No próximo dia 5 de novembro, na Casa de Francisca, em São Paulo, o cantor e compositor Douglas Germano se apresentará em público pela primeira vez desde o início da pandemia. Ele será acompanhado pelo conjunto Batuqueiros e Sua Gente no show “Partido Alto”, baseado no disco homônimo. Seria uma oportunidade única se não houvesse repeteco do espetáculo no dia seguinte. De todo modo, ambas as noites estavam com ingressos quase esgotados antes da publicação deste texto — o que não surpreende, dado o espaço e a relevância que Douglas e o grupo ocupam na cena musical paulistana.
“Partido Alto” é um trabalho com potencial de fazer com que o som deste coletivo chegue a um público mais amplo, para além dos limites geográficos de São Paulo — e isso se deve ao apelo popular contido na linguagem do partido. Sem perder as suas particularidades, o gênero respira novos ares nas composições de Douglas Germano e na direção musical de Henrique Araújo. A maior virtude da dupla é manter intacta a essência deste estilo de samba numa obra simples e sofisticada.
Preservar a atmosfera popular do partido alto, sem rebuscá-la ou tratá-la com demasiada reverência, era o intuito de Douglas, conforme declarou em entrevista recente ao site Farofafá: “Eu já tinha feito ‘Escumalha’ e estava com a ideia, exatamente, de fazer um disco de partido alto, para tentar aproximar um pouco mais o discurso da vida real, fora dessa bolha pequeno-burguesa da classe média.” O discurso é coerente com o conteúdo das dez faixas do álbum, nas quais o compositor retrata o cotidiano do povo brasileiro em seus momentos de descontração e de luta pela sobrevivência.
“Partido Alto”, o espetáculo, contém um detalhe especial: será a primeira vez que Douglas Germano e os músicos do Batuqueiros e Sua Gente vão se reunir no mesmo espaço físico para executar o repertório do disco. O encontro só foi possível graças ao avanço da vacinação no país, que tem resultado na redução gradativa dos casos de Covid-19. A gravação do álbum, segundo o artista, aconteceu no pico da segunda onda da pandemia e foi feita quase que num esquema de “quebra-cabeça”, com cada integrante ensaiando em sua própria casa e gravando sozinho em estúdio, na presença apenas do diretor musical e do operador de som.
Douglas classifica a gravação como uma “experiência inédita”, feita por vinte músicos separadamente. O produto final se destaca pela qualidade técnica, pela dinâmica e pela unidade sonora. É praticamente impossível, para quem ouve o disco sem saber da história, dizer que a gravação se deu assim e não da forma mais usual aos discos de samba, com todos tocando ao mesmo tempo.
O compositor explica que as bases dos arranjos foram escritas num programa de edição de partitura para que os músicos pudessem ensaiar à distância e tocar em cima delas. Todo material produzido foi mixado para dar uma ideia geral de como a música soaria. Na sequência, cada um foi para o estúdio gravar a sua parte, em dias separados. Até mesmo o coro, presente em todas as faixas, foi gravado a conta-gotas, embora aos ouvidos nos chegue o astral de uma roda de samba ao vivo.
Um encontro de peso
Lançado em agosto nas plataformas digitais, “Partido Alto” é fruto de fundos obtidos via ProAc pela produtora dos Batuqueiros e Sua Gente, em 2019. Antes de inscrever o projeto no edital, o grupo acalentava a ideia de convidar Douglas Germano para participar de um disco como compositor. Deu-se o encontro entre alguns dos melhores músicos de samba da atualidade e aquele que pode ser considerado o compositor mais original da atual geração da música brasileira.
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Embora seja apresentado como “novidade” ao público de outros estados, Douglas Germano atua musicalmente em São Paulo desde a década de 1990, quando teve seu primeiro samba gravado pelo grupo Fundo de Quintal (“Vida Alheia“, na época em que o compositor assinava como Cuca, seu apelido no futebol de várzea). Prestes a completar 54 anos, Douglas começa a se tornar um artista de projeção nacional, ainda que fora da mídia e dos grandes palcos. Seu disco anterior, “Escumalha“, talvez tenha sido o primeiro a “furar a bolha” do circuito alternativo paulista. A repercussão só não foi maior porque a turnê teve de ser interrompida pela chegada da pandemia.
“Partido Alto”, cuja série de shows terá início em novembro, promete recolocar sua carreira no ritmo pré-pandêmico. E ele não poderia estar em melhor companhia: entre 16 e 19 músicos, a depender da formação, integram o Batuqueiros e Sua Gente. Dentre os seus batuqueiros estão Allan Abbadia, Tiganá Macedo, Henrique Araújo, Gian Correa, Raphael Moreira, Alfredo Castro e Xeina Barros. Todos, sem exceção, aliam o rigor técnico de quem entende de música ao conhecimento empírico do samba, adquirido nas rodas da malandragem. Não raro, os integrantes do grupo são requisitados por grandes nomes do samba, de Eduardo Gudin a Zeca Pagodinho. Com este último, aliás, o grupo estará no canal TNT, no dia 7 de novembro, às 21h30, em show gravado na própria Casa de Francisca.
A foto da capa, em “Partido Alto”, é um exemplo perfeito de síntese: mostra um punho cerrado e erguido no ar (símbolo universal de luta e resistência, utilizado principalmente por movimentos de esquerda) e prepara o espírito do ouvinte para o que virá. O enfrentamento proposto por Douglas, porém, não se limita ao campo meramente político, mas também cultural. Neste sentido, a denúncia da violência do Estado contra os trabalhadores (“O Tempo Fechou“) é um ato de resistência tanto quanto o é uma ida à feira para comer pastel de vento, tomar um biricotico ou pechinchar o preço da cebola (“Partido da Feira“). Em tempos de gentrificação e destruição de tudo o que é popular e coletivo, quem dirá o contrário?
