Atendendo a um pedido da reunião plenária das Nações Unidas de 16 de dezembro de 2021, o relator especial sobre o direito à alimentação, Michael Fakhiri, apresentou um relatório provisório à assembleia geral que inclui uma análise das questões emergentes da pandemia de Covid-19 e seu impacto na segurança alimentar e nutricional.
Em seu resumo, ele afirma que há uma crise alimentar, mas a maioria dos governos nacionais não deu uma resposta internacional substantiva a ela. Seu relatório destaca as restrições estruturais e descreve como uma transição justa para a agroecologia poderia ser um caminho a seguir.
De acordo com o relatório de Fakhiri, a fome vem crescendo desde 2015. Em 2021, entre 702 e 828 milhões de pessoas foram afetadas por ela, 103 milhões a mais do que durante o período de 2019 a 2020, e 46 milhões a mais do que em 2020.
A desigualdade de gênero na segurança alimentar, que já vinha crescendo em 2020, se expandiu ainda mais de 2020 a 2021, estimulada especialmente por diferenças nas regiões da Ásia, América Latina e Caribe. Em 2021, 31,9% das mulheres estavam em insegurança alimentar moderada ou grave, em comparação com 27,6% dos homens.
A desigualdade aumentou acentuadamente durante a pandemia de Covid-19, com a riqueza de bilionários e os lucros de corporações subindo a níveis recordes, particularmente no setor alimentar, onde os ganhos estavam aumentando na ordem de 1 bilhão de dólares a cada dois dias. Em 2021, a multinacional de comércio de alimentos Cargill obteve quase 5 bilhões de dólares em lucro líquido, seu maior superávit em 156 anos de história.
A pandemia da fome pode ser atribuída ao fracasso da governança global. Não é apenas um problema de saúde, mas também um desafio aos direitos humanos, cujo impacto é determinado por uma liderança fraca, desigualdade socioeconômica, racismo sistêmico e discriminações estruturais.
A invasão russa à Ucrânia trouxe à tona a questão dos alimentos, já que 26 países tem ao menos 50% de suas importações de trigo provenientes dos dois estados em guerra. Apesar disso, a subida nos preços dos grãos e no óleo de cozinha não é resultado da escassez em si, mas sim de acumuladores, comerciantes e especuladores se aproveitando da situação.
A razão principal para que o mundo esteja vivendo uma crise alimentar é a falha em cooperar e coordenar esforços para aliviar seus efeitos, o que permite em seu lugar a crescente influência do agronegócio e da especulação de commodities.
De fato, o agronegócio aproveitou a pandemia para lucrar, e usou seu poder financeiro para intimidar e pressionar os governos a interromper medidas que promovem o direito à alimentação e a uma alimentação saudável.
Consequentemente, as desigualdades existentes foram agravadas pela pandemia. Mesmo antes do início do Covid-19, os trabalhadores agrícolas e de alimentos experimentavam as maiores incidências de pobreza no trabalho e insegurança alimentar.
Em 2021, o número de crianças em trabalho infantil aumentou para 160 milhões, dos quais 70% estavam na agricultura. Mas, apesar da crise alimentar sem precedentes de hoje, o mundo aguarda um compromisso multilateral em nome dos Estados membros da ONU para realizar o direito à alimentação.
A fim de melhorar essa difícil situação, o relator sugere que o quadro jurídico internacional para o direito à alimentação seja atualizado para incluir políticas de comércio que sejam submetidas à soberania alimentar e os direitos trabalhistas, ao invés de se pautar simplesmente pela lógica de compra e venda de commodities comestíveis.
No entanto, os estados enfrentam restrições estruturais que tornam improváveis gastos adicionais. Em resposta à pandemia, todos eles tomaram mais empréstimos, fazendo com que suas dívidas aumentassem no ritmo mais rápido em cinco décadas e elevando os pagamentos da dívida dos países pobres aos níveis mais altos desde 2001.
