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Um estúpido fato real

O domínio britânico não se estabeleceu só sobre a Ásia e África, mas também sobre o Brasil. Jornais não deveriam homenagear rainha, nem aplaudir arrogância britânica como se fosse obra de civilidade.
O domínio britânico não se estabeleceu só sobre a Ásia e África, mas também sobre o Brasil. Jornais não deveriam homenagear rainha, nem aplaudir arrogância britânica como se fosse obra de civilidade. Por Pedro Marin | Revista Opera
Cortejo do funeral da a rainha Elizabeth II em Londres. 19/09/2022. (Foto: Lauren Hurley / No 10 Downing Street)

Nesta Revista Opera, por vezes seguimos certos princípios editoriais que, em meio ao turbilhão de estupidez midiática, acabam se convertendo em ausências. O caso, desta vez, é a morte da rainha Elizabeth II. Não demos prioridade alguma ao fato, porque partimos do princípio de que é fato que não demanda prioridade alguma; é coisa sem importância.

O que tornou esse princípio uma ausência, no entanto, foi a profundidade da cobertura dedicada, nos grandes veículos, à morte e ao funeral da rainha. Certamente, os grandes jornais têm de noticiar este fato – coisa a que não nos propomos – mas a intensidade e a forma de cobertura não só revelam o peso que o acontecimento têm para os jornais, mas também determina o peso que ele tem para o público, isto é; informa o público do grau de importância do fato. As repetidas notícias sobre este ou aquele aspecto ritualístico do funeral; o fato de que os principais portais de notícia tenham por dias adornado suas capas com fotos de coroas, flores e caixões; os destaques intermináveis ao ato deste ou aquele membro da família real; tudo isto nos informa do quão importante é para os jornais a morte da rainha, o que, portanto, informa ao público também a importância que deveria dar a tal evento.

Essa dedicação na cobertura da morte da rainha foi certamente mais intensa do que aquela sobre as condições do Afeganistão após a retirada dos EUA. Mais intensa, em poucos dias, do que a feita sobre a guerra do Iêmen, que se arrasta já há oito anos. Não falarei da África, este continente esquecido, apesar de termos, brasileiros, muito mais a agradecer a qualquer senhora moçambicana que à rainha da Inglaterra. Na semana passada, militares revelaram sua intenção de fazer no Brasil o que é sim, na prática, uma contagem paralela dos votos. Todos os esforços do mundo para normalizar a trágica situação! Quanto a rainha, todos os esforços para dar tons trágicos a um fato de cansativa normalidade.

Não sou muito afeito ao decolonialismo – seus seguidores parecem por vezes concentrar sua crítica mais em dominações passadas do que nas presentes – mas eu haveria de concordar com estes companheiros que a cobertura da morte de Elizabeth leva à constatação de uma permanência, ainda que subjetiva, da doença colonial tintilando na cabeça de nossos jornalistas. É ao mesmo tempo insano e revelador o quanto os jornais carregaram nas tintas para destacar todo tipo de bizarrice ritualística enquanto manifestantes contra a monarquia eram presos no Reino Unido. O contraste com a cobertura sobre a República Popular Democrática da Coreia, onde qualquer curiosidade cultural é logo descrita como evidência da violência extraordinária de um regime totalitário e sanguinolento, é evidente: quanta chacota foi feita da morte de Kim Jong-Il, em 2011, e das manifestações públicas dos coreanos em luto. Ao mesmo tempo, com quanta pompa descrevem a passagem do caixão real inglês para lá e para cá.

Esta insanidade midiática tomou tons mais gritantes com a viagem do presidente Jair Bolsonaro para a Inglaterra. Arrastando a sua fauna usual de seguidores também em Londres, houve episódios de confrontações e discussões de bolsonaristas com a imprensa e cidadãos ingleses. A imprensa brasileira deu destaque também a estes acontecimentos, mas com um tom geral de “bolsonaristas fazem Brasil passar vergonha na Inglaterra”. Destaca-se um vídeo, em que um cidadão inglês, confrontando brasileiros bolsonaristas, diz calmamente: “você está desrepeitando o Brasil”. Logo sobe o tom, gritando: “hoje é o funeral da rainha! Hoje é é o dia do funeral da rainha! Mostre alguma merda de respeito! Mostre algum respeito”. A cobertura deste fato se orientou para a criação de uma imagem de que a violência ali é a do bolsonarista. Mas, em meio à insanidade de brasileiros que apoiam o atual presidente – até em solo estrangeiro – temos também a arrogância do gringo que, aos gritos, exige respeito do brasileiro à sua monarca morta. 

 

O Brasil não foi colonizado por ingleses, como tantos outros países nas margens do mundo, mas foi o Império Britânico que, a partir do século 19, aproveitou-se de nossa dependência, traçou algumas de nossas fronteiras, limitou nosso desenvolvimento. Nelson Werneck Sodré lembra por exemplo do primeiro empréstimo externo brasileiro, tomado em 1824, logo após a Independência: “Este empréstimo só foi liquidado em 1890, pagando o Brasil mais de 65 anos de juros. Ao empréstimo de 1824 seguiu-se o de 1825, chamado ‘empréstimo português’ porque, galgando o reconhecimento de nossa independência pela antiga metrópole, assumíamos a responsabilidade por empréstimo tomado pelo governo de Lisboa em Londres. […] A série de empréstimos faria com que as finanças brasileiras passassem ao controle britânico, de tal sorte que, entre muitas outras observações no mesmo sentido, M. A. Jay poderia escrever: ‘A abolição aparente do sistema colonial não foi, portanto, mais que uma mudança de metrópole: o Brasil cessou de depender de Portugal para tornar-se uma colônia da Inglaterra.’ Ou o economista Normano, quando escreveu: ‘O Brasil foi, durante longo período, um membro não oficial do império econômico da Grã-Bretanha’.”

 Leia também – O jornalismo asséptico é incapaz de lidar com vermes 

Ou seja, o imperialismo britânico se abateu longamente também sobre o Brasil, tão profundamente quanto o colonialismo português; foi verdadeiramente herdeiro dele. A hegemonia dos Estados Unidos em nossa região, e seu domínio ainda presente sobre nosso país só se estabeleceu inteiramente no século 20. Tal qual à dependência com Portugal se seguiu a dependência com os ingleses, o imperialismo estadunidense foi herdeiro do britânico. Não há razão nenhuma para que nossos jornais homenageiem a rainha, nem que dêem tons de civilidade a um inglês exigindo isto de um brasileiro.

Enfim, aqui está o segundo texto que publicamos por ocasião do estúpido fato real que é a morte da velha senhora. Um fato cabível aos séculos passados, hoje digno somente de silêncio, mas que em meio às homenagens exige protestos.

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