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Conectando os pontos entre a devastação climática e os lucros dos combustíveis fósseis

Com o Paquistão afogado, Porto Rico lançada na escuridão e os habitantes de Jackson, nos EUA, sem água, é passada a hora de um imposto climático sobre as grandes petroleiras.

Com o Paquistão afogado, Porto Rico lançada na escuridão e os habitantes de Jackson, nos EUA, sem água, é passada a hora de um imposto climático sobre as grandes petroleiras. Por Sonali Kolhatkar | Globetrotter – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
Uma estrada na região de Sinde, no Paquistão, após inundações de setembro de 2022. (Foto: União Europeia / Abdul Majeed)

O que o Paquistão, Porto Rico, e a cidade de Jackson, no Estado do Mississippi, nos Estados Unidos, têm em comum? Todos esses lugares recentemente enfrentaram tempestades e inundações relacionadas ao clima, que resultaram na perda de casas, acesso à eletricidade e à água. Mas, e isso é ainda mais importante, todas são regiões pobres e habitadas por comunidades não-brancas – as vítimas preferenciais da injustiça climática. Elas enfrentam a inação de governos negligentes e lutam para sobreviver enquanto as companhias de combustíveis fósseis têm lucros maciços – uma situação que o secretário-geral da ONU, António Guterres, chamou de “loucura moral e econômica.”

O Paquistão, que depende de suas monções anuais para a sua indústria agrícola, tem enfrentado inundações sem precedentes desde junho, que impactaram 30 milhões de pessoas e mataram mais de 1,5 mil, um terço delas crianças.

Zulfiqar Kunbhar, um jornalista de Carachi com experiência na cobertura das mudanças climáticas, explica que “as coisas estão críticas” nas áreas afetadas pela chuva no Paquistão. Ele tem visitado as regiões impactadas pelas chuvas e viu em primeira mão a gigantesca “perda agrícola e perda dos meios de subsistência” entre as comunidades agrícolas do país.

Sinde, uma província de baixa altitude do Paquistão, não é só uma das mais populosas do país (com cerca de 47 milhões de habitantes), como também produz cerca de ⅓ da produção agrícola do país, de acordo com Kunbhar. 20 anos atrás, a província enfrentou uma seca extrema. No verão de 2022, a província estava inundada, com a água alcançando a altura do peito.

A ONU tem alertado que a água poderia levar meses para baixar, e que isso traz sérios riscos à saúde, à medida que doenças mortais como a malária cerebral têm surgido. Kunbhar diz que províncias como Sinde estão enfrentando tanto o “curso da natureza” quanto a “má gestão” governamental.

A soma de mudanças climáticas com inação governamental em medidas de mitigação e enfrentamento resultam, para os pobres, em consequências mortais. Essa mesma equação aflige Porto Rico, há muito relegado ao status de território dos Estados Unidos. Em setembro deste ano, no quinto aniversário da passagem do Furacão Maria, que devastou o país em 2017 e deixou quase 3 mil pessoas mortas, outro furacão, chamado Fiona, derrubou a eletricidade de toda a ilha

Julio López Varona, chefe de projetos no Centro para Ação Democrática Popular, falou comigo de Porto Rico, declarando que “a tempestade estava extremamente lenta, a uma velocidade de 12 a 14 quilômetros por hora” e, por conta disso, “ela atingiu a ilha por mais de três dias” com uma chuva implacável. “As comunidades foram completamente inundadas; as pessoas foram deslocadas”, diz ele. Até que a rede elétrica caiu completamente.

Dias após a passagem da tempestade, milhões de pessoas ainda estavam sem energia – algumas até mesmo sem água corrente –, o que levou a Casa Branca a declarar um grande desastre em Porto Rico.

Porto Rico após passagem do Furacão Fiona. (Foto: U.S. Coast Guard)

Mesmo nos Estados Unidos, são as comunidades pobres e negras que têm sido mais afetadas pelos impactos da mudança climática. A capital de Mississippi, Jackson, com uma população negra de 82% e números cada vez maiores de imigrantes latino-americanos, tem por anos enfrentado problemas com sua infraestrutura de água.

