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Juliane Furno: “enquanto existir capitalismo, haverá imperialismo”

Em entrevista exclusiva à Opera, a economista Juliane Furno discute seu novo livro, “Imperialismo: uma introdução econômica”.
Em entrevista exclusiva à Opera, a economista Juliane Furno discute seu novo livro, “Imperialismo: uma introdução econômica”. Por Pedro Marin | Revista Opera
Imperialismo. (Imagem gerada com Dall-E).

“Quando mais se necessitou debater, dialogar e refletir sobre a mudança do imperialismo, maior foi o vazio teórico e reflexivo da esquerda e do marxismo como um todo sobre o tema”, diz Juliane Furno. Ela se refere a uma época, entre os anos 70 e os anos 2000, em que a frase “o imperialismo não existe” não era só comum entre a direita liberal – que por muito tempo buscou retratar os que falavam em imperialismo como meros ideólogos e agitadores, deslocados da realidade –, como também entre a própria esquerda, que ou passou a abandonar a perspectiva de tratar dos “grande temas” em favor das “pequenas relações”, ou entrou de cabeça no discurso da dissolução das nações, da globalização e do fim da história. Falar em imperialismo nesta época era, mesmo para amplos setores da esquerda, apegar-se a velhas ideias que já não descreviam os problemas contemporâneos, a um conceito enferrujado e determinista, a um empoeirado manual.

Ao longo das últimas décadas, no entanto, com a constatação de que a divisão econômica do mundo não só se manteve, como se aprofundou; que os avanços tecnológicos, apesar de mais acessados, se mantém concentrados como propriedade de um punhado de nações; e que as guerras, golpes de Estado e pressões políticas não eram, como se suponha, “coisas do passado” nas relações entre as nações, o conceito volta à tona, e é discutido e reatualizado por uma nova geração de militantes e intelectuais.

Nascida em Porto Alegre (RS), a economista Juliane Furno é uma dessas figuras. Doutora em Desenvolvimento Econômico pela UNICAMP e professora da Faculdade de Economia da UERJ, Furno é, aos 33 anos, uma das mais preparadas intelectuais dessa geração. Militante do Levante Popular da Juventude há mais de uma década, Juliane se tornou conhecida por meio de seu canal no YouTube, no qual une à costumeira profundidade com que discute os temas econômicos uma postura bastante didática, muito característica de suas falas – fato que costuma ser reconhecido e comentado sempre nos eventos públicos em que participa. No final de 2022, Furno lançou “Imperialismo: Uma introdução econômica” (Da Vinci, 2022), seu primeiro livro autoral, no qual faz uma longa recapitulação da discussão econômica do conceito, desde o século 19 até os tempos atuais. Além de discutir e apresentar uma série de autores – Marx, Hobson, Hilferding, Bukharin, Kautsky, Rosa Luxemburgo, Lênin, Mandel, Baran, Sweezy, Ruy Mauro Marini, Samir Amin, Intan Suwandi –, Juliane trata também de alguns temas latentes para a discussão sobre o imperialismo hoje, como o papel da China no mundo atual, a posição dos Estados Unidos no domínio imperialista e a luta antimperialista no Brasil e na América Latina.

Em meados de janeiro, a Revista Opera conversou com Juliane Furno sobre seu novo livro. A entrevista segue:

Revista Opera: No seu livro, você insiste em destacar que o imperialismo não é uma “política”, mas um sistema. O que é o imperialismo? Quando ele aparece historicamente? E quais são suas fases?

