Um amigo fez uma crítica ao meu último texto sobre a tomada de Cabul, sob o argumento de que não crê que seja possível “que os Estados Unidos tenham feito tudo isso só para ‘jogar o problema no colo da China’”. A explicação talvez valha compartilhar com mais leitores dessa revista.
É evidente que o “cenário ideal” pensado pelos Estados Unidos no começo dos anos 2000 não se consolidou no Afeganistão e, nesse caso, podemos falar em uma “derrota” para os norte-americanos. O problema é que a lógica da estratégia não é uma lógica “econômica”; a não realização de um objetivo primário não esgota as possibilidades do ator, pode redirecioná-lo para outras saídas, além dos próprios objetivos não serem definitivos, mas justamente se atualizarem em concordância com a realidade, alterando-se continuamente. Não se trata de “perdi” ou “ganhei”, “enriqueci” ou “fali”; se tratam das perspectivas abertas ou fechadas por cada mudança, a velha fortuna e sua roda.
Partamos então deste primeiro ponto: o que mudou desde 2001 no tabuleiro regional? A primeira coisa é que a China mudou e, com ela, a política externa norte-americana. A política externa para a China vigente nessa época era mais ou menos resumível ao seguinte: os EUA não pensavam no dragão chinês como um ente maligno, nem necessariamente como um competidor; acreditavam que o fluxo comercial de manufaturados a preços baixos ajudava a manter ou aumentar o padrão de consumo dentro de seu país sem significar aumentos salariais, ao mesmo tempo que viam a compra de ativos dolarizados pela China como algo positivo (especialmente em um momento em que estavam querendo se meter em tudo quanto fosse guerra no Oriente Médio, na sua eterna “Guerra ao Terror”). Nas versões mais espetaculares dos sonhos – e haviam muitos sonhadores – acreditavam que a dinâmica de exportação de manufaturados por um mercado aberto desde as reformas de Deng Xiaoping significaria uma derrocada breve do Partido Comunista Chinês e a ascensão de um sistema multipartidário. Entre 2006 e 2008 há uma mudança; os Estados Unidos passam para uma política externa em que a China é entendida como um perigoso competidor. Não por acaso o Pivô para a Ásia é promulgado nesse contexto, ainda sob o governo Obama. Desde o final do governo Obama, no entanto, isso foi atualizado para uma concepção mais diretamente ligada ao Departamento de Defesa, que propõe a China não só como um competidor, mas como o inimigo principal no campo internacional, tomando em conta que o país pretenderia (como de fato está fazendo) expandir suas capacidades militares buscando, quando possível, um equilíbrio estratégico.
Este é o primeiro dado: a postura dos EUA sobre a China mudou. Só isso é capaz de explicar o abandono do Afeganistão depois de 20 anos de intervenção assassina? Não. Os norte-americanos viram ali um limite: não conseguiriam estabilizar um governo escolhido no país, o Talibã não desapareceria apesar dos bilhões de dólares jogados, porque a situação, como os próprios combatentes colocavam, era uma em que “o governo afegão e os Estados Unidos têm os relógios, mas nós temos o tempo”. Não valia a pena seguir com os contratos bilionários para o riso de algumas multinacionais, especialmente considerando que a fome de terra do império é grande, e sempre pode reacomodar novos contratos. Era preferível, na conjuntura atual, ter um governo fantoche apossado do Afeganistão inteiro para pressionar a China, Rússia (pelo Tajiquistão, Quirguistão e Turcomenistão) e o Irã, mas, se isso não é possível na conjuntura atual, qual é uma das alternativas disponíveis?
Sair do país (e possivelmente redirecionar esses bilhões); gerar uma situação em que a China necessariamente tem de fazer algo (ou ela confronta o Talibã abertamente ou estabelece algum tipo de contato); criar a possibilidade do território servir para grupos que têm interesse em Xinjiang (o Partido Islâmico do Turquestão – TIP, e neste caso não se trata somente de efetivamente consolidar o TIP no Afeganistão, mas dele ser um dos pontos que forçam a China a tomar alguma posição); aumentar a tensão da Índia com o Paquistão (bem integrado à China e à Nova Rota da Seda); aumentar a tensão da Índia com a China (já que está última necessariamente teria de agir de uma forma ou outra); tensionar e enfraquecer o Irã, que agora tem de se preocupar ainda mais com uma fronteira bem extensa (e possivelmente comprometer em parte a relação Pequim-Teerã). Esse é o mínimo; a depender de como a China se comportasse, se por exemplo acabasse tendo relações muito amistosas com o Talibã, efetivamente os norte-americanos poderiam voltar a jogar dinheiro no Afeganistão (por exemplo em uma Aliança do Norte renascida, ou em coisa muito pior) e arrastar os chineses para uma armadilha infernal. E a Índia é especialmente importante nestes cálculos porque já é há décadas apontada como o único peso capaz, em última instância, de contrabalancear a China seriamente dentro da Ásia.
Insistir na identificação de um “derrotado” e um “vencedor” no Afeganistão, em função unicamente da realização ou não de alguns objetivos militares formais, é precisamente insistir no mesmo tipo de lógica que levou os Estados Unidos ao seu labirinto: aquela que identifica a guerra como um “conceito puro postulado pela teoria”, realizada para levar a uma decisão ou um acordo definitivo. A guerra não é um duelo de vida e morte “virtual”; não é, para citar Mao, uma “realidade absoluta” ou, nas palavras de Clausewitz, “um ato de paixão sem sentido”, mas é, nas palavras do prussiano, “controlada pelo seu propósito político. Quando o dispêndio de esforços ultrapassar o valor do propósito político, este deverá ser abandonado e a paz deverá ser a consequência inevitável”.
A queda de Cabul não é uma vitória da China precisamente porque, por meio dela, os chineses foram obrigados a lidar com o Afeganistão, que apesar da fuga hollywoodiana dos norte-americanos e de um novo governo Talibã, não deve se estabilizar tão cedo. Se assim ocorresse, seria ao custo de um cenário regional caótico, com interesses diversos em conflito. Caos bem distante de Pearl Harbor, mas bem próximo das fronteiras, linhas logísticas e obras de infraestruturas chinesas.
Sim, é verdade; os Estados Unidos não tinham mais a perspectiva de vencer. Mas sem a saída norte-americana, tampouco tinham os Talibãs a certeza da vitória – coisa muito útil na guerra. Os americanos tinham os relógios, os pachtuns o tempo. Que os relógios tenham decidido ir embora agora, e o tempo avançado apressadamente sobre o país em função de sua ausência, não é acaso. É isso que quero dizer com “os EUA preferem tornar o Afeganistão um problema de seus ‘verdadeiros competidores estratégicos’, o que, para todos os efeitos, o renascido ‘Emirado Islâmico’ de fato passa a ser.”