Lorena Quiroz, fundadora da Aliança Imigrante por Justiça e Igualdade, um movimento social de Jackson que organiza diversas comunidades, conta como os habitantes têm tido dificuldades em acessar água corrente e limpa desde que grandes chuvas e enchentes atingiram a planta de tratamento de água neste verão.

“São décadas de falta de investimentos nesta comunidade majoritariamente negra e agora latina”, diz Quiroz. Em um Estado governado por conservadores brancos, Jackson é governada por um prefeito progressista e negro, Chokwe Antar Lumumba, que atualmente está processando o governo do Estado por sua inação em relação à infraestrutura de água da cidade.

Quiroz diz que “é doloroso ver como o governo não está fazendo o que deveria, como o governo estadual está negligenciando sua população mais vulnerável.”

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Repetidamente o mesmo padrão emerge em um planeta enfrentando mudanças climáticas catastróficas. Deixando de lado o fato de que seguimos expelindo gases de efeito estufa na atmosfera enquanto o planeta queima e inunda, os impactos do aquecimento climático são enfrentados de forma desproporcional por comunidades pobres e não-brancas, como evidenciam o Paquistão, Porto Rico, Jackson, e outros lugares.

O líder da ONU, Guterres, tem feito o que pode para usar de sua posição para responsabilizar os culpados, dizendo em seu discurso de abertura à Assembleia Geral da ONU em Nova York recentemente: “É hora de colocar os produtores de combustíveis fósseis, investidores, e facilitadores, em aviso prévio. Os poluidores devem pagar.” Guterres destacou especificamente a importância de tributar as empresas de combustíveis fósseis para cobrir os danos que estão causando em lugares como o Paquistão. De acordo com a Associated Press, “as empresas petrolíferas em julho relataram lucros sem precedentes de bilhões de dólares por mês. A ExxonMobil registrou lucros trimestraisde 17,85 bilhões de dólares, a Chevron de 11,62 bilhões de dólares e a Shell de 11,5 bilhões de dólares”.

Compare esta sorte inesperada com as incontáveis pessoas que perderam suas casas no Paquistão, e que agora buscam viver em barracos à beira da estrada, onde encontram um terreno mais alto para fugir das inundações. “Se você perde uma colheita, é um dano sazonal, mas se você perde a casa, você tem que pagar por anos a fio”, diz Kunbhar.

A visão de Kunbhar sobre o que está acontecendo no Paquistão se aplica igualmente a Porto Rico e Jackson: a sociedade está “dividida entre os que têm e os que não têm”, diz ele. “Os mais pobres entre os pobres, que já estão enfrentando crises econômicas de geração em geração, são os mais vulneráveis e as [piores] vítimas desta crise.”

Em Porto Rico, Varona vê comunidades deslocadas perdendo suas terras para comunidades mais ricas. Ele diz que o governo local em Porto Rico está “permitindo que milionários e bilionários venham e não paguem impostos, e realmente se apossem de muitos dos lugares que são mais seguros para as comunidades”. Este é um “deslocamento quase intencional de comunidades […] que historicamente viveram aqui”, diz ele.

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E, em Jackson, Quiroz diz que está horrorizada com a “maldade” dos enclaves mais ricos do Mississippi e do governo estadual. “É muito difícil compreender a maneira como nosso povo está sendo tratado.”

Embora díspares e aparentemente desconectados uns dos outros, com muitos fatores complicadores, existem linhas rígidas que conectam as vítimas do clima aos lucros dos combustíveis fósseis.

As comunidades pobres do Paquistão estão pagando o preço pelos bilhões da ExxonMobil.

Porto Rico permanece no escuro para que a Chevron possa obter lucros maciços.

Jackson, Mississippi, não tem água potável para que a Shell possa enriquecer seus acionistas.

Quando colocada nesses termos, a ideia de Guterres de taxar os autores da devastação climática é óbvia. É “hora”, disse ele, “de dar o aviso aos produtores, investidores e facilitadores de combustíveis fósseis”, para que possamos encerrar nossa “guerra suicida contra a natureza”.

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