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Porquê as nações pobres não se iludem com o imperialismo verde

Exigir o fim do uso de determinados combustíveis sem discutir o financiamento para a energia renovável e um equilíbrio nas emissões de carbono não passa de imperialismo verde.
Exigir o fim do uso de determinados combustíveis sem discutir o financiamento para a energia renovável e um equilíbrio nas emissões de carbono não passa de imperialismo verde. Por Prabir Purkayastha | Globetrotter – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera

A luta contra o aquecimento global não trata somente da capacidade de prover um caminho para que todos os países cheguem à meta de zero emissões de carbono. Também se trata de encontrar as melhores formas de fornecimento de energia para os povos ao redor do mundo enquanto se trabalha para chegar à meta de zero emissões. Se temos de abrir mão dos combustíveis fósseis, pauta que se tornou urgente frente aos atuais desafios ambientais, países na África e uma parte significante da Ásia, incluindo a Índia, precisarão de um caminho alternativo para prover eletricidade a seus povos. Qual é então a melhor alternativa para os países pobres seguirem produzindo eletricidade – se eles deixarem de usar a rota dos combustíveis fósseis – que esteja sendo usada pelos países ricos? Essa pergunta também nos leva a questionar quanto essa fonte alternativa de produção de energia custará aos países pobres, e quem pagará a conta da transição para essas novas fontes de energia.

Discussões sobre essa questão, que é pertinente para solucionar a crise climática, estiveram completamente ausentes da agenda da COP26, que se encerrou no dia 13 de novembro. O financiamento de uma via de baixa emissão de carbono convenientemente foi removida dos compromissos sobre a redução das emissões de carbono, e agora enfrenta um futuro incerto, com países desenvolvidos deixando de cumprir sua “garantia” anterior de que financiariam as nações em desenvolvimento para “ajudá-las a se adaptarem às mudanças climáticas e mitigarem aumentos maiores nas temperaturas”.

Aqui, alguns números são importantes para entendermos o quanto os países desenvolvidos colaboraram para a atual crise climática e para as emissões de gases de efeito estufa. A União Europeia somada ao Reino Unido (EU-UK) produziu mais que duas vezes o total de emissões de carbono de todo o continente africano, tendo menos da metade da população da África. Com menos que um quarto da população da Índia, os Estados Unidos emitem uma quantidade significativa acima da emitida pela Índia – quase duas vezes mais.

É um argumento comum que, já que o custo da eletricidade de fontes renováveis está hoje abaixo dos custos da produção de eletricidade a partir de combustíveis fósseis, deveria ser possível a todos os países, ricos ou pobres, parar completamente o uso de combustíveis fósseis e adotar fontes renováveis – mas normalmente o tema do financiamento é ignorado. É verdade que o custo unitário de eletricidade gerado por fontes renováveis é hoje menor do que o gerado a partir de combustíveis fósseis. O que é ignorado, no entanto, é que para que os países pobres façam essa mudança eles necessitariam aumentar em três ou quatro vezes a capacidade de gerar eletricidade de fontes renováveis para atender à mesma demanda de energia atualmente atendida pelas plantas de combustíveis fósseis. Isso porque o fator de capacidade ou o fator de carga da planta, isto é; quanto de eletricidade uma planta elétrica produz em comparação com o que ela pode produzir continuamente e na máxima capacidade, é, para as fontes renováveis, entre 20 e 40% do que a das plantas baseadas em combustíveis fósseis. Não venta a todo momento; nem o sol brilha durante a noite. Isso significa que um país terá que aumentar em várias vezes a capacidade – e portanto investir mais capital – ao usar a rota das fontes renováveis para gerar a mesma quantidade de eletricidade que conseguiria dos combustíveis fósseis.

