é incerto – o governo cubano não divulgou dados, mas contesta a lista de organizações anticastristas que dão conta de 500 detidos – e houve ao menos um morto, Diubis Laurencio Tejeda, de 36 anos, durante um conflito com a polícia.
As manifestações foram rapidamente respondidas pelo presidente Miguel Diáz-Canel, que convocou o povo cubano a tomar as ruas em contra-protestos. Nos grandes veículos de imprensa, no entanto, enquanto as primeiras foram tomadas com grande entusiasmo, com a expectativa de que fossem um crepúsculo da derrubada do socialismo, os atos em apoio ao governo e à revolução foram ignorados.
Desde então, apesar de Cuba ter se tornado manchete e tema de disputas nas redes sociais – e de sua embaixada na França ter sofrido um atentado a coquetéis molotov – a situação parece ter se acalmado na ilha. Novas manifestações não sucederam, mas o governo de Joe Biden, além de descumprir a promessa de reverter as medidas do governo Trump de ampliação do bloqueio contra Cuba, anunciou uma série de novas sanções contra a Polícia Nacional Revolucionária, as Forças Armadas Revolucionárias Cubanas e a Brigada Especial do Ministério do Interior de Cuba pela “repressão dos protestos pacíficos iniciados em 11 de julho”, de acordo com a nota do Secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken.
Para discutir os protestos, o impacto do bloqueio norte-americano contra a ilha e a situação econômica de Cuba, a Revista Opera conversou com o historiador, escritor, tradutor e professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP) Luiz Bernardo Pericás, autor de “Che Guevara e o debate econômico em Cuba” (Boitempo), que atualmente trabalha em um livro sobre a guerrilha de Che na Bolívia, a ser publicado no ano que vem.
Revista Opera: Recentemente, no dia 11 de julho, estouraram manifestações em algumas cidades de Cuba, a princípio em San Antonio de los Baños. O sr. escreveu um artigo para o Blog da Boitempo com uma perspectiva um pouco mais crítica aos protestos do que a que a que a gente está vendo, por exemplo, em muito da intelectualidade de esquerda do Primeiro Mundo, digamos assim. Gostaria de começar falando um pouco sobre sua avaliação sobre os protestos.
Luiz Bernardo Pericás: Tenho lido várias matérias (tanto da grande imprensa como da mídia alternativa) sobre esses acontecimentos. E de fato, como você está dizendo, alguns comentaristas de “esquerda” expressaram opiniões bem críticas em relação ao governo cubano, muitas vezes fazendo coro às versões que estão circulando em revistas e jornais de direita. E isso, a meu ver, é algo bastante problemático, especialmente no atual momento, em que Cuba precisa de todo o apoio das forças progressistas de nosso continente.
Para começar, é preciso recordar que o mundo inteiro vive uma pandemia sem precedentes, que está afetando a situação econômica de todas as nações (é só verificar o caso do Brasil, por exemplo, com altas taxas de desemprego, o aprofundamento da precarização do trabalho e um processo crescente de uberização, sem contar com o grande número de infectados e de óbitos pela Covid-19).
As questões que envolvem especificamente a “mayor de las Antillas” na atualidade são múltiplas. Em 2020 o PIB cubano encolheu cerca de 11%. Além disso, boa parte do que o país consome é importada. Há escassez de remédios; o número de voos internacionais diminuiu bastante; e o turismo (que é um setor muito importante) foi extremamente afetado neste período. Por outro lado, a remessa de dólares do exterior (principalmente de cubanos e de cubano-americanos que vivem nos Estados Unidos) teve uma redução significativa. Para completar, a produção de açúcar foi afetada recentemente por uma seca severa. Vale lembrar que o país, historicamente, sofre com a passagem recorrente de furacões e tempestades tropicais e com a incidência de pragas agrícolas e de estiagens, que constantemente assolam o campo; ou seja, tudo isso pode ser incluído neste espectro de dificuldades (além, é claro, do próprio bloqueio comercial norte-americano, que se agravou substancialmente durante o governo Trump).
