Acabou o período experimental para o governo de Guillermo Lasso, proporcionado pelos números da vacinação que, além do relato oficial e contradizendo seus aderentes ultraliberais, teve muito mais esforço público e cooperação intergovernamental do que sucesso empresarial. A vacinação naturalmente atraiu a atenção da população e a oposição foi condescendente, felicitando Lasso e abstendo-se de qualquer tipo de escrutínio. De qualquer forma, e inclusive antes do fim desse período experimental, as primeiras tensões e conflitos não demoraram a aparecer em um país completamente submerso em uma crise econômica, social e sanitária sem precedentes. Além das tensões sociais com as quais o governo de Lasso tem lidado mal, há a má gestão da relação com a Assembleia, a explosão de uma crise carcerária sem precedentes e uma nova exposição – neste caso com os holofotes internacionais dos Pandora Papers – da rede offshore com a qual Lasso tem escondido seu capital e fugido de suas obrigações fiscais.
Os primeiros problemas surgiram no agro, quando vários grêmios exigiram que o governo cumprisse suas promessas de campanha sobre a definição de preços de sustentação para vários produtos, como o arroz. Já são várias semanas de protestos reprimidos pela força pública, Lasso já nomeou dois ministros de Agricultura e, ainda assim, não se vislumbra nenhuma solução. Os sindicatos dos professores do ensino público também se manifestaram desde cedo para reivindicar o aumento dos seus salários, enquanto o governo se apega ao Tribunal Constitucional para que este resolva, em último caso, o conflito contra os professores. Após uma primeira decisão geral que consideraram favorável, os professores suspenderam as greves de fome, sem que o conflito tenha chegado ao fim.
O aumento dos preços dos combustíveis e seu inegável impacto na capacidade aquisitiva da população desencadearam, no mês de agosto, os primeiros protestos, liderados pela Confederação Nacional de Indígenas do Equador (CONAIE), que possui uma histórica capacidade de mobilização. A primeira resposta de Lasso foi chamá-los de anarquistas desestabilizadores, como já tinha feito durante o emblemático levante popular de outubro de 2019 contra as políticas do ex-presidente Lenín Moreno. As organizações sociais não caíram na provocação de Lasso, insistiram em sua abertura a dialogar e obrigaram o presidente a dançar essa dança. Diante das tentativas do regime para dividi-los, o presidente da CONAIE, Leonidas Iza, insistiu que o diálogo deveria ser com um amplo número de representantes do Parlamento dos Povos, em que a CONAIE conflui com várias organizações sociais desde a resistência de outubro de 2019.
O encontro entre o governo e representantes do Parlamento dos Povos aconteceu, por fim, em 4 de outubro. Lasso recebeu Iza e vários líderes sociais em um contexto muito delicado para ele: esgotado o período experimental e com um saldo cada vez mais negativo em sua relação com a Assembleia Nacional, que recentemente rejeitou seu projeto de lei econômica urgente que buscava aumentar a carga tributária na classe média.
Lasso teve a oportunidade de ensaiar o caminho da negociação política com as organizações do Parlamento dos Povos. Por sua vez, elas consideraram que era o momento de jogar duro, tanto pela insustentável situação do país como por ver um Lasso certamente atingido pela conjuntura dos últimos dias e pelo saldo negativo das suas manobras políticas. Embora Leonidas Iza não controle totalmente seu pátio interno (existem tensões com várias organizações e a relação com a bancada parlamentar do seu braço político, o Pachakutik, tem altos e baixos), ele chegou ao encontro com uma postura firme e propostas para a recuperação econômica: revogação dos decretos que liberalizaram o preço dos combustíveis na época de Moreno, desoneração financeira para os devedores dos bancos, definição de estratégias para que sejam cobertos os mecanismos de produção dos camponeses afetados pela crise e rejeição do projeto de lei econômica urgente, que busca flexibilizar mais a contratação laboral, agilizar as privatizações e aprofundar a desregulamentação financeira.
Embora Lasso tenha sido rápido em destacar os benefícios do diálogo e as coincidências de diagnóstico com seus participantes, logo se soube que o presidente optou por não ceder, nem mesmo por cálculo político. Do ponto de vista tático, esta era uma oportunidade para Lasso liberar certas tensões em um momento em que muitas coisas estão em jogo, mas ele escolheu não fazê-lo. Isto certamente levará a uma relação mais tensa com as organizações sociais que, de acordo com seus comunicados, irão definir as próximas ações a serem tomadas.
Na reunião com Iza e o Parlamento dos Povos, Lasso despreza novamente a gestão política e opta pelo desencontro. Talvez por isso, a estratégia comunicacional matize o uso do “encontro” e inclua uma ideia mais etérea de “país das oportunidades”. Fica claro, no entanto, que quem acessa as oportunidades oferecidas pelo governo é um grupo cada vez mais fechado, que se beneficia da agenda de aprofundamento de um neoliberalismo desenhado para o capital financeiro.
Além das tensões com as organizações sociais, a sorte que a Lei Econômica Urgente de Lasso tem tido até agora nos permite analisar outros desacertos políticos. A devolução desse projeto normativo chamado “Lei de Oportunidades” deixou claro que sua inaugural (e frágil) aliança parlamentar com o Pachakutik (PK) e a Izquierda Democrática (ID) foi um amor passageiro que também custou caro a essas duas forças legislativas, que atravessam suas próprias crises e colapsos. Os votos dos membros do PK, ID e UNES no Conselho de Administração Legislativa (CAL) foram fundamentais para que o projeto de lei não fosse qualificado, sendo devolvido. Um dos votos do PK é da própria presidente da Assembleia, a quem Lasso lembrou que estava no cargo graças a seu apoio e lhe exigiu publicamente que o projeto de lei fosse aprovado. Além disso, a relação tensa de Lasso com o Partido Social Cristiano (PSC) se aprofunda após a ruptura do acordo de governabilidade de maio, do qual o correísmo (UNES) também formava parte. A difícil amálgama que se formou na campanha entre rivais de direita (a tradicial oligarquia que o PSC representa e os interesses do capital financeiro que Lasso representa) volta, pouco a pouco, ao enquadramento tradicional destas forças de direita. Estas quatro bancadas, UNES, PSC, ID e PK, assinaram um comunicado conjunto para dizer que Lasso deve respeitar a lei e os canais democráticos, e que terão prazer em discutir um projeto que não viole a Constituição.
