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Vivandeiras de vivandeiras

Comandantes das Forças Armadas e generais são os que agora se comportam como vivandeiras alvoroçadas, em apoio às suas companheiras do outro lado do muro.
Comandantes das Forças Armadas e generais são os que agora se comportam como vivandeiras alvoroçadas, em apoio às suas companheiras do outro lado do muro. Por Pedro Marin | Revista Opera
(Brasília – DF, 25/08/2022) Cerimônia do Dia do Soldado, com a Imposição da Medalha do Pacificador e da Medalha Exército Brasileiro. (Foto: Estevam Costa/PR)

No jargão militar, “vivandeira” se refere à categoria de soldados que, nos regimentos franceses, tinham o direito de vender alimentos, bebidas, papel, tabaco e outros produtos aos companheiros durante as mobilizações militares. Ao longo do tempo, dados os riscos e as responsabilidades que envolviam estes soldados, passou-se a autorizar o seu casamento, com as respectivas esposas assumindo a responsabilidade da venda de víveres nos teatros de guerra.

No Brasil, o termo se popularizou na boca de Humberto Castello Branco, que, como chefe do Estado-Maior do Exército durante o governo João Goulart, denunciou a ação de políticos que vinham bater nos portões dos quartéis: “eu os identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar.” 

O próprio general não resistiria aos encantos dessas vulgares figuras que trazem consigo – e em si – tudo o que um militar precisa. Seria empossado presidente em 15 de abril de 1964, após golpe militar estimulado pelas palavras doces destes políticos, certamente, mas movido pelo aço dos generais. 

Hoje, quase 60 anos depois, ainda há vivandeiras no Brasil. Elas se amontoam às portas dos quartéis, fazendo súplicas covardes e comportando-se como bestas. A novidade talvez é que haja agora, lá dos quartéis, respostas recíprocas: as vivandeiras têm também as suas que, do alto-escalão, buscam auxiliar as companheiras. Um casamento perfeito, de plena conveniência, tal qual aqueles que transferiram nos regimentos franceses, do soldado à esposa, o espetacular negócio de vender sutilezas a homens embrutecidos.

À medida que o tempo passa, que um novo governo vai se formando e que o governo cessante se esconde nas sombras, vai ficando claro, como não deixamos de insistir aqui, que o desafio fundamental adiante, mais do que um genérico “bolsonarismo”, será o Partido Fardado.

As próprias eleições foram marcadas pelas intromissões fardadas. Primeiro, pela indevida participação na Comissão de Transparência das Eleições (CTE), concedida por iniciativa do ministro Barroso, então presidente do TSE, sob a justificativa de isolar os militares do “bolsonarismo”, trazendo-os para o lado das instituições. Convidados, os fardados se comportaram como sabotadores dentro da CTE, fazendo sua cruzada contra as urnas eletrônicas. Os maus modos à mesa da CTE permitiram que, posteriormente, impusessem sua apuração paralela das urnas, contra a qual o TSE e a opinião ilustrada nos jornais a princípio resistiu, para logo depois conceder, naturalizando a ação na medida em que afirmavam que “qualquer um poderia fazer” o que as Forças Armadas se propunham, e que, portanto, não se tratava de uma apuração paralela.

Apesar dessa concessão, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, demandou em 18 de outubro que os resultados da apuração após o primeiro turno fossem apresentados em até 48 horas, para tê-los negados pelo ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, que informou que só o fariam “em até 30 dias” após cumprirem “oito etapas” de sua apuração, isto é, a partir do dia 5 de janeiro.

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Na véspera do segundo turno, o general Eduardo Villas Boas, notabilizado por, na posição de comandante do Exército, ter pressionado o STF por meio de tuíte em 3 abril de 2018, na véspera de julgamento de habeas-corpus preventivo que teria impedido a prisão de Lula quatro dias mais tarde, também se manifestou. Em ridícula nota, elencou “o que podemos esperar de um governo da oposição”.

No dia do segundo turno, a bateria de batidas da Polícia Rodoviária Federal (PRF) em diversos estados do Nordeste, foram acompanhadas, no caso do Rio de Janeiro, do apoio do Exército: na Ponte Rio-Niterói, que liga a Cidade Maravilhosa a um dos poucos municípios fluminenses onde Lula venceu, a ação dobrou o tempo do translado. Os efeitos da participação do Exército nesta operação, por óbvio, não se limitaram à ponte: uma leitura literal do ato é o Exército auxiliando a PRF em medida de patente afronta à decisão do TSE, que havia proibido ações do tipo no dia das eleições. Um fato que certamente chegou aos ouvidos do presidente do TSE, Alexandre de Moraes, na tarde do dia 30, quando se reuniu com o chefe da PRF, Silvinei Vasques.

Abertas as urnas, havia quem esperasse que, após a divulgação dos resultados, o Partido Fardado recuaria. Fez, no entanto, exatamente o oposto.

A divulgação do relatório sobre sua apuração paralela, na última quarta-feira (9), revela que o desprezo do ministério da Defesa pelas eleições em nada difere daquele demonstrado pela PRF, que além de espalhar blitzes no dia 30 contra possíveis eleitores de Lula, passou a colaborar, a partir do dia seguinte, com os bloqueios golpistas em rodovias por todo o País. O conteúdo do relatório, que de acordo com posição do próprio ministro Paulo Sérgio só poderia ser entregue a partir de janeiro, não foi, como TSE e imprensa buscaram interpretar, de reconhecimento dos resultados. Como o próprio ministério deixou claro em nota no dia seguinte, o relatório “embora não tenha apontado, também não excluiu a possibilidade da existência de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022”, não sendo possível, segundo a nota, “assegurar que os programas que foram executados nas urnas eletrônicas estão livres de inserções maliciosas que alterem o seu funcionamento.” Fala doce e traiçoeira.