Em relação às manifestações, é necessário observar primeiro como os meios de comunicação têm descrito aqueles acontecimentos. Nunca é demais ressaltar a maneira tendenciosa e imprecisa com que a mídia internacional abordou esses episódios. Diferentes órgãos de imprensa, por exemplo, apresentaram números muito díspares em relação ao tamanho das passeatas. As cifras foram bem divergentes: alguns sites diziam que havia em média entre 200 e 500 indivíduos nas ruas; para determinados jornais, por sua vez, seriam entre dois mil e três mil; e ainda outros periódicos que insistiam que aqueles atos contavam com mais de cinco mil pessoas. A quantidade de locais que foram palco desses “protestos” também varia muito de acordo com a fonte: li artigos que afirmaram que as passeatas ocorreram em doze cidades; outras reportagens, contudo, indicaram 40, 60 e até mesmo 80 municípios do país. Ou seja, há muita desinformação. Por isso, temos que começar a prestar muita atenção no que está por trás dessas narrativas, procurar saber quem comanda as empresas de comunicação, que interesses estão envolvidos, quais são as relações e conexões políticas de algumas das lideranças das mobilizações, quem financia e apoia esses grupos “dissidentes” dentro e fora de Cuba, etc.
Não podemos ter a ingenuidade de acreditar que todos esses atos “surgiram” espontaneamente, ao mesmo tempo. Isso para não falar em “protestos” ocorrendo paralelamente em algumas localidades da Flórida! Quando o governo norte-americano imediatamente se pronunciou em apoio aos manifestantes, tudo pareceu se encaixar. Não estou dizendo que não haja insatisfação no país. Apenas que aquelas passeatas específicas não representaram a maioria da população cubana (mesmo que, no meio delas, por certo, se encontrassem cidadãos comuns, sem ligação com coletivos oposicionistas).
Por sinal, quando o governo convocou seus apoiadores para que fossem às ruas, houve uma resposta muito forte – e essas mobilizações pró-revolução (que em números absolutos receberam mais participantes) praticamente foram ignoradas pela imprensa de outros países. Várias destas iniciativas, que lotaram praças e avenidas, simplesmente não foram noticiadas. E Díaz-Canel, pessoalmente, liderou as caminhadas, sendo aclamado pelos transeuntes.
É preciso, portanto, ter muito cuidado com o que está sendo difundido. Está ocorrendo uma guerra híbrida, não convencional, contra Cuba. O desejo constante do Departamento de Estado, da CIA e da Casa Branca é o de preservar e ampliar os interesses dos EUA em todas as partes do planeta, através de propaganda, financiamento de opositores, ações militares e atentados. O objetivo, em última instância, é sempre o regime change (mudança de regime). A manipulação dos fatos, com a utilização dos meios de comunicação para, de alguma forma, confundir e desinformar o público, é um padrão recorrente. Por isso, não custa lembrar das chamadas “revoluções coloridas” ou dos episódios na Bolívia e na Venezuela, contra Evo e Maduro. No continente americano, especificamente, a OEA, as grandes redes de comunicação da mídia corporativa e o empresariado local estão sempre dispostos a reforçar o discurso contra os governos populares e a incentivar golpes promovidos pelas elites da região.
Revista Opera: No início desse ano Cuba passou a levar adiante a chamada “Tarefa Ordenamento”, com um novo plano econômico que, entre outras coisas – talvez o principal ponto, podemos dizer – traz a unificação monetária e cambial, com a extinção do peso convertível, o CUC. Como você vê essa unificação, e até que ponto crê que poderia melhorar as condições da ilha – e também em que medida o sr. acha que isso se relaciona com as manifestações na ilha ou com o aumento da insatisfação, com o impacto econômico que Cuba tem sofrido desde o aumento das sanções pelo Trump – agora com novas sanções de Biden – e o próprio efeito econômico da pandemia?
Luiz Bernardo Pericás: Desde o triunfo da revolução em 1959 até os dias de hoje, o governo cubano constantemente tentou construir um sistema que pudesse melhorar a vida da população, e que ao mesmo tempo fosse adaptado não só às características locais, mas àquelas de cada época específica, com todas as dificuldades inerentes ao processo e nem sempre obtendo o êxito desejado. De qualquer forma, mudanças de rumo nos direcionamentos econômicos, assim como tentativas de ampliar a eficiência em termos administrativos, são vetores que podem ser identificados desde o início da década de 1960. É só lembrar do famoso debate econômico, em que o então ministro de Indústrias Che Guevara se destacou (mas no qual vários outros dirigentes e intelectuais também participaram). E das discussões mais amplas sobre o Sistema Orçamentário de Financiamento e o Cálculo Econômico (a autogestão financeira); a conversão da maquinaria da ilha para o sistema soviético; a qualificação técnica dos trabalhadores cubanos; a preocupação com os setores agrícola e industrial; a questão do emprego e dos sindicatos; as negociações com diversos países para ampliar os acordos comerciais com a comunidade internacional; e a fundação do novo Partido Comunista Cubano (a partir de um processo de criação e depuração de organizações políticas como as ORI e depois, o PURS).