Juliane Furno: Isso faz parte de um debate, eu sou tributária de uma das concepções teóricas, a do Lênin, que é a concepção de que o imperialismo é uma fase, mas uma fase própria do capitalismo desde que o capitalismo atinge o ápice de uma de suas leis de tendência, que é a tendência de exacerbação da concentração e centralização de capital; portanto a tendência de superação de um ambiente de livre competição para uma ambiente de tendência à oligopolização e monopolização da economia. Então enquanto existir capitalismo – porque o capitalismo já atingiu essa fase de maturação – vai haver imperialismo. Portanto, não é uma política como por exemplo o neoliberalismo é – o capitalismo pode ser neoliberal ou não ser neoliberal, a depender da conjuntura. O imperialismo não; é necessariamente a forma política de expressão das economias mais avançadas do ponto de vista das leis de tendência do desenvolvimento, desde que o capitalismo é monopolista, portanto desde a virada do século 20. E isso [o imperialismo] só pode ser superado enquanto sistema com a superação do próprio capitalismo.

O imperialismo também comporta fases. Mais uma vez, a partir da perspectiva do Lênin – que é diferente por exemplo da do Samir Amin, que acha que o imperialismo é, por exemplo, pré-capitalista, tendo começado nas próprias experiências coloniais. Para o Lênin, e onde me filio teoricamente, o imperialismo teve duas grandes fases que comportam também as suas subfases. Uma primeira fase do imperialismo é uma em que o capitalismo estava em maturação; quando o imperialismo precisa objetivamente expandir as fronteiras políticas e comerciais dos Estados nacionais centrais. Essa fase é mais de acumulação primitiva do próprio imperialismo, a fase de ocupações e anexações territoriais, em que há uma tentativa de recolonizar um mundo em boa medida já independente do ponto de vista colonial. E há uma segunda fase, após todas as experiências de libertação nacional (ou quase todas), no findar da Segunda Guerra Mundial, que é a fase – como diz [Harry] Madgoff – do “imperialismo sem colônias”. É um imperialismo que se coaduna perfeitamente com a fase mais maturada e avançada do capitalismo, que é quando pode seguir existindo transferência de valor das economias periféricas para o centro, dominação política dos territórios periféricos, transferência de valor via formas de arbitragem da força de trabalho, mas tudo isso sem precisar de anexações territoriais, e sim através das leis próprias de livre mercado.

Então são essas duas fases. Nessa segunda fase, também há subfases. Por exemplo: o [Gérard] Duménil e o [Dominique] Lévy falam que a financeirização é uma subfase do capitalismo monopolista e imperialista. O neoliberalismo é uma subfase. Veja: são formas, momentos em que o capitalismo vai mudando de forma para garantir o seu conteúdo, na medida em que o próprio capitalismo vai passando por transformações no seu padrão de acumulação. Mas ele segue sendo capitalista, monopolista e imperialista. A diferença é que, para realizar o seu desígnio, ele vai modificando sua forma política. 

Portanto, para finalizar; o imperialismo é um sistema de dominação que serve a uma necessidade histórica, inclusive – não é só um desejo das elites dos países centrais – de manter um padrão de desenvolvimento que necessita ser desigual e combinado pela concorrência capitalista. Ou seja, um sistema em que um punhado de países centrais precisa lançar mão de medidas políticas e econômicas para que o resto do mundo sirva como alavanca de um padrão de reprodução ampliada baseado na desigualdade, especialmente da remuneração do trabalho, da transferência de valor, e também de desigualdade na serventia, a forma com que esses países [periféricos], através de sua força política e militar, servem aos interesses das potências que exercem, em cada momento, o poder imperial.

Revista Opera: Você mencionou, e é bastante comum que, quando vamos estudar imperialismo, partamos do Lênin, com o “Imperialismo, fase superior do capitalismo”, e temos contato a partir disso com “O capital financeiro” do Rudolf Hilferding e com o “Imperialismo”, de John A. Hobson. Quando muito chegamos nesses dois. Mas na primeira parte do seu livro você parte de Marx, falando de premissas que o Marx já tinha identificado em sua época.

