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A receita da Bolívia para derrubar ditadores: memória e justiça

Na Bolívia, Arce aposta em políticas de recuperação econômica e sanitária, enquanto a oposição mantém uma postura desestabilizadora.
Na Bolívia, Arce aposta em políticas de recuperação econômica e sanitária, enquanto a oposição mantém uma postura desestabilizadora. Por Gabriela Montaño | CELAG – Tradução de Victor Klauck para a Revista Opera, com revisão de Rebeca Ávila
(Foto: Santiago Sito)

A Bolívia completa 196 anos de vida independente e, a quatro anos de alcançar o bicentenário, o Estado Plurinacional da Bolívia retomou o rumo democrático. Ao contrário do que o leitor possa pensar, a frase “temos a receita para derrubar ditadores” não veio de algum ou alguma dirigente social dos setores populares bolivianos: veio precisamente de seu oposto, de um dirigente civil de Santa Cruz de la Sierra, da oposição de direita mais radical ao governo de Luis Arce.

Pretendendo dar uma advertência ao presidente boliviano, que completa nove meses no poder, a direita boliviana, mais uma vez, quer superar seu pior momento político gritando mais alto. O lógico seria aceitar que a receita para derrubar a ditadura e retornar à via democrática na Bolívia foram os esmagadores 55,10% dos votos que obteve o MAS nas eleições de outubro de 2020. A fórmula para destituir o governo inconstitucional e ilegítimo de Jeanine Áñez foi garantir a convocatória das eleições e, de maneira limpa, livre e democrática, obter o apoio de 3.394.052 bolivianas e bolivianos. Até alguns meses atrás mantivemos a esperança de que a oposição iria sentar para dialogar com o governo sobre os problemas que importam ao povo, porém mais uma vez esta esperança desaparece. 

A oposição mais radical, liderada por Luis Fernando Camacho e Carlos Mesa, prefere virar as costas para as preocupações dos setores mais pobres do país, fortemente golpeados pela crise multidimensional, identificada por Luis Arce em seu discurso de posse como a tarefa principal a ser enfrentada de forma unificada por todo o país. “Lucho”, como prefere ser chamado, avaliou que durante os 11 meses de governo de facto um “retrocesso de 67 anos” foi produzido nos principais indicadores econômicos

O Executivo definiu como principais tarefas para sair da crise econômica a reativação da demanda interna e do investimento público, além de uma forte injeção de recursos econômicos através de créditos e contratos fiduciários no campo da oferta. Alguns anúncios presidenciais importantes feitos em 6 de agosto, complementares ao plano de reativação que está em andamento, foram a criação de um plano de emergência de emprego e a vacinação de 90% da população acima de 18 anos até dezembro. 

As medidas no campo econômico começaram já nos primeiros dois meses de gestão do governo: entre novembro e dezembro de 2020 foi possível ampliar a execução orçamentária de 21% para 45%. Foram implementados de maneira imediata o Bono contra el Hambre [Auxílio contra a Fome] e o reembolso do imposto sobre valor agregado, e logo em seguida foram estabelecidos o imposto sobre grandes fortunas, créditos para a substituição de importações e o fomento à produção de alimentos. A percepção de 68% da opinião pública é de que o desemprego diminuiu e isso é corroborado pelas cifras oficiais, que mostram que a taxa de desemprego diminuiu de 11,6% em 2020 para 7,6% em junho de 2021. Por outro lado, as exportações cresceram em 54,3%, gerando o maior saldo positivo na balança comercial dos últimos sete anos. 

Leia também – A importância da Bolívia na nova estratégia dos EUA no continente

No campo da crise sanitária, a gratuidade foi recuperada como elemento fundamental do plano de governo frente à pandemia da Covid-19. Diante da lógica dominante no mundo de perigosa acumulação de vacinas por parte dos dez países mais ricos, a Bolívia defendeu a quebra de patentes de vacinas, enquanto nacionalmente foram distribuídos testes, medicamentos e vacinas de forma gratuita à população. Assim, foi possível baixar a taxa de letalidade no país de 6,2%, durante a primeira onda administrada por Áñez, para 2,7%; uma conquista que merece destaque porque representa milhares de vidas salvas. 

A oposição se nega a discutir sobre estes resultados. Por que a direita boliviana se entrincheira contra o governo? Por que voltam às ameaças, se não há processo eleitoral em curso? Por que tensionam o campo político quando as eleições gerais e regionais já ficaram para trás? Aparentemente, a resposta tem a ver com a memória e a justiça.

Da mesma forma decidida com que está realizando grandes esforços nos campos econômico e sanitário, o governo de Luis Arce assumiu a luta contra a impunidade e em defesa da democracia boliviana. O governo impulsiona a investigação sobre o golpe de Estado e os massacres perpetrados em outubro e novembro de 2019. As investigações conduzidas pelo Ministério Público têm revelado uma rede de ações sistemáticas que demonstram uma operação planejada com muito tempo de antecedência para a ruptura da ordem constitucional. 

Como já haviam demonstrado ao menos seis estudos e informes independentes, incluindo o compartilhado publicamente pelo CELAG, um recente informe pericial do Deep Tech Lab do Grupo de Investigação BISITE, da Fundação Geral da Universidade de Salamanca, realizado a pedido do Ministério Público boliviano, demonstra que não houve manipulação digital dos dados da votação de 2019. Tudo isso configura um cenário difícil para uma direita que se alimentava diariamente de um discurso que levantava a bandeira da fraude eleitoral para justificar suas ações em 2019.  

O escândalo revelado há algumas semanas acerca do envio de material bélico por parte da Argentina e do Equador foi a última gota. O colaboracionismo dos governos de Mauricio Macri e Lenín Moreno com o governo de facto de Jeanine Áñez, além de poder constituir crimes de contrabando e dano econômico contra estes Estados, pode ter tido consequências brutais na violação de direitos humanos durante os acontecimentos em novembro de 2019 na Bolívia. Nesse sentido, Evo Morales, assim como muitos outros, fez referência a um novo “Plano Condor” no continente. 

Jeanine Áñez está em prisão preventiva na Bolívia, enquanto seu braço direito, Arturo Murillo, encontra-se detido nos Estados Unidos por irregularidades na compra de gases lacrimogêneos. Mais de uma dezena de ex-chefes militares e policiais também se encontram detidos por decisões judiciais.

Uma velha frase aponta que quando um tigre está encurralado, ele pode atacar. Porém, a oposição boliviana mais parece atirar para todos os lados. Eles propõem usar como bandeiras temas como a distribuição da terra, a identidade regional e uma suposta perseguição política novamente para tentar unificar os pedaços que sobraram depois do fracasso que demonstraram na administração do Estado durante os onze meses de governo de facto. Preferem tensionar com temas políticos do que debater respostas concretas para a crise, pois é a forma que usam para se defender da demanda dos setores populares por justiça pelos 37 assassinatos, pelas mais de 800 pessoas feridas e mais de 1500 detidas ilegalmente durante o golpe de Estado em 2019.

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