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Propaganda, recrutamento e hegemonia em “Top Gun: Maverick”

Em um contexto de confrontação mundial e baixa nos recrutamentos das Forças Armadas dos EUA, Top Gun: Maverick é um culto à linguagem semiótica do discurso propagandista militar do primeiro filme.

Em um contexto de confrontação mundial e baixa nos recrutamentos das Forças Armadas dos EUA, Top Gun: Maverick é um culto à linguagem semiótica do discurso propagandista militar do primeiro filme. Por Misión Verdad – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
Tom Cruise em cena de Top Gun: Maverick. (Foto: Divulgação / Paramount Pictures)

Top Gun: Maverick é uma sequência que aparece 36 anos após o primeiro filme, “coincidindo” com a ascensão de outra Guerra Fria e a inflexão geopolítica que está ocorrendo agora, devido aos avanços dos Estados Unidos e da OTAN contra a Rússia, usando a Ucrânia como um estado proxy.

Aquele primeiro filme oitentista aparentemente fresco, juvenil, cheio de testosterona, armas de combate aéreo e até aclamado como homoerótico (segundo Tarantino), foi responsável, segundo algumas fontes, por um aumento de 500% no recrutamento de pilotos para a Marinha dos EUA.

Sem querer dar spoilers, o novo capítulo de Top Gun é apresentado como um culto à nostalgia pelo cinema à moda antiga. Mas, mais do que isso, é também um culto à linguagem audiovisual e semiótica do discurso propagandista militar do primeiro filme.

Reaparece o personagem central hiper-estereotipado de um homem valente e “correto”, uma apresentação individualizada do unilateralismo estadunidense, desta vez inaugurando uma nova geração de jovens a um inimigo difuso, tecnologicamente ameaçador e “invisível” (já que ele é não nomeado explicitamente no filme), que “ameaça a paz e a segurança” dos estadunidenses e do mundo ocidental.

Tal como uma reedição estilizada da era Reagan, Top Gun: Maverick evoca a “superioridade militar” estadunidense e as contradições do atuais como resultantes da transição tecnológica, já que esta é a era, segundo o filme, do fim dos pilotos de caça, e da entrada na era dos drones e operadores de joystick executando operações reais como se tratasse de um videogame. Puro romantismo militarista.

Segundo “Pete Maverick”, o denominador que fará a diferença continuará sendo a coragem e a ousadia de homens (e também mulheres, não esqueçamos a inclusão) valentes e cheios de bravura para lutar contra “as forças do mal”.

Um exercício de relações públicas e propaganda

Top Gun recebe o nome de uma academia real de altos estudos para pilotos da Marinha dos EUA. Assim como na primeira parte, a produção contou com o apoio da Marinha, que emprestou seus aviões e pilotos para as gravações.

Tom Cruise (ator e produtor) garantiu que ele e o elenco passassem por um longo treinamento para entrar em aviões e não vomitar na câmera ou desmaiar muitas vezes durante as gravações. A Marinha alugou seus jatos F-18 por mais de 11 mil dólares por hora, e a produção custou cerca de 152 milhões de dólares.

Em teoria, fazer um filme com aviões de combate reais poderia ser mais caro do que um com aviões gerados por computador. Os custos de Top Gun: Maverick são comparativamente inferiores aos de outras produções com alto uso de imagens digitais. Cada filme da saga “Vingadores” ultrapassa os 350 milhões em custos e “Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas” (que não teve o elenco mais caro do cinema) custou 385 milhões de dólares. Sem dúvida alguma, a nova versão de Top Gun teve custos externalizados, ou seja, não assumidos ou declarados pela produtora do filme.

Com pouco CGI (imagens geradas por computador), muito “realismo” e muitos detalhismo sobre equipamentos militares em primeiro plano, vale dizer que as autoridades militares fizeram questão de aprovar o roteiro do filme antes de contribuir para sua realização.

Embora o filme tenha sido gravado para 2018 e sua apresentação tenha sido adiada pela pandemia, seu efeito hoje é claramente incrementado pelo clima geopolítico e bélico. No entanto, antes mesmo de sua realização começar, já havia preocupação na Marinha dos EUA em aumentar os níveis de recrutamento.