Na década de 1970 houve um amplo processo de reorganização do país em diversos aspectos: foi promulgada uma nova Constituição; instituída a Assembleia Nacional do Poder Popular; o Conselho de Ministros foi reestruturado; e ocorreram eventos importantes, como o I Congresso do PCC, o III Congresso da UJC, o V Congresso da Associação Nacional dos Pequenos Agricultores (ANAP) e o I Congresso dos Comitês de Defesa da Revolução (CDR). Foi estabelecido o chamado Sistema de Direção e Planificação da Economia (SDPE); houve uma remodelação da Junta Central de Planificação (JUCEPLAN); e também o ingresso de Cuba no Conselho para Assistência Econômica Mútua (CAME ou COMECON). Tudo isso mostra que o país estava recorrentemente tentando se adaptar às necessidades do momento histórico em que vivia.
Em meados dos anos 1980, por sua vez, Cuba passou por dificuldades (se comparado ao período imediatamente anterior), com uma recessão que começou em torno de 1986. Fidel, naquele momento, impulsionou o que chamava de “processo de retificação de erros e correção de tendências negativas”, ou seja, um redirecionamento dos rumos da economia, se distanciando em grande medida de mecanismos de mercado. Com a queda do muro de Berlim e em seguida, com o fim da União Soviética, veio o chamado “período especial” e Cuba teve de enfrentar novas questões, desta vez, mais difíceis ainda.
Hoje o país precisa lidar com dilemas que dizem respeito às especificidades da conjuntura interna e mundial da atualidade. É mais um episódio da vida política e econômica cubana, que deverá ser superado. O que o governo em Havana tenta fazer é equilibrar todas as diferentes variáveis. E tem realizado isso com cuidado, da maneira mais hábil possível. Afinal, de um lado se tem todas as conquistas da revolução, construídas ao longo das décadas – e isso custa dinheiro; há investimentos significativos em setores sociais que devem permanecer – e de outro, a necessidade de criação de mecanismos que garantam maior eficiência global.
A questão da convivência de duas moedas em Cuba e todas as suas implicações, por exemplo, estava sendo discutida havia muito tempo. A intenção de unificação monetária, portanto, não é algo novo. Ou seja, esse projeto não foi decidido de um momento para o outro: estava na pauta de intelectuais, economistas e membros do governo por vários anos. Nada disso foi feito de forma improvisada e apressada. Muito pelo contrário. O fato é que os dirigentes estão tentando buscar caminhos que tornem o processo de transição o menos traumático possível. Em outras palavras, a implementação de mudanças que possam fazer com que o país comece a se adaptar a um novo formato econômico-financeiro sem que se elimine o que já está construído, preservando o socialismo. Há quem defenda a abertura total e a adoção plena de uma economia de mercado, com o retorno do capitalismo, juntamente com a imposição de um modelo político pluripartidário que permitisse que agremiações de caráter contrarrevolucionário (que receberiam, por certo, muitos aportes materiais dos norte-americanos) pudessem participar de eleições (que, por sinal, teriam de estar em conformidade com um formato ditado por organismos internacionais). Essa é a postura de muitos dos grupos financiados por Washington. E, como se sabe, o sonho da Casa Branca é que Cuba volte a ser um apêndice dos EUA (algo que, creio eu, os cubanos nunca permitirão).
É bom ressaltar que essas mudanças, as mais recentes, estão sendo discutidas pelo menos desde 2011. E com intensos diálogos entre acadêmicos e intelectuais sobre uma série de temas: o papel dos cuentapropistas, as cooperativas, a moeda, a questão ambiental. Isso para não falar da promulgação de uma nova Constituição, a partir de um amplo debate democrático em toda a ilha.