Por sinal, “O Tempo Fechou” é o samba mais impactante do álbum. O refrão “vovó mandou recolher a roupa que o tempo fechou” faz menção ao atual estado de coisas no Brasil e puxa os versos que comparam as vestimentas de operários, sem-terras e professores com uniformes de batalha: “Recolhe a bermuda de Vado/ que o arame farpado/ na fuga rasgou/ pega a jaqueta de Sasha/ que a bala é borracha/ mas quase furou.”
Da mesma forma, a letra de “Canaviá“, samba com pegada rural, enfrenta de peito aberto e sem papas na língua uma questão secular do Brasil: a exploração do homem do campo pelo agronegócio: “Desse canaviá sai a riqueza/ que dá posse e dá pose pro bacana/ forra seu latifúndio com essa grama/ se empanturra no pasto a safadeza.”
Ainda na linha dos “sambas de enfrentamento”, merece destaque a faixa “Capitão do Mato“, que poderia fazer alusão a inúmeros casos de abusos cometidos pelos chamados “guardinhas da esquina” — seguranças particulares que, para defender o patrimônio de seus empregadores, não titubeiam em partir para a violência contra seus iguais. O termo “capitão do mato” era usado para definir o serviçal de uma fazenda responsável por capturar escravos fugitivos: “Capitão do mato tá de farda/ capitão do mato monta guarda/ no banco, na concessionária e na porta do hotel/ no shopping, no supermercado e pra quem já tem voz/ ele nem parece um de nós.”
Douglas Germano é compositor de aguçada consciência crítica e esta é a marca mais forte de suas letras. Mas “Partido Alto” também é formado por sambas espirituosos, como o já citado “Partido da Feira”, escrito a quatro mãos com Roberto Didio. A letra descreve o ambiente de uma feira livre de domingo com seus cheiros, cores e personagens. Na faixa, vários integrantes do grupo se revezam nos versos, como nos discos clássicos de partido alto lançados na década de 1970.
Outros partidos de linhagem “clássica” são os escolhidos para encerrar o disco: “Minas Gerais Não Tem Mar” e “Jaci e Maré Cheia”, que dividem a mesma faixa. Já “Onde Tu Pensa Que Vai?” é uma embolada. A única regravação é a de “Falha Humana“, que está em “Ori”, primeiro disco solo de Douglas, de 2011. Em “Partido Alto”, este samba, o mais rebuscado do repertório, ganha um pouco mais de peso percussivo. A pergunta contida em seu refrão segue atual: “Zé cometeu falha humana/ ou foi raça humana que falhou com Zé?/ Zé cometeu falha humana/ ou foi desumana essa raça com o Zé?”
Douglas Germano não caiu de paraquedas no samba, embora rejeite o rótulo de “sambista”. Filho de músico boêmio e criado na quadra da Nenê de Vila Matilde, diz que deve às rodas de partido alto o gosto pelos versos e a capacidade de improvisar sem fugir da métrica, principal qualidade de um partideiro. Portanto, não se trata de um disco feito por e para aventureiros, mas de uma obra com fundamento, enraizada na tradição e ao mesmo tempo moderna em sua concepção — o que a torna atemporal. Douglas entende do riscado, assim como os batuqueiros que o acompanham neste trabalho desde já obrigatório na discografia do samba paulista.
Partido Alto: o samba dos grandes sambistas
Em seu livro “Partido Alto — Samba de Bamba” (Pallas, 2005), o compositor, escritor e pesquisador Nei Lopes define o partido como o “samba dos grandes sambistas”, por exigir rapidez de raciocínio no improviso dos versos e por sua própria história, que remete à origem do batuque angolano, base do samba urbano surgido no início do século 20. É também um estilo de samba que exige bom humor, irreverência e malícia. Em seus primórdios, o partido era cultivado apenas por velhos conhecedores dos segredos do samba, o que explica o seu próprio nome (“partido alto” seria algo como “alto gabarito”).
Em linhas gerais, o partido combina modos antigos de se tocar e cantar o samba de roda baiano com o samba de batucada moderno. O que o diferencia do “samba corrido” é a presença obrigatória de um refrão que se repete ao longo da música e é seguido por versos improvisados sobre o mote. O refrão é simples, direto e feito para o povo sair cantando logo na primeira audição.
No passado, era cantado por dois ou mais sambistas (partideiros) em forma de desafio, como ocorre nos duelos do repente nordestino. Sob este guarda-chuva se abrigam os sambas rurais, as antigas chulas, os refrões de pernada e os “partidos cortados”, em que a parte solada é uma quadra e o refrão vem intercalado entre cada verso dela. Costuma ser acompanhado por violão, cavaquinho e instrumentos de percussão, como pandeiro, surdo e agogô.
Nei Lopes, ele próprio um dos grandes representantes do partido alto, levanta uma questão sobre o problema central do gênero: como o partido é uma corrente do samba marcada pela improvisação — com um refrão funcionando como senha melódica e temática para que se criem versos na hora —, o que fazer para torná-la mais conhecida sem trair suas bases?
Ele mesmo responde: “A viabilidade comercial está exatamente em não ser mais improvisado. Veja os exemplos dos sambas iniciais do Martinho da Vila, na década de 1960: são partidos estilizados ou inspirados na tradição do partido alto, assim como fez Zeca Pagodinho a partir dos anos 1980. São sambas que têm, em sua maioria, a estrutura básica do partido, com um refrão e ‘segundas partes’, mas os versos, quando gravados em estúdio, não são mais improvisados.”, diz o sambista.