A situação não havia melhorado, até agora. Na mesma época em que Top Gun: Maverick foi lançado, os números de recrutamento estavam “abaixo da meta”, disse o chefe de operações navais, almirante Mike Gilday, a membros do Comitê de Serviços Armados da Câmara do Senado durante uma audiência para o pedido de orçamento de defesa do ano fiscal de 2023.

“Acho que enfrentamos um grande desafio este ano”, disse Gilday aos legisladores no mês passado. “Acho que alcançaremos nossos números na força ativa este ano, mas por uma pequena margem.” Teriam algo a ver com isso a guerra na Ucrânia e Top Gun?

O esforço para recrutar e manter os pilotos tem sido um desafio contínuo, segundo as autoridades. O serviço de pilotos em 2018 ficou aquém do esperado em 1.242 vagas para aviadores, e as Forças Armadas estavam perdendo seus melhores pilotos para lucrativas carreiras em companhias aéreas privadas, segundo os informes. A Marinha na época previu que levaria até 2023 para fechar esta lacuna.

As contradições do sistema armamentístico dos EUA agora têm um ponto de convergência. A indústria militar norte-americana, que propõe o uso de drones e seu gerenciamento remoto por operadores humanos ou por meio de sistemas de inteligência artificial aplicados ao campo militar, é a mesma indústria que fornece ao governo norte-americano a infraestrutura de serviços para mais de 5,7 mil caças, aviões polivalentes e outros, que permanecem em serviço e exigem pilotos ao estilo “antiquado”.

Sendo o déficit de pilotos uma realidade, é evidente que os processos de propaganda e relações públicas para aumentar o recrutamento são necessários. Ainda mais no complexo industrial-militar mais caro do mundo.

Para falar apenas deste ano, Biden solicitou 753 bilhões de dólares de gastos globais em defesa e segurança nacional para o ano fiscal de 2022, montante que acabou sendo aumentado para 782 bilhões, sem incluir o valor total de “ajuda militar” que se fornecerá à Ucrânia no restante do ano.

A hegemonia militar dos EUA é uma realidade, mas seu épico triunfante e a suposta retidão de seus motivos é uma farsa. Essas dimensões devem ser compreendidas de forma diferenciada, de acordo com a magnitude dos eventos.

O primeiro Top Gun encorajou crenças no ideário de superioridade militar em um Estados Unidos derrotado e desmoralizado pouco antes no Vietnã. Top Gun: Maverick aparece após a humilhante retirada e derrota dos Estados Unidos depois de sua ocupação do Afeganistão por 20 longos anos.

De acordo com o filme (alerta de spoiler), Pete Maverick é o único piloto estadunidense que havia abatido pilotos inimigos em combate aéreo “frente a frente” desde o Vietnã. Na realidade e oficialmente, nada disso aconteceu. O combate aéreo moderno não tem mais ases de combate se batendo frente a frente, nem há registro disso nos últimos 40 anos.

Na ficção, Pete Maverick conseguiu, a partir de um F-14 Tomcat (projetado na década de 1970), derrotar um grupo de Sukhois Su-57 russos de quinta geração. Algo inconcebível de um ponto de vista militar. Mas, na realidade, os Su-57 testam suas armas em operações reais na Ucrânia, são amplamente implantados porque são completamente furtivos e, por outro lado, os atuais mísseis hipersônicos russos que atacam com precisão alvos militares ucranianos são e serão imbatíveis por qualquer sistema antiaéreo pelos próximos 15 ou 20 anos.

A propaganda é também uma arma para mudar as percepções da realidade e, assim, fabricar a suposta superioridade operacional-tecnológica dos EUA. Precisamente neste último ponto está ocorrendo agora a inflexão que abre o caminho para o fim da hegemonia militar daquele país.

Top Gun: Maverick é um filme de propaganda versátil e uma de suas várias razões de ser é justificar o alto custo de seu aparato militar para o público daquele país. Mas é também, sem pretender sê-lo e apesar do seu romantismo, uma evocação de uma superioridade em declínio, obsoleta e cada vez menos credível, como o próprio Maverick em pessoa.

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