Obviamente, diferentes fatores geraram uma situação que pode provocar alguma instabilidade: houve a eliminação de subsídios de certos itens, o aumento de tarifas, a ampliação do mercado paralelo, a elevação da inflação e o estrangulamento do pequeno e médio setor privado (especialmente aquele ligado ao turismo, que sofreu com a perda de empregos diretos e indiretos). E tudo isso, agregado ao fato de haver menos produtos nas prateleiras, com o embargo cada vez mais sufocando a economia e com a ampliação do número de casos de contágio na pandemia do novo coronavírus em pontos localizados, especialmente Matanzas (uma situação que, apesar de tudo, comparativamente, afeta muito menos Cuba do que a maioria das nações; ainda assim, o país está desenvolvendo cinco vacinas contra a doença, a Soberana 1, Soberana 2, Soberana Plus, Mambisa e Abdala; esta última, com uma eficácia de 92,28%). Mais de nove milhões de doses já foram aplicadas, com 22,5% da população imunizada com as doses completas. A intenção das autoridades sanitárias é de que até setembro 70% dos habitantes estejam totalmente vacinados. Vale recordar que equipes médicas foram enviadas para as regiões mais assoladas pelo recente surto de Covid-19, na tentativa de conter as novas variantes entre a população. Estas são todas questões que os cubanos estão, sem dúvida, se esforçando para equilibrar. Mas não é fácil.
Não custa lembrar que há também uma questão geracional. Os jovens conhecidos como millennials e aqueles da chamada “Geração Z” não passaram por tudo aquilo que seus pais e avós viveram e não têm ideia do que era Cuba antes da revolução. Muitos deles são facilmente influenciados pelas mídias digitais que, por sinal, não são espaços propícios a reflexões profundas e sofisticadas. Muito pelo contrário. Nas plataformas virtuais os assuntos são discutidos de forma superficial dentro de “bolhas”, nas quais grupos que pensam da mesma forma reverberam e reforçam as ideias que defendem e que são facilmente manipuladas pelas megacorporações da web, por ONGs e mesmo por Estados estrangeiros, que querem implementar alguma agenda política específica. Assim, esses jovens, sem a referência histórica das gerações mais antigas, e ao mesmo tempo, com acesso às redes sociais (em torno de 4,4 milhões de cubanos estão conectados a elas pelos celulares), vão se envolvendo cada vez mais em um ambiente propício a polarizações, ou seja, a esse tipo de comportamento que vimos recentemente.
Mas o principal talvez – e aí acho que vale a pena sempre colocar ênfase – é que o bloqueio impõe dificuldades enormes a Cuba, um país que sofreu muito com o endurecimento do embargo ao longo do governo Trump (que realmente tornou a vida da população muito mais difícil) e que percebe agora que a situação aparentemente não vai mudar com a troca de presidente nos Estados Unidos. Muita gente acreditava que Joe Biden fosse reverter boa parte do que tinha sido feito pelo seu antecessor, imaginando que ele possivelmente seguiria um caminho mais próximo do preconizado por Obama… A política externa da nova administração em relação a Cuba, contudo, está se mostrando extremamente dura e nefasta, como aquela desenvolvida em anos recentes.
Revista Opera: Por fim, eu queria tratar um pouco sobre Miguel Díaz-Canel. Ele foi eleito presidente em 2018, e este ano tornou-se primeiro-secretário do Partido Comunista. Há uma grande expectativa por parte da imprensa ocidental em relação a isso, um pouco sob aquela lógica de que “depois de Fidel” Cuba cairia; veio Raúl, e houve o mesmo enlevo; “depois de Raúl Cuba cairá”. Sabemos que isso é em grande parte um auto-engano, um sonho ilusório dessa imprensa, que confunde sonho e realidade; mas também que há um certo sentido em considerar que a veneração que Fidel ou Raúl tinham é difícil de ser alcançada. Como você avalia a figura de Díaz-Canel, e sua relação com o povo cubano em geral?
Fidel Castro foi o maior estadista latino-americano do século XX. E uma das maiores personalidades políticas mundiais de seu tempo. O próprio Raúl, que também personificava a luta revolucionária, era uma figura emblemática, que tinha uma força simbólica muito evidente quando estava no poder. Díaz-Canel, por sua vez, representa a nova geração (ele é bem jovem, tem 61 anos de idade), possibilitando um olhar distinto para várias das questões prementes que devem ser abordadas cotidianamente em Cuba. Ao mesmo tempo, ele também simboliza a continuidade, já que está firmemente empenhado em levar adiante os ideais da revolução. Ao longo da vida, foi professor universitário, ocupou o cargo de primeiro-secretário da UJC e esteve à frente do Comitê Provincial do PCC de Villa Clara e de Holguín. Além disso, foi ministro da Educação Superior e vice-presidente do Conselho de Ministros e do Conselho de Estado. É alguém que tinha (e ainda tem) a confiança irrestrita de Raúl Castro, do partido e da maior parte da população cubana. Ou seja, estamos falando de um homem muito preparado intelectualmente e comprometido com a revolução, com as instituições e com a continuidade do sistema socialista.