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Da rebelião popular ao fiasco constitucional: o que ocorreu no Chile?

Os resultados do 4 de setembro deixaram um Chile que rechaça majoritariamente a Constituição atual, mas que tampouco conseguiu formar um consenso e nem sequer uma maioria para um documento alternativo.
Os resultados do 4 de setembro deixaram um Chile que rechaça majoritariamente a Constituição atual, mas que tampouco conseguiu formar um consenso e nem sequer uma maioria para um documento alternativo. Por Cecilia Vergara M. e Maximiliano Rodríguez | CLAE – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
O atual presidente chileno, Gabriel Boric, durante cerimônia de mudança de gabinete. (Foto: Vocería de Govierno)

Como é que o Chile passou de uma rebelião popular a um triunfo pesado do rechaço à nova Constituição? Qual é a explicação de tal virada à direita? Apoiadores do Rechaço saíram festejando o triunfo contra o “revanchismo”, o “outubrismo radical” e contra um texto constitucional “refundacional” e oposto à “alma do Chile” e ao “senso comum dos chilenos”. O que ocorreu no Chile para que, depois de tudo, nada mudasse?

Como um processo que começou com um nível de apoio poucas vezes visto na história terminou mutilado? Onde foi parar o apoio ao processo constituinte? Tudo indica que pôde mais o poder daqueles que viram a possibilidade de acabarem seus ilegítimos privilégios, conseguidos desde a ditadura e incrementados nos anos dessa interminável transição, e que jogaram a guerra mais suja conhecida na história do Chile.

Estas são algumas das perguntas deixadas pelo resultado do plebiscito constitucional de 4 de setembro e que trataremos de explicar, somando análises próprias e de terceiros.

– A derrota começou a ser gestada no 15 de novembro de 2019, quando a direita, a antiga Concertación e o Frente Amplio assinaram o Acordo pela Paz para salvar o governo neoliberal de Sebastián Piñera e desviar a força da mobilização para um caminho institucional, por um processo constituinte absolutamente condicionado pelo empresariado, para que este caminho não fosse nem livre nem soberano. O acordo permitiu golpear os setores mais combativos da mobilização, transformando-os em presos políticos ou reprimindo-os brutalmente, enquanto se garantia a impunidade à força policial dos Carabineros.

– Com 80% de aprovação no primeiro plebiscito, para estabelecer a Convenção Constitucional, os independentes, os trabalhadores e o povo acreditaram constituir uma instituição que se oporia aos corruptos de sempre, mas logo veio a decepção e a ruptura de milhões com o processo constituinte. Porque a Convenção deixou Piñera governar tranquilamente, não fez nada frente à perda de postos de trabalho e frente ao crescimento da pobreza, tampouco pelos presos políticos nem contra os repressores. A Convenção se converteu só em outro Parlamento, como queria a direita, a Concertación e – lamentavelmente – os que hoje compõem o atual governo.

– Na Convenção, a maioria dos “independentes” cedeu controle aos partidos, que deixaram de fora do novo texto constitucional demandas importantes como a nacionalização das riquezas naturais para impor uma proposta constitucional que, apesar dos avanços democráticos, deixou intacto o modelo econômico que causou profunda desigualdade no país. Assim, se espalhou a confusão diante de uma proposta que não atendia às principais demandas pelas quais o povo foi às ruas.

– Na mídia, alguns cientistas políticos atribuem a derrota da nova Constituição mais a um rechaço ao processo de redação pela Convenção Constitucional do que ao texto proposto em si. Outros apontam à manipulação midiática financiada por grandes empresários e à falta de clareza do governo, que mostrou suas divergências com o texto proposto pela Convenção eleita por voto popular.

– Houve também uma rejeição da política do espetáculo conduzida na Convenção (alguns  deputados constituintes apresentaram propostas maximalistas, chamativas e simbólicas, embora não tenham contado com os votos para aprová-las), e a combinação desta com a política tradicional num contexto de um forte impulso destituinte e um sentimento anti-establishment, bem como a reação das identidades tradicionais frente à força que as identidades subalternas tiveram no processo: junto da definição do Chile como um Estado plurinacional, se propunha direitos coletivos às comunidades indígenas e a instauração de um sistema de justiça indígena. Não se conseguiu promover a ideia de plurinacionalismo dentro de uma estrutura que remetesse a um sentido patriótico inclusivo.

