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Arquitetura da desdolarização: decifrando o yuan digital

A desdolarização avança, com yuan chinês sendo a quinta moeda global de pagamentos e liquidação. Agora, China avança o uso do yuan digital, formato digital da moeda corrente do país.
A desdolarização avança, com yuan chinês sendo a quinta moeda global de pagamentos e liquidação. Agora, China avança o uso do yuan digital, formato digital da moeda corrente do país. Por Misión Verdad | Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
Um funcionário do Banco de Comunicações da China faz demonstração da carteira digital. (Foto: Xinhua/Chen Zhonghao)

Já tratamos antes de como a utilização frequente do dólar estadunidense como ferramenta para “sancionar” países se transformou em uma faca de dois gumes, debilitando o domínio do dólar no sistema monetário internacional na medida em que estimula aqueles que são “sancionados” a buscar formas de contornar o sistema baseado no dólar e a construir seus próprios sistemas de pagamentos internacionais.

De todos os exemplos, a ação de desdolarização da China é uma das mais firmes e importantes. Estimulada pelas “sanções” econômicas dos Estados Unidos, a China busca responder à hegemonia do dólar por meio de distintos mecanismos, entre eles o desenvolvimento de uma moeda digital.

A hegemonia do dólar não é inquebrável

Os sistemas de pagamentos e liquidações existentes entre empresas e países dependem em grande medida do sistema SWIFT, dos Estados Unidos, que se converteu em uma ferramenta para perpetuar a hegemonia estadunidense. Washington pode fazê-lo porque o dólar é dominante no sistema monetário internacional.

Entre as principais moedas de liquidação do mundo, o dólar representa mais de 40% do total, enquanto que entre as moedas de reserva ele representa mais de 60%.

As transações das principais matérias primas, como o petróleo cru, o ouro e outros produtos agrícolas, são realizadas principalmente em dólar.

No entanto, nos últimos anos se tem provado que tal domínio não é inquebrável. Um dos eventos mais recentes, o congelamento por parte dos Estados Unidos e União Europeia das reservas de dívidas e ativos em dólares da Rússia, contribuiu fortemente para pôr em dúvida a segurança absoluta da ordem financeira global centrada no dólar, o que, por sua vez, abre oportunidades às alternativas que vêm sendo desenvolvidas.

Nesse sentido, é importante olhar à China. O governo do país há muito vem promovendo a internacionalização de sua moeda, o renminbi (ou RMB, nome oficial da moeda chinesa, que costumamos chamar de yuan). Os avanços dos últimos dez anos são significativos. Segundo estatísticas do FMI e do Banco Popular da China, o renminbi se converteu na quinta moeda de pagamentos e liquidação do mundo.

A China também está aumentando o uso do renminbi digital, tendência global desde a popularização das criptomoedas. Segundo um relatório publicado pelo FMI em fevereiro deste ano, mais de 100 países estão tomando medidas para testar e promover o uso de sistemas de moedas digitais emitidas por bancos centrais (CBDC, na sigla em inglês), que são uma forma digital da moeda fiduciária de um determinado país. Ao invés de imprimir dinheiro, o banco central emite moedas ou cédulas eletrônicas respaldadas em total confiança e crédito do governo.

O que é o renminbi digital?

O site China Briefing publicou um artigo com uma série de perguntas e respostas sobre o renminbi digital. Ali, é explicado que a moeda (também chamada de RMB digital, yuan digital ou, na abreviatura em inglês, e-CNY) é uma forma digital de moeda de curso legal emitida pelo Banco Popular da China. Em outras palavras, o renminbi digital é uma versão digitalizada da moeda oficial da China.

Ela não é comparável ao Bitcoin, já que não se trata de uma criptomoeda, e sim de uma CBDC. Ela não é descentralizada nem funciona em blockchain: é uma moeda legal emitida por um banco central.

O projeto começou em 2014, e em abril de 2020 o e-CNY foi testado em uma área piloto, que incluía as cidades chinesas de Suzhou, Shenzhen, Xin’an e Chengdu. Hoje já são mais de 20 as cidades que permitem o pagamento de bens e serviços por meio do renminbi digital, entre elas Xangai e Pequim.

A moeda digital é operada por agências operacionais designadas. Atualmente, o número de bancos comerciais tradicionais que podem emitir yuans digitais são sete, a saber; Banco Industrial e de Comércio da China, Banco de Agricultura da China, Banco da China, Banco de Construção da China, Banco de Comunicações da China, Banco de Poupança Postal da China e Banco Mercantil da China. Outros dois bancos online também podem emiti-los: o WeChatPay e o Alipay.

