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Trabalhar até morrer ou trabalhar para ser pobre

Mais de um século após o ciclo escravista, trabalhar para ser pobre e até morrer continua sendo a realidade de milhões de trabalhadores.
Mais de um século após o ciclo escravista, trabalhar para ser pobre e até morrer continua sendo a realidade de milhões de trabalhadores. Por Edgar Isch L. | CELAE – Tradução de Gercyane Mylena para a Revista Opera

A exploração capitalista tem expressões que deixam bem clara a verdade da afirmação de que as condições de trabalho que a caracterizam são “escravidão assalariada”, como o marxismo as chamaria. Isto sem que consideremos que, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) das Nações Unidas, estima-se que em 2016 40,3 milhões de pessoas tenham sido sujeitas à escravidão moderna.

Este número inclui 24,9 milhões em trabalho forçado e 15,4 milhões em casamento forçado, sendo que uma em cada quatro vítimas da escravidão moderna são crianças (OIT, 2017).[i]

Os dados mencionados acima levantam a questão: se eles sabem o número de escravos e sabem onde estão, por quê a chamada comunidade internacional não faz nada para impedir esta violação generalizada dos direitos humanos? Existe, no mínimo, uma cumplicidade com o que está acontecendo, na medida em que nos dão a notícia sobre a existência de escravos como se fosse natural.

Morte por excesso de trabalho I

Entretanto, este não é o único aspecto da superexploração do trabalho. Com fórmulas neoliberais orientadas para uma maior acumulação de riqueza, acentuam-se as condições de trabalho adoecedoras e fatais. Há alguns anos no Japão criaram uma nova palavra para morte por excesso de trabalho, karoshi, resultado de formas de flexibilização do trabalho que levaram a turnos de trabalho de até 70 horas por semana e círculos de qualidade total, um mecanismo que transformou cada trabalhador num cão de guarda e cobrador do trabalho do outro, em favor do patrão.

Em maio deste ano, a OIT e a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicaram um relatório mostrando que longas horas de trabalho aumentam as mortes por doenças cardíacas e acidentes vasculares cerebrais [ii]. De acordo com este estudo, o excesso de trabalho e o estresse no trabalho causaram 745.000 mortes por acidente vascular cerebral e doença cardíaca isquêmica em 2016.

O relatório também conclui que trabalhar 55 horas ou mais por semana estava associado a um aumento de 35% no risco de derrame e 17% no risco de morrer de doenças cardíacas, mesmo anos após a eliminação deste regime extenuante.

Mais notavelmente, este não é um fenômeno isolado: em 2016, globalmente, cerca de 488 milhões de pessoas foram expostas a longas horas de trabalho (55 ou mais por semana), o equivalente a 8,9% do total global.

Na América Latina, os países com mais mortes relacionadas a estas causas são Colômbia, Peru, Paraguai e Bolívia, com Equador e Argentina no meio. Isto, é claro, não é mencionado pelas burguesias ao comparar salários em países irmãos.

Morte por excesso de trabalho II

Outro estudo global recente[iii], também apresentado conjuntamente pela OIT e a OMS, mostra que doenças e lesões relacionadas ao trabalho causaram a morte prematura de 1,9 milhões de pessoas por ano. Este número vem crescendo lentamente desde as estatísticas de 2000 e 2010 até 2016. 

O estudo considera 19 fatores de risco no trabalho, incluindo exposição a longas horas de trabalho, associados a 750.000 mortes prematuras por ano, e exposição a poluentes, associados a cerca de 450.000 mortes.

O número de mortes prematuras relacionadas ao trabalho em alguns países da América Latina para 2016 é: Argentina, 9.478 trabalhadores; Brasil, 28.355; Chile, 2.168; Colômbia, 6.719; Equador, 2.030 (349 mortes por ano relacionadas a longas horas de trabalho, quase uma por dia); México, 16.452; Peru, 4.250; Uruguai, 740.

A cultura do trabalho em excesso

Deve-se observar que os estudos acima não consideram, por exemplo, o trabalho no qual o trabalhador procura complementar seu salário em outra empresa, os seus esforços para ganhar renda como trabalhador informal ou o trabalho doméstico. Tudo isso sugere que a situação é ainda mais grave do que a analisada.

A justificação desse processo foi elaborada com uma série de dispositivos ideológicos que, através da repetição, entraram na mente de milhões de pessoas como “senso comum”. Estes incluem a meritocracia, que se baseia nas condições desiguais de concorrência; a responsabilização sobre o indivíduo por ter ou não ter um emprego; ou o apontamento de que os pobres são pobres porque querem ser pobres e não se esforçam. Os dados oficiais acima mostram que os pobres são os que mais trabalham para as empresas, e que serão recompensados com a doença e a morte prematura.

A isto se soma o alto número de desempregados, que servem como pressão para baixar os salários. Aqui se destaca outra área de estudo: quantos trabalhadores morrem por estarem desnutridos, ou devido a condições de vida insalubres, porque seus salários não são suficientes para lhes proporcionar um padrão de vida mínimo?

O trabalho à distância está se tornando outra fonte de sobrecarga, de horários de trabalho mais longos e conexão permanente com o sistema de produção, mas ele é apresentado como um passo em direção à liberdade no uso do tempo. O trabalhador sabe que isso não é verdade. E eles sabem que com esta modalidade se busca menos interação social, de modo que todos caiam na armadilha do “cada um por si”, com menos possibilidades de organização e luta conjunta. Individualmente, todos serão mais facilmente explorados.

Mais uma vez, esses dados aumentariam muito o número de mortes como resultado das condições injustas de trabalho, da superexploração que o neoliberalismo exige.

A luta necessária

A defesa do horário máximo de trabalho de 8 horas por dia e 40 horas por semana é indispensável, assim como a exigência de um dia de trabalho com menos horas, com salários iguais que considerem o tempo de deslocamento do trabalhado e para permitir que as horas de trabalho restantes se traduzam na contratação de novos funcionários sob as mesmas condições.

A outra ação proposta é paralisar e impedir as novas reformas trabalhistas que, como no caso do Equador, vão ao ponto de propor condições de extrema insegurança no emprego, que incluem o trabalhador que é demitido pagando indenização ao empregador.

A luta, como vimos, deve ser expressa de forma ideológica, econômica, legal e política. É necessário, nesta época, levantar a questão do poder. Enquanto ele permanecer nas mãos da burguesia, das oligarquias e das transnacionais, a única coisa que espera é a continuidade dos danos às condições de trabalho e de vida das maiorias.

Notas:
[i][Organização Internacional do Trabalho e Fundação Walk Free (2017)]. Estimativas globais da escravidão moderna: Trabalho forçado e casamento forçado. Genebra.
[ii]WHO/ILO (2021).Global, regional, e nacional burden of ischemic heart disease and stroke attributable to exposure to long work hours for 194 countries, 2000-2016.in: Environment International, Volume 154, setembro 2021, 106595.
[iii] OIT-OMS (2021). Estimativas conjuntas da Carga de Doença e Lesões relacionadas ao Trabalho, 2000-2016. Genebra.

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