Nessa sucessão de chantagens e ameaças militares, o evento mais relevante dos últimos meses foi a nota “Às instituições e ao Povo Brasileiro”, publicada no último dia 11. Tratando das manifestações golpistas que se espalharam na frente de quartéis por todo o País, a nota assinada pelos comandantes do Exército, Aeronáutica e Marinha chama atenção por três aspectos: primeiro, o mais óbvio deles, o fato de que as três Forças se arvoram ali como intérpretes da lei, e nessa condição expressam, de antemão, qual é sua interpretação constitucional. Interpretam e julgam; executarão também?

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Dizem ali, afinal, que “A Constituição Federal estabelece os deveres e os direitos a serem observados por todos os brasileiros e que devem ser assegurados pelas Instituições, especialmente no que tange à livre manifestação do pensamento; à liberdade de reunião, pacificamente; e à liberdade de locomoção no território nacional. Nesse aspecto, ao regulamentar disposições do texto constitucional, por meio da Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, o Parlamento Brasileiro foi bastante claro ao estabelecer que: ‘Não constitui crime […] a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais’. Assim, são condenáveis tanto eventuais restrições a direitos, por parte de agentes públicos, quanto eventuais excessos cometidos em manifestações que possam restringir os direitos individuais e coletivos ou colocar em risco a segurança pública […]”.

Trata-se, evidentemente, de interpretação favorável à manutenção dos atos. Que a interpretação não caiba às Forças Armadas significa somente que tal ato as serve como ameaça. A tese que circula entre os fardados é de que a legalidade das manifestações decorre do seu caráter pacífico. É uma tese absurda, que pressupõe que todo crime seria, necessariamente, violento, e que tudo o que não fosse violento, crime não seria. Não é assim, e a própria Lei nº 14,197, citada na nota, prevê que “Incorre na mesma pena [Art. 286 – incitar, publicamente, a prática de crime] quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade.” Isto é, as vivandeiras que incitam a prática de crimes pelos fardados são elas, também, criminosas. Seriam-no também as vivandeiras que, do lado de lá do muro, incitam as vivandeiras daqui a incitar?

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Um outro aspecto que chama atenção na nota é a referência sub-reptícia à ideia do Poder Moderador. No seu primeiro parágrafo, os comandantes dizem que as forças “reafirmam seu compromisso irrestrito e inabalável com o Povo Brasileiro, com a democracia e com a a harmonia política e social do Brasil, ratificado pelos valores e pelas tradições das Forças Armadas, sempre presentes e moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história”. O Poder Moderador, criação do francês Benjamin Constant, desembarcou no Brasil na Constituição de 1824, após o fechamento da Assembleia Constituinte no ano anterior. Efetivamente, tratava-se de um quarto poder do imperador, que além de chefe do Executivo tinha a seu dispor a conveniência de nomear senadores; convocar a Assembleia Geral; sancionar decretos e resoluções; prorrogar ou adiar a Assembleia e dissolver a Câmara dos Deputados; nomear e demitir ministros de Estado; suspender magistrados; perdoar, moderar penas ou conceder anistia. O sentido do Poder Moderador era “velar sobre a manutenção da Independência, equilíbrio e harmonia dos demais Poderes Políticos”, de acordo com a Constituição de 1824; tratava-se, efetivamente, da prerrogativa de “fiel da balança” dada ao imperador para resolver eventuais disputas políticas no seio do Estado.

Por fim, há na nota uma certa inclinação parlamentarista, na medida em que os comandantes afirmam que “reiteramos a crença na importância da independência dos Poderes, em particular do Legislativo, Casa do Povo, destinatário natural dos anseios e pleitos da população, em nome da qual legisla e atua, sempre na busca de corrigir possíveis arbitrariedades ou descaminhos autocráticos que possam colocar em risco o bem maior de nossa sociedade, qual seja, a sua Liberdade.”

Os generais sabem que o sistema político brasileiro é o presidencialista. Estão cientes também de que, em termos de representação política, o Executivo é mais fiel ao desejo unitário do povo que o Parlamento – foram eles próprios, afinal, que se bateram, a partir da década de 1920, com os oligarquismos e o regionalismos parlamentares, em favor de um maior centralismo Executivo. Sabem, por fim, que a concepção de Poder Moderador foi instituída em favor do Executivo, para que este mediasse as relações especialmente com o Parlamento, visto então como um ajuntamento de pequenezas partidárias e mesquinhos interesses.

A bricolagem bizarra feita pelos comandantes, em favor das vivandeiras-companheiras, revela somente que, mais do que Poder Moderador, desejam é transformar sua supremacia armada em soberania política: interpretar as leis como lhes convir, atrasar e depois adiantar relatórios, invadir espaços que não lhes pertencem, bloquear o voto popular quando ele não lhes agrada, julgar o que não lhes cabe. Em uma palavra, não se submeter: e perceba o leitor que tudo isto que desejam foi, nos últimos meses, tudo o que de fato fizeram.

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