Para pagar por um produto ou serviço com os yuans digitais, o usuário deve instalar um aplicativo móvel especial, que é uma carteira eletrônica. Assim explica o artigo do China Briefing: “A carteira digital, chamada de shuci qienbao em chinês, é uma carteira online com a qual é possível rastrear e armazenar yuan digitais. Ela é acessada por meio do aplicativo de yuan digital zhenminbi shuci. O aplicativo é o principal meio pelo qual os usuários podem usar o e-CNY. Os usuários podem configurar várias carteiras digitais dentro do aplicativo e estabelecer configurações como limites de gastos diários, quais aplicações e serviços podem ser pagos com a carteira, bem como vincular vários cartões de banco à aplicação”.

 Leia também – O banimento de chips da China pelos EUA equivale a uma declaração de guerra na era dos computadores? 

Durante os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022, em Pequim, foi lançada uma versão de testes do aplicativo móvel. Os atletas e visitantes, inclusive estrangeiros, gastaram mais de 2 milhões de yuans digitais por dia (aproximadamente 275 mil dólares). Na cerimônia inaugural dos Jogos, os pagamentos por yuans digitais superaram os da Visa, que desde 1986 era a única forma de pagamento nos Jogos Olímpicos de Inverno além do dinheiro em cédulas.

O evento foi uma pequena estreia da moeda digital a nível internacional. Além deste episódio, um estrangeiro pode, teoricamente, usar o renminbi digital através do aplicativo, mas apenas se estiver em uma das cidades piloto e tiver uma conta em um dos bancos chineses autorizados.

Expansão e desafios

O uso do yuan digital aumentou em 18 vezes neste ano, se comparado a 2021, segundo relatórios que saíram em junho por conta da celebração do Festival 618, uma espécie de Black Friday chinesa. Durante esse evento foram gastos 400 milhões de yuans digitais (55 milhões de dólares).

Há mais dados que indicam a amplitude da adoção do renminbi digital:

– No final de 2021, os volumes de transações com o yuan digital alcançaram a marca de 13 bilhões de dólares, de acordo com o Banco Popular da China.

– O número de detentores de carteiras digitais de yuans cresceu para 261 milhões de pessoas, mais do que as populações combinadas da Alemanha, França, Itália e Espanha.

– Um em cada cinco adultos baixou o aplicativo, e a maioria o usa para o comércio eletrônico e serviços públicos como transporte.

O principal desafio para a expansão do yuan digital é a existência de outras formas de pagamento já consolidadas e populares entre os usuários chineses, especificamente o Alipay e o WeChatPay. Juntas, essas plataformas privadas representam cerca de 94% do mercado de pagamentos digitais, e têm uma aceitação muito boa: 83% dos chineses adultos fazem avaliações favoráveis ou muito favoráveis delas.

A China lidera a era das moedas digitais

O avanço tecnológico do renminbi digital contribuiu para a internacionalização da moeda nacional chinesa. O progresso é notório, com a moeda digital tendo sido testada em mais de 20 cidades de todo o país e contando com um total de 70,75 milhões de transações, com bilhões de yuans movimentados nelas.

Há outros fatores que contribuem com a possibilidade da moeda chinesa se internacionalizar. A China atualmente é, do ponto de vista comercial, a nação mais importante do mundo, sendo também a maior produtora industrial, a maior importadora de matérias primas, a maior importadora de energia e a maior importadora agrícola. Se espera que, em 2035, o PIB chinês passe o dos Estados Unidos, o que significaria se tornar o maior PIB do planeta.

Tais condições econômicas ajudaram o renminbi a ganhar confiança como moeda de reserva e de pagamento internacional. Há exemplos que apontam nesse sentido. A Rússia está utilizando mais diretamente o yuan para a liquidação do comércio chino-russo. Ao mesmo tempo, o Irã utiliza o yuan, bem como o euro, para a liquidação do comércio de petróleo. Da mesma forma, com a Iniciativa Cinturão e Rota, megaprojeto econômico que inclui 139 países, um ecossistema de internacionalização do renminbi no Sul Global está tomando forma.

É destacável também que o renminbi digital, estando em fase de testes, está na vanguarda da digitalização das moedas fiduciárias; uma importante tendência mundial para o futuro que terá consequências negativas para a posição hegemônica do dólar.

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