Portanto, à medida que os preços dos alimentos sobem, os países se deparam com a escolha de alimentar as pessoas ou pagar o serviço da dívida. É evidente que o sistema financeiro internacional prevalecente, dominado pelos ricos estados ocidentais, impede que os governos cumpram suas obrigações de alimentar seus povos.
Desde a década de 1950, o sistema alimentar mundial foi gradualmente industrializado. A produtividade não foi medida em termos de saúde humana e ambiental, mas exclusivamente em termos de produção e crescimento econômico. Esse processo promoveu uma dependência de máquinas baseadas em combustíveis fósseis e insumos químicos, substituindo práticas agrícolas regenerativas e integradas de longa data.
Apesar de um aumento de 30% na produção de alimentos desde meados da década de 1960, a desnutrição é abundante – ilustrando assim que o problema não é a falta de alimentos, mas a desigualdade e outros impedimentos sistêmicos. O problema fundamental não é que o acesso dos agricultores a fertilizantes químicos tenha sido esgotado pela guerra na Ucrânia, é que muitos agricultores dependem deles em primeiro lugar.
Os fertilizantes químicos esgotam os nutrientes do solo e causam danos ambientais através do escoamento em aquíferos e cursos de água. No curto prazo, é importante que os agricultores tenham acesso a fertilizantes, mas no longo prazo o objetivo final deve ser a independência deles.
A agroecologia é definida como a aplicação de práticas ecológicas aos sistemas e práticas agrícolas e, na visão de Fakhri, ela é essencial para cumprir o direito à alimentação, adaptar-se às mudanças climáticas e aumentar a biodiversidade. Como prática agrícola, é de mão-de-obra intensiva e abrange uma série de técnicas de produção derivadas de conhecimentos locais que se baseiam em recursos imediatamente disponíveis.
A União Internacional dos Trabalhadores da Alimentação (UITA) apoia amplamente o relator, com a condição de que deve haver uma transição justa para os trabalhadores agrícolas e suas famílias. Para que isso aconteça, a UITA diz que é fundamental que os sindicatos tenham voz no planejamento da transição, para que não fiquem para trás.
Empregos verdes seguros com representação sindical devem ser fundamentais em uma mudança radical do atual sistema desigual e lucrativo de produção e consumo sem fim, rumo a um modelo mais sustentável onde as preocupações dos trabalhadores e pequenos produtores são centrais.
O acesso à terra e a garantia de direitos de posse para quem nela trabalha são pré-requisitos para o gozo do direito à alimentação – e isso significa restringir o poder corporativo. Os sistemas alimentares emitem aproximadamente um terço dos gases de efeito estufa do mundo, impulsionados pela agricultura intensiva e políticas alimentares orientadas para a exportação.
O “grupo ABCD”, assim chamado pela conveniência alfabética de suas iniciais, ADM, Bunge, Cargill e (Louis) Dreyfus, representam entre 70% e 90% do comércio global de grãos, e quatro companhias agroquímicas, incluindo a Bayer e a BASF, controlam cerca de 60% do mercado global de sementes e 75% do mercado de pesticidas.
A prioridade delas é o lucro dos acionistas e não o bem público. Além disso, os estados são constrangidos em suas ações em relação à política alimentar por causa de decretos da Organização Mundial do Comércio, que limitam o apoio doméstico e a participação pública, juntamente com direitos de propriedade intelectual que favorecem as empresas transnacionais.
É bastante claro que os modos de produção capitalistas existentes e os termos de comércio impostos pelas instituições internacionais dominadas pelo Ocidente são em grande parte os culpados pelas pessoas não terem o suficiente para comer.
O excelente relatório de Fakhri, que pode ser encontrado no site da ONU, é leitura essencial para quem deseja ter uma compreensão mais clara de como o sistema funciona. No entanto, como Karl Marx disse: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras. O ponto é, no entanto, mudá-lo.”