Na Assembleia Nacional, Lasso está sozinho com o bloco de legisladores do seu partido CREO, os independentes e desertores que conseguiu recrutar. A relação começou mal com a ruptura precoce com o PSC e se agravou com a ânsia permanente de contornar a Assembleia, como fez com a ratificação do convênio do CIADI e com a entrega de seu orçamento pro forma sem ter um plano de desenvolvimento e ignorando as observações parlamentares das bancadas da UNES, do PSC e PK, que nem sequer se deu ao trabalho de responder. Após a devolução da “Lei de Oportunidades”, os sinais dados por Lasso parecem buscar gerar mais tensão nesta frente: segundo os seus próprios anúncios e os da sua ministra de Governo (uma especialista em gerar tensões), parece que buscará pressionar o Tribunal Constitucional a contradizer a decisão da Assembleia de devolver seu projeto por ser inconstitucional e não cumprir requisitos de qualificação. Esta (nova) jogada privilegia os mecanismos de democracia direta como o plebiscito ou a morte cruzada como ameaça ao legislativo? Certamente, o cenário para uma Consulta Popular se torna mais complicado enquanto o presidente se torna mais autocentrado. Embora conhecendo Lasso e os que agora lidam com as relações políticas do seu governo (a velha Democracia Cristiana), a consulta popular é uma estratégia que continuará na manga e não será descartada facilmente.
Por outro lado, é interessante observar que até parte das elites empresariais e porta-vozes econômicos que tradicionalmente apoiam Lasso mostraram sua insatisfação com o projeto de lei e com um rumo que consideram “pouco liberal”. Beirando o absurdo, chegaram a classificar Lasso de social-democrata. O que essas elites não gostam é que Lasso, um milionário que sonega impostos de acordo com os Pandora Papers, tenha ousado incluir um imposto temporário sobre o patrimônio e proposto que se incremente rapidamente o imposto à renda dos mais ricos. Ele certamente fez isso para cumprir certos compromissos cosméticos para o FMI (cujos detalhes ainda não são conhecidos). Pouco importa aos ultraliberais que o projeto de lei, na sua parte tributária, seja realmente focado em cobrar mais à classe média. Eles querem que tudo seja corte orçamentário, redução do Estado e menos impostos para os mais ricos. Talvez, com eles, Lasso possa reconstruir relações se abandonar a ideia de incluir alguns poucos e simbólicos impostos aos mais ricos. Dessa forma poderia reagrupar o rebanho das elites e, claro, dos meios de comunicação que o defendem e ecoam o discurso oficial.
Para terminar, é importante olhar para a esquerda. A terrível situação em que o país se encontra e a conjuntura política que o governo de Lasso atravessa tornam-se, respectivamente, uma obrigação e oportunidade para construir lideranças estratégicas e zelar pela unidade de uma força de oposição progressista. A Revolución Ciudadana (RC), agora com partido próprio após quatro anos de proscrição, reconcentrou forças em uma convenção nacional na província de Manabí, seu bastião eleitoral no litoral do país. A reconcentração de forças parece ser lida de distintas formas e com distintos interesses dentro da direção da RC que, na dimensão mais visível, faz uma aposta fechada de que seu cavalo de batalha seja sua bancada legislativa (UNES). Em relação à sua capacidade e vontade de articulação no plano da sociedade civil, no momento a RC parece mais preocupada com a gestão de suas redes sociais. Por sua vez, Leonidas Iza, no âmbito da tensão com o governo, insiste na unidade e na articulação de forças das organizações sociais, embora seu próprio pátio – como já foi mencionado – não esteja completamente consolidado, devendo medir o timing das ruas e também o enquadramento de Lasso, que buscará qualquer oportunidade para mostrá-los como “anarquistas desestabilizadores” e se apresentar como dialogante.
Vale a pena fazer algumas perguntas necessárias: o movimento indígena poderá se articular com o correísmo neste novo capítulo que o país atravessa? Poderão unir seus respectivos aliados políticos e sociais, assim como aglutinar outros setores do espectro progressista? Na campanha eleitoral e além da posição formal da CONAIE no segundo turno, foram de conhecimento público as aproximações entre a candidatura presidencial da UNES e alguns importantes representantes do movimento indígena. Houve quem aplaudisse a aproximação e quem considerasse que teve efeito negativo em setores eleitores urbanos e da classe média. O certo é que quem travou confrontos no passado deu sinais de aproximação meses atrás. Lições aprendidas e canais de aproximação certamente poderão ser recriados ou reconstruídos. Causas compartilhadas como denunciar e combater o abuso dos sonegadores fiscais, começando pelo próprio presidente da República, deveriam ser causas conjuntas.
As dispersas forças políticas e sociais do progressismo equatoriano estão diante da obrigação e oportunidade de confrontar o avanço de um neoliberalismo privatizador de caráter financeiro que, embora insista em discursos consensuais, na verdade despreza a gestão política, a possibilidade de chegar a grandes acordos, e se fecha cada vez mais em si próprio. É o momento da condução e articulação de uma necessária oposição democrática ao governo do desencontro, com seus erros e seus offshores.