Juliane Furno: O Marx e o Engels – porque eu começo com o “Manifesto do Partido Comunista” –, foram na minha avaliação muito geniais, porque ao estudarem cientificamente o capitalismo – e esse foi um esforço muito importante –, eles já conseguiam ensejar o que seria o imperialismo a partir da própria maturação das contradições e das leis de tendência do capitalismo. Acho importante resgatar isso, tanto porque a maioria dos autores – com a exceção da Rosa Luxemburgo – vão partir do Livro 3 d’O Capital para tratar do imperialismo a partir dessa “raiz” econômica que é a tendência da queda da taxa de lucro, a tendência da transferência de valor entre ramos distintos da produção quando entra o mercado mundial – porque as trocas no mercado internacional e o avanço sobre o mercado mundial são pilares importante do imperialismo.

Grande parte desses elementos estavam no Marx e no Engels. Acho importante trazer a produção deles como a teoria científica que, mesmo não tendo enxergado empiricamente um fenômeno como o imperialismo, não tendo enxergado empiricamente um fenômeno como a financeirização, vai ser, ainda assim, a base elementar para entender esses movimentos. Porque o principal não é entender conceitualmente – o que eu queria nesse livro não era entender qual o conceito de “imperialismo”, mas sim qual é o movimento histórico do capitalismo e de suas contradições que leva o imperialismo a ser uma necessidade histórica, e entender esse fenômeno para atuar na luta de classes a partir da organização do movimento operário, do movimento socialista.

Tem duas coisas que acho importantes: a primeira é, no Manifesto Comunista, o Marx e o Engels, já apontando a tendência do capitalismo de “não ter pátria”, no sentido do capital ser cosmopolita, derrubar fronteiras que limitariam sua própria atuação territorial – tem várias passagens nesse sentido, até um pouco poéticas, em que falam dessa tendência à universalização e à superação de qualquer barreira, da generalização do modo de produção capitalista. Ali eles já apontam elementos, nessa mundialização do capitalismo, que tornariam esse modo de produção cada vez mais universalizante; a Rosa Luxemburgo parte, por exemplo, para olhar o imperialismo, a partir desse elemento: da necessidade que o capitalismo vai tendo, para sobreviver, de tornar capitalistas zonas do planeta ainda não capitalistas. Portanto a própria Rosa, mesmo partindo do Livro 2 d’O Capital e dos desequilíbrios setoriais, também parte do Marx. E o Marx ali usa o exemplo das estradas de ferro; já está falando, muito antes desses autores, que algo ali está acontecendo que não é mais só a exportação de manufaturas. Que era um pouco a velha divisão internacional do trabalho: países centrais exportam manufaturas e países periféricos exportam produtos primários. Ali há a exportação de um novo “produto”; quando você exporta uma estrada não tem como você vender a estrada, você tem que exportar o capital; a fábrica, as instalações, etc. E quem instala esse maquinário vende as máquinas, os equipamentos, a peça, e remete lucro. É outra estrutura econômica.

Então voltar ao Marx me parece historicamente acertado, e uma forma de, nestes períodos de negacionismo científico, garantir essa ciência da história; o Marx e esse desvendamento científico que permite compreender o capitalismo mesmo naqueles fenômenos aos quais não é possível olhar empiricamente. Para usar o termo da moda: ele não precisou ter “lugar de fala”, no sentido de ter vivenciado, para ter descoberto o fenômeno, porque conseguiu entender a engrenagem ou as leis de tendência desse tipo de desenvolvimento de um modo de produção.

Revista Opera: Apesar de, na primeira resposta, você ter falado de uma discordância que tem com o Samir Amin, na segunda parte do livro você discute uma série de autores que produziram sobre o imperialismo após o fim da Segunda Guerra: Ernest Mandel, Paul Baran, Paul Sweezy, Ruy Mauro Marini e o próprio Samir Amin. E me parece que, apesar dessa sua primeira divergência com o Amin, ele é muito importante para a sua conceitualização de imperialismo, que você faz na terceira parte do livro. Aquela perspectiva dele de pensar, digamos, a “linha final” para determinar o que é o imperialismo a partir do fato de que as mercadorias e o capital andam para lá e para cá com uma certa liberdade, mas a força de trabalho não, não anda. O que o Amin traz de novo que, na sua visão, é importante nessa discussão?