– Um plebiscito que tinha duas alternativas na cédula de votação acabou se orientando sob quatro opções: aprovar, aprovar para reformar, rejeitar e rejeitar para renovar. Na última pesquisa antes do plebiscito, 17% se declaravam a favor do rechaço, 35% a favor do rechaço para renovar a Constituição proposta, 32% a favor da aprovação para reformar a proposta e só 12% queriam aprovar e aplicar o novo texto, tal como saiu da Convenção. O Rechaço ganhou em todos os níveis socioeconômicos, sem grandes diferenças. O Aprovo ganhou entre os jovens de 18 a 30 anos, e o Rechaço em todos os outros grupos etários: a campanha pelo Rechaço conseguiu formar uma aliança social e política mais diversa que a do Aprovo.

– O novo governo, com o Partido Comunista do Chile e o Frente Amplio na liderança, acabou significando uma grande decepção. Gabriel Boric e seu gabinete negaram as medidas mais básicas para fazer frente ao descalabro da inflação e salários de miséria, e deixaram intactos os benefícios aos grandes empresários. Além disso, prosseguiram com a dura repressão estatal ao povo mapuche e ao povo chileno em geral. Estar contra o processo constituinte passou a ser uma forma de ser oposição ao novo governo. Parte da energia contra a institucionalidade política passou para o lado do Rechaço.

– Boric e seus partidários assinaram um acordo para reformar a nova Constituição em benefício do empresariado, negociando – como queriam os ex-presidentes “socialistas” Ricardo Lagos e Michelle Bachelet –, a nova Constituição com os setores pró-rechaço, sustentando que era necessário fazer uma “constituição de todos”. Também não houve mobilizações das principais organizações sindicais, estudantis e populares do país, lideradas por estes mesmos partidos.

– A campanha da direita e do Rechaço, as mentiras e o medo, se aproveitaram das brechas de desilusão abertas por aqueles que hoje dirigem o governo, que encabeçaram o Aprovo, que negociaram com a direita na Convenção e que, durante a rebelião popular de 2019, salvaram Piñera. Por isso, milhões de trabalhadores, estudantes, mulheres e povos originários votaram expressando esta confusão, ou castigando diretamente as meias medidas e enganos de um governo que prometeu mudar as coisas.

– O certo é que a direitista frente Apruebo Dignidad e os velhos partidos puderam conduzir todo o processo político até agora, porque não se conseguiu construir uma alternativa política que lutasse pelas demandas mais imediatas do povo, o que permitiria enfrentar as manobras e enganos na Convenção.

– O triunfo do Rechaço permite à direita seguir empurrando um governo que já construiu todas as pontes com os chefes do pinochetismo, não tocando em Piñera nem os oficiais que impuseram o terror contra a rebelião popular, militarizando Wallmapu e reprimindo as mobilizações. E, sobretudo, comprometendo-se a um acordo nacional para construir a tal “constituição de todos”.

– Ambos os lados concordaram que qualquer opção que vencesse deveria levar a um novo caminho de reforma, mas agora inteiramente liderado pelo corrupto Parlamento. E, para isso, propuseram instalar um cenário de reformas que tranquilize os de baixo. O caldo de descontentamento social cresce, e o triunfo conjuntural do Rechaço não os fizeram esquecer disso.

– Era importante aprovar a nova Constituição porque o triunfo do Rechaço fortalecerá os setores mais reacionários do país. Boric já fez sua primeira mudança de gabinete após o Rechaço, colocando nele quadros da antiga Concertación e do Partido pela Democracia (PPD), enquanto a primeira manifestação estudantil era duramente reprimida pelos Carabineros, como se o presidente fosse ainda Piñera.

– Se fala de um eventual “segundo tempo” do processo constituinte e do próprio governo. Mas, para isso, é indispensável uma mudança profunda e estrutural, não só de rostos e figuras, mas também de propostas, de prioridades, da forma de comunicar e da ampliação da coalizão do governo. Os resultados do 4 de setembro deixaram uma nação que rechaça majoritariamente a Constituição vigente, mas que tampouco conseguiu formar um consenso e nem sequer uma maioria para um documento alternativo. E, por mais que seja inegável a necessidade de deixar para trás a Constituição pinochetista, o caminho e o calendário que terá de ser seguido para a elaboração de uma nova Carta Magna permanecem indefinidos.

– O desafio é chegar a um acordo que permita finalmente a execução de um novo texto constitucional com amplo e transversal apoio popular, mas isso, agora, ficou nas mãos dos partidos e do Congresso. Seria bom que o governo de Gabriel Boric lembrasse a rapidez com que o apoio e a esperança depositados em um processo podem cair se essas expectativas forem traídas. E também que se os canais institucionais para mudanças forem fechados, o povo sempre sabe como abri-los… mesmo com a repressão desencadeada nas ruas.

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