Para um país rico, esse nível de investimento em fontes renováveis pode não ser um problema. Mas para um país pobre que tenta desenvolver sua estrutura básica de eletricidade, rodovias, ferrovias e outras infraestruturas públicas, incluindo escolas, universidades e instituições de saúde, essa mudança para as fontes renováveis não será fácil sem o apoio financeiro dos países ricos. É por isso que a exigência dos países ricos de que os países pobres cumpram a meta de emissões zero, sem um compromisso de lhes prover qualquer apoio financeiro, é completamente hipócrita. Amanhã os países poderiam – e provavelmente farão – virar e dizer que os países pobres que assumiram o compromisso de garantir emissões líquidas zero agora devem tomar empréstimos dos países ricos a altas taxas de juros e cumprir suas promessas, ou então enfrentar sanções. Em outras palavras, isso levaria a uma nova forma de colonialismo verde.

O segundo problema com as fontes renováveis como fonte primária de eletricidade é que há um custo adicional significativo para construir malhas de armazenamento de energia de curto ou longo prazo. Essa capacidade de armazenamento é necessária para balancear as flutuações diárias e sazonais que poderiam ocorrer. Por exemplo, em 2021 a Alemanha se enfrentou com uma significativa redução dos ventos durante o verão, que levou a uma queda brusca na geração de energia eólica. Neste caso, a Alemanha equilibrou a baixa produção eólica aumentando a produção de eletricidade gerada a carvão, o que levou suas emissões de gás estufa a um aumento significativo. Em um cenário em que as plantas baseadas em carvão não existem, o que os países farão quando houver flutuações na sua capacidade de produção de energia renovável?

Embora flutuações diárias em países que usam fontes de energia renovável possam ser compensadas por gigantescas redes de baterias, isso não é viável no caso de variações sazonais. Esses países ou terão de usar esquemas de armazenamento e bombeamento de energia hidroelétrica ou armazenar hidrogênio em largas quantidades para usá-lo em células de abastecimento. O esquema de armazenamento e bombeamento hidroelétrico significa bombear água até uma reserva quando há um excedente de energia disponível na rede, e usá-la para produzir eletricidade quando há um déficit. Armazenar hidrogênio em quantidades grandes o suficiente para fazer frente a necessidades sazonais da rede é outra ideia que precisa ser explorada e testada quanto à sua viabilidade técnica e econômica.

O ponto é que uma mudança para uma rede elétrica que seja inteiramente baseada em energia renovável ainda está tecnologicamente a algum tempo de distância. É necessário desenvolver novas tecnologias para o armazenamento de energia. E é possível que nós dependamos do uso de fontes concentradas de energia – fóssil ou nuclear – para fazer frente às necessidades e flutuações diárias ou sazonais até lá.

A outra possibilidade é usar combustíveis fósseis sem as emissões de gás de efeito estufa. Isso significa não deixar que o dióxido de carbono chegue à atmosfera e, ao invés disso, bombeá-lo para reservas subterrâneas; ou a chamada “captura de carbono” e “sequestro de carbono”. Tais projetos de captura de carbono nos países ricos foram deixados de lado, sob a crença de que as fontes renováveis resolveriam o problema das emissões de carbono. Agora está claro que ter nas fontes renováveis a única fonte de energia em uma rede não basta, e o mundo pode ter de procurar por outras soluções.

Enquanto isso, a curto prazo, a energia nuclear não parece ser uma solução permanente na mudança para fontes de energia mais limpas, já que “não há tempo suficiente para salvar o planeta por meio da inovação nuclear”, de acordo com um artigo recente da Foreign Affairs. Isso significa que gás, óleo e carvão são as únicas soluções a curto prazo para enfrentarmos as flutuações na produção de energia. E aqui, a dupla face dos países ricos fica em evidência. Os países ricos, como os da Europa e os EUA, têm gás suficiente. Países mais pobres, como a Índia e a China, não têm; eles só podem contar com carvão. Ao invés de discutir a quantidade de gases de efeito estufa que cada país deveria emitir, os países ricos decidiram focar a discussão em quais combustíveis devem ser deixados de lado. Sim, é verdade que o carvão emite duas vezes a quantidade de dióxido de carbono emitida por plantas energéticas de gás na produção da mesma quantidade de energia. Mas se os países produzirem o dobro da quantidade de eletricidade a partir de plantas energéticas a gás, ao invés de a carvão, eles ainda estarão produzindo as mesmas emissões de carbono. Se os Estados Unidos, a União Europeia e a Inglaterra estão produzindo mais emissões de carbono do que a Índia e a África – que têm populações maiores – qual a razão do chamado somente à eliminação do carvão, enquanto tais objetivos não são fixados para os EUA, a UE e a Inglaterra para a emissão de carbono em plantas energéticas a gás?

É aqui que o tema da justiça energética se torna importante. O consumo per capita de energia dos EUA é nove vezes o da Índia, enquanto o consumo per capita do Reino Unido é seis vezes maior do que o indiano. Se considerarmos os países da África sub-saariana, como Uganda ou a República Centro-Africana, seu consumo de energia é ainda menor; isto é, os EUA consomem 90 e o Reino Unido 60 vezes mais do que esses países! Por que deveríamos discutir somente a extinção de alguns combustíveis e não a quantidade de emissões de carbono que cada país deve cortar?

Não estou levantando aqui a questão da partilha equitativa do espaço de carbono, nem como um país que usar mais do que sua justa parte do espaço de carbono deveria compensar os países mais pobres. Simplesmente estou apontando ao fato de que, ao falar sobre emissões zero e o banimento de certos combustíveis, os países ricos estão continuando a trilhar seu caminho de emissões de carbono excessivas, ao passo que apontam aos outros.

A demonstração mais patente de hipocrisia vem da Noruega. Ao mesmo tempo que ela está expandindo sua produção de óleo e gás, a Noruega, junto a outros sete países Nórdicos e Bálticos, tem pressionado o Banco Mundial para “pôr fim a todo o financiamento de projetos de gás natural na África e em outros continentes até 2025”, de acordo com um artigo entitulado “As políticas climáticas dos países ricos são colonialismo pintado de verde”, publicado na revista Foreign Policy e escrito por Vijaya Ramachandran, diretor de energia e desenvolvimento no Instituto Breakthrough.

Apesar da Noruega ser o exemplo mais descarado, outros 20 países propuseram resoluções similares na COP26, para acabar com o “financiamento de combustíveis fósseis no estrangeiro”, de acordo com o The Guardian. Para eles, as negociações sobre as mudanças climáticas são uma forma de manter suas posições dominantes na questão energética, enquanto recusam não só reparações climáticas mas também financiamento aos países mais pobres que tentam prover energia a seu povo.

É evidente que nenhum país do mundo tem um futuro sem acabar com a emissão de gases de efeito estufa. Mas se os países ricos não encontrarem um caminho para que os países mais pobres façam frente a suas demandas energéticas mínimas, eles testemunharão o colapso de grandes áreas de seus próprios países. É lógico imaginar que países da África sub-saariana podem continuar a viver com 1/90 do consumo de energia dos Estados Unidos sem que isso leve a consequências para todos os países?

O primeiro-ministro indiano Narendra Modi e seus seguidores podem acreditar que a Índia está a caminho de se tornar um país desenvolvido, ou até um superpoder. Mas o fato é que, no consumo de energia per capita, a Índia está mais próxima da África do que da China ou do clube de países ricos; os EUA, o Reino Unido e os países da UE. Tratar da questão climática sem tocar na justiça energética é só uma nova forma de colonialismo, mesmo que ela esteja vestida de verde. Ramachandran chama isso pelo nome, dizendo que “perseguir ambições climáticas nas costas dos povos pobres do mundo não é só hipócrita – é imoral, injusto, e a pior face do colonialismo verde”.

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