Juliane Furno: Sim, eu tive essa discordância, mas muito pontual, quanto ao Samir Amin, sobre a ideia de “imperialismo pré-capitalista”. Mas fiz questão de trazer ele para o livro; acho ele um autor fundamental, trato do debate dele no pós-guerra, mas é bom lembrar que o Samir Amin viveu até 2018 e produziu até 2013. Então ele é um autor do pós-guerra, mas também um autor do capitalismo contemporâneo. Acho que é o único autor que aparece na segunda e na terceira parte do livro.

Ele tem reflexões muito importantes. Primeiro porque ele parte de um lugar de observação que é este lugar de um egípcio que está na França, que milita no Partido Comunista Francês (PCF), mas que tem compromisso com a causa dos países da África e Ásia, trazendo esses elementos das lutas de libertação nacional: portanto coloca o imperialismo no centro de um debate que passe pelo centro da luta de classe dos movimentos socialistas e comunistas, marcado por essa característica da libertação nacional.

E ele vai trazer um ponto muito significativo. Num período em que, na América Latina, a CEPAL estava tratando, de forma bastante embrionária, da ideia da “tendência à deteriorização dos termos de intercâmbio”; a ideia de que os países periféricos tenderiam a perder na competição ou num certo “equilíbrio” de preços – o David Ricardo dizia que haveria um equilíbrio das trocas internacionais, portanto os países periféricos e agrário-exportadores não precisariam se industrializar porque poderiam acessar os produtos da modernidade capitalista via equilíbrio nas trocas comerciais.

O Samir Amin vai avançar em relação a esse debate da CEPAL, mostrando que o principal não era a deterioração dos preços entre produtos primários e produtos industrializados, produtos que têm o que a gente chama em economia de uma maior ou menor “elasticidade-preço” em relação à demanda. Mas sim que o principal é que há uma certa ampliação ou restrição da mobilidade do capital. Ou seja; o capital tem livre mobilidade – afirmar isso é remeter a algo que Marx tratou –, o capital se desloca, se movimenta – por isso a afirmação de que há uma tendência à equalização de taxa de lucro no mercado internacional, porque como há possibilidade do capital se movimentar, se há um setor com uma taxa de lucro maior, o capital se movimenta para esse setor; logo, se ele se movimenta para esse setor, a tendência é que baixe a taxa de lucro. Então existe uma tendência a equalizar – diferente do que pensava o Mandel, que achava que essa tendência não existiria. Existe; porque existe livre mobilidade do capital. A questão é que não existe livre mobilidade da mão de obra. Então como o capital ganha? Ganha através da arbitragem ou da escolha da remuneração desigual da força de trabalho. Isso é, se vende um produto com mais ou menos força de trabalho; e é o preço embutido da força de trabalho sobre as mercadorias comercializadas que estipula um tipo de troca desigual. Então os produtos dos países periféricos são trocados com mais valor – mais força de trabalho –- do que os produtos dos países centrais; mas a remuneração não comporta isso, inclusive por elementos históricos, pelo grau de liberdade de associação dos movimentos de trabalhadores em economias de caráter autoritário e periféricas, etc. Na periferia não entra no custo unitário da mercadoria a remuneração igualitária da força de trabalho, ou seja, tal como seria no centro: e é isso que marca um dos pontos centrais da raiz econômica do imperialismo.

Depois o Amin vai tratar de uma série de elementos. Após os anos 80, com a liberalização no campo das finanças, o neoliberalismo, ele trata do que chama de “era de monopólios generalizados”: então, para ele, sim; o imperialismo é a fase do capitalismo monopolista, tal como Lênin avaliou, mas agora seriam monopólios generalizados. Não é mais o monopólio da produção física de mercadorias: ele vai trazer também uma série de elementos, inclusive elementos da comunicação; uma série de elementos que tornam essa era uma “era de monopólios generalizados”. E nisso ele avança para pensar as novas determinações do imperialismo, que é o que está mais presente na terceira parte do meu livro. Mas, de fato, Samir Amin é um autor essencial.

Revista Opera: Um outro tema, que você começa a discutir justamente na terceira parte do seu livro, são as mudanças que ocorreram no capitalismo e no imperialismo a partir da década de 70. Você diz que a partir dali se instaurou uma nova fase, ou subfase, do imperialismo. Quais são as características dessa fase? O que muda na década de 70? E nós ainda estaríamos vivendo hoje essa fase que se instaurou a partir da década de 70, ou não é possível dizer isso?

Juliane Furno: A década de 70 marca um dos elementos, que é a financeirização. Após os anos 80 nós podemos dizer que vem o elemento que dá legitimidade política à financeirização, que é o neoliberalismo. E é muito paradoxal, porque é justamente do final da década de 1970 até o ano 2000 que os debates sobre o imperialismo se tornam menos candentes. Quando mais se necessitou debater, dialogar e refletir sobre a mudança do imperialismo, maior foi o vazio teórico e reflexivo da esquerda e do marxismo como um todo sobre o tema.

Veja, na década de 70 houve um movimento de contestação da hegemonia norte-americana. Ele começou na década de 60, tão logo os Estados Unidos concluem o Plano Marshall, ajudando o Japão, a Alemanha Ocidental e os demais países da Europa, a capacidade de reconstrução econômica e industrial desses países se torna um empecilho para os próprios Estados Unidos. Ou seja, os EUA reconstroem essas economias e as grandes indústrias japonesa e alemã passam a concorrer com a grande empresa americana. E os países europeus passam a adotar, por exemplo, uma moeda comum – a origem da União Europeia data desse período –, e nos anos 60 essa concorrência leva a uma perda momentânea de hegemonia dos Estados Unidos no campo produtivo.

Embora o que tenha feito os EUA exercerem de forma unilateral a sua hegemonia imperialista no mundo capitalista a partir do fim da Segunda Guerra tenha sido não só o elemento da superioridade tecnológica, mas também monetária – porque se afirmou, em Bretton Woods, o dólar como a moeda de curso internacional –, e a superioridade militar. Mas a superioridade tecnológica foi em alguma medida desgastada com o próprio toyotismo, que surge nesse período a partir das inovações japonesas, e a indústria alemã, especialmente a automobilística. Tanto é que a indústria automobilística que vem para o Brasil, ainda no governo Juscelino, e depois na ditadura militar, é sobretudo a indústria alemã (e um pouco italiana) que está nesse processo de correr atrás do prejuízo.

Nas décadas de 60 e 70, os EUA vão ter uma nova derrota, no campo militar, na Guerra do Vietnã. E junto com essa ameaça no campo militar, vai haver uma ameaça também à sua hegemonia no campo monetário. Porque até então existia um sistema monetário chamado “padrão-ouro”, ou seja, que cada dólar equivalia a 35 onças de ouro. Só que os EUA visivelmente gastavam muito mais do que havia correspondência em ouro. O Plano Marshall, por exemplo, custou milhões; assim como a Guerra do Vietnã. Havia então uma desconfiança de que os EUA estavam imprimindo mais moedas do que o correspondente em lastro metálico. Essa desconfiança gera uma crise, uma reunião do FMI em que houve a possibilidade real de substituir o dólar por uma cesta de moedas compartilhadas. Isso provavelmente seria o fim de uma hegemonia plena, e nós viveríamos uma hegemonia compartilhada no mundo capitalista.

Os EUA respondem a essa crise triplicando a taxa de juros. Quando triplicam a taxa de juros da dívida pública americana, eles dizem o seguinte: “sim, as pessoas confiam no dólar. Mesmo que o dólar possa não ter o correspondente em ouro, porque é um sistema baseado na confiança”. E ao fazer isso os EUA colocam o mundo todo em recessão, porque há uma fuga de capitais do mundo inteiro para serem valorizados na dívida americana; isso acaba com as economias periféricas que estavam altamente alavancadas no sistema de taxas de juros pós-fixada, quando o mundo todo tinha taxas baixas de juros. Então não só parou de vir capital para o Brasil como o Brasil também teve, por exemplo, que fazer mais superávit comercial para pagar uma dívida que agora custava mais caro.

Revista Opera: Quer dizer, quando os EUA elevam a taxa de juros deles, isso significa basicamente que estão falando: “quem comprar minha dívida, quem colocar dinheiro aqui no meu padrão – no padrão dólar – vai receber mais dinheiro do que em outras moedas”, certo?

Juliane Furno: Exato. E os investidores poderiam ficar desconfiados, pensarem “não, vou deixar no Brasil, porque lá ganho menos, mas eu sei que aqui está tudo bem”. Mas não; porque todo mundo confia na dívida pública americana. E nisso o [Richard] Nixon falou: “e agora não tem mais paridade, acabou o lastro metálico. O dólar agora é uma moeda baseada na confiança”. Confiança e poder militar, poder de imposição de uma moeda num território nacional. E junto com isso – junto com esse movimento de drenar toda essa poupança do mundo, porque todo capital foi pros EUA – os norte-americanos pegam todo esse capital e fazem uma grande modernização da sua estrutura produtiva, criando por exemplo o Vale do Silício e dando um salto tecnológico. 

Ou seja, retomaram a hegemonia monetária – todo o sistema bancário que estava fora dos EUA foi para os EUA –; retomaram a hegemonia produtiva, com o Vale do Silício; e em grande medida retomaram a hegemonia militar, porque houve também a nova corrida às estrelas. Portanto é uma nova fase do imperialismo, que atuou sobre o sistema monetário: enquadrou o mundo inteiro, todos os países entraram em recessão, inclusive os EUA – mas os EUA suportaram essa recessão, enquadrando todos os seus concorrentes e reafirmando a sua hegemonia. Então essa é a fase da financeirização. Que, de quebra, gerou um novo sistema, com o fim do rastro metálico e com a possibilidade de criação de novas formas de riqueza – a riqueza através de derivativos de câmbio, através de dívida privada de empresas, vários mecanismos gerados no mundo das finanças – que puderam inclusive contribuir com a sanha de geração de lucros num sistema que estava bastante comprimido com as amarras do que foram as experiências de bem-estar social.

Então a financeirização é uma resposta, a globalização financeira é uma resposta, necessária para um padrão de acumulação – baseado num “keynesianismo” de Bretton Woods – que tinha chegado ao seu fim. Um padrão premido pela elevação dos custos, por exemplo do petróleo ou da força de trabalho. Agora eram necessárias novas formas de inversão de capital: as privatizações, por exemplo – e aí já entra o neoliberalismo, que respalda tudo isso – são um grande negócio para inverter capital parado; criação de novas formas de valorização de riqueza na esfera financeira – um grande negócio para inverter capital parado, de gerar novas formas de valorização da riqueza no âmbito financeiro. Isso é uma forma do imperialismo atuar para manter a desigualdade – tanto é que os países periféricos é que vão ser plataformas prioritárias de especulação, com derivativos, com câmbio, com dívida pública, dos especuladores dos países centrais nas economias periféricas. É uma forma de atuação do imperialismo respaldada por um novo modelo, que é o neoliberalismo, e com uma nova forma político-econômica que é a desregulamentação das finanças.

Revista Opera: Esse aspecto da financeirização… Nós estamos muito acostumados a ouvir falar disso hoje. Mas me parece que nem sempre damos a dimensão real do que isso significa. No livro, você escreve: “a partir da identificação da crise [dos 70], ficou em evidência a perspectiva de sobreacumulação de capitais concomitantemente à queda da taxa de lucro. Em um espaço de saturação da esfera produtiva […], esse capital precisou encontrar saídas para sua valorização. Diversamente da crise anterior, nos anos 1930 […] a crise dos anos 1970 não se deu em meio a uma grande guerra que permitisse queimar o estoque de capital, nem contou com uma grande revolução tecnológica, como a que potencializou a indústria automobilística, para maximizar a capacidade de novas inversões produtivas. É a partir desse quadro de crise que a financeirização surge como espaço para dar vazão a esse capital sobreacumulado. Vale registrar que a financeirização não surgiu nos anos 1960 e 1970. Desde o século XIX, o refúgio nas finanças tem sido o recurso do capitalismo para lidar com suas crises cíclicas.” Me parece que o que está dizendo é que a financeirização nasce quase como que um “espaço fictício” para valorizar capital, num momento em que esse capital não seria valorizado por exemplo no setor produtivo, na indústria, na produção de bens – como se um punhado de homens que tinham muito capital num momento em que o retorno desse capital não seria proveitoso na produção jogassem todo o seu capital para um espaço que é em grande parte fictício. É isso mesmo? Isso é; a financeirização é o uso de capital, de valor acumulado e que continua se acumulando, num espaço em que as coisas não são necessariamente produtivas? 

Juliane Furno: Não, não é bem isso. Essa é também uma divergência. Mas veja: a primeira parte do raciocínio, é exatamente isso. Um período de crise, especialmente num período das experiências dos estados de bem-estar social, foi marcado por um arranjo que estava levando a uma queda da taxa de lucro – que é uma das leis de tendência do capitalismo, que acontece pela própria dinâmica do aumento da concorrência intercapitalista. É bom lembrar: o que o Lênin e principalmente o Bukharin diziam é que a tendência ao monopólio e ao oligopólio suplantaria a livre concorrência. Isso, a livre concorrência, não existe mais – o que não quer dizer que não exista concorrência; existe muita concorrência, ela só não é livre.

Vou dar o exemplo do celular: existe uma grande concorrência entre a Samsung, Motorola, Apple, etc. Chega um novo sistema operacional que é criado a partir de muito gasto com ciência, tecnologia e inovação. E esse sistema operacional faz com que um celular possa, agora, enviar Whatsapp – enquanto os outros só enviavam SMS. Se os outros não “correrem atrás”, e não enviarem Whatsapp também, eles estão fora da concorrência. Acho que é isso que aconteceu com a Nokia – tinha um sistema operacional muito ruim e ela ficou pra trás.

As outras repetem o mesmo padrão: a questão é quem larga na frente. Quem larga na frente, enquanto as outras não chegarem até ela, tem um período de lucro extraordinário – o que o Joseph [Schumpeter] chamaria de “inovador”; o “inovador schumpeteriano”. A busca pelo monopólio, por mais paradoxal que seja, é o que move a competição – porque a pessoa quer ser monopolista, então ela desenvolve um sistema que só ela tem; depois outras desenvolvem também. Acontece que a concorrência vai sendo tão elevada que cada vez você vai ter que criar mais, mais e mais diversificação de produtos: design de produtos, diversificação do que o celular faz, etc. Só que isso gasta muito se comparado por exemplo à força de trabalho, que tende a não se valorizar tanto – o salário dos trabalhadores no máximo recompõe a inflação. Mas só o trabalho humano, vivo, cria valor! Que é o que o Marx chama de “capital variável”. E essa é a questão paradoxal da tendência à queda da taxa de lucro: os capitalistas não sabem disso. Eles não sabem que quanto mais eles investem em ciência e tecnologia, em capital constante, em máquinas e equipamentos, proporcionalmente ao gasto com força de trabalho, mais eles estão destruindo a única fonte de valor, que é o trabalho humano! Mas essa é uma necessidade: porque quem não fizer isso estará fora da concorrência. Então existe uma tendência à queda da taxa de lucro toda vez que a concorrência é muito elevada. E normalmente, toda vez que essa concorrência é muito elevada, tem muito investimento; portanto muita gente é empregada; portanto também aumenta o custo da força de trabalho. Então você tem que ter muito capital para entrar na concorrência de empresas de celulares, mas para ter um retorno muito baixo. Só que tem muita gente com capital sobrando, que não vai investir numa empresa de celular porque o retorno é baixo – mas quer investir, porque capital não pode ficar parado. Então a financeirização oferece para estes a possibilidade de investir em outras coisas. Como em outros ativos que não existiam antes, quando havia regulamentação, paridade metálica, o Acordo de Bretton Woods – que, por exemplo, regulamentava fluxo de capital – ou quando as contas de capitais dos países periféricos eram fechadas. Agora que está tudo aberto, veio o neoliberalismo e houve abertura comercial e financeira, esses capitalistas podem especular nesse setor. E agora a financeirização vai “financeirizando” coisas que, antes, eram só produção.

Então, por exemplo, na época do “O capital financeiro” do Hobson, na virada do século 20, a empresa de celular iria num banco tomar crédito. Isso era o capital financeiro do Hilferding e do Lênin. E então o dono do capital bancário também compraria ações daquela empresa. Essa era aquela “fusão” entre o capital bancário e o capital industrial, inclusive pessoal, porque o dono do banco também participava do conselho de administração da empresa. 

Agora, com a financeirização, essa empresa não vai mais no banco. Então a financeirização dos anos 70 para cá mudou – não só porque o valor das finanças se descolou muito do valor da produção, ou seja, se você olhar a produção real de mercadorias, ela é muito menor do que o que tem de valor, o que o fundo BlackRock, por exemplo, dirá que administra em termos de riqueza financeira. O que faz a financeirização ser financeirização não é só o deslocamento do valor real da produção do valor fictício do mundo das finanças – isso nós podemos dizer que é uma consequência. Mas o que caracteriza a financeirização é uma mudança na fração do capital que ganha hegemonia nesse período. Não é mais o capital bancário; a empresa não vai no banco se financiar. Quem vai no banco é a gente, pessoa física. O que a empresa faz? Ela vai vender dívida privada, dizendo: “estou vendendo estas debêntures, essas dívidas aqui”. Daí vem uma corretora empacotar esse monte de dívidas num título, que por sua vez vai ser vendido para um fundo de investimentos. São os fundos de investimentos, os investidores institucionais, os grandes protagonistas da financeirização. E esse fundo de investimento vai comprar esses títulos e participar do conselho de administração da empresa, onde vai buscar garantir que toda a lógica da empresa também seja uma lógica financeirizada, para garantir a valorização daquela riqueza no menor prazo possível. Ou seja, a empresa vai deixando de se guiar, por exemplo, pelo aumento do investimento, pela solidez de sua produção. A média de idade das empresas hoje é muito pequena – não existe mais aquela história da “padaria que existia desde os anos 20”. Porque a lógica é o retorno em curto prazo para o acionista. Só que tudo isso tem uma contradição: as finanças não surgem do nada. Elas sempre estão ligadas a uma base material, ainda que o valor possa se deslocar. Em períodos de crise, esse valor tem que remunerar todo mundo – só que ele não consegue remunerar todo mundo. Então tem que queimar esse capital.

O que acontece? Digamos que uma empresa vá montar um estacionamento no Instituto de Economia da UNICAMP. Essa empresa não tem dinheiro, ela não vai no banco, e sim na Bolsa de Valores. Vai e diz: “ganhei uma licitação, vou montar um estacionamento. Me financiem, estou vendendo cotas de 5 mil reais”. As pessoas começam a comprar cotas. Daqui a pouco, esse título, essa cota, vai começar a se valorizar, e ele vai ser negociado no mercado secundário por 10 mil reais. E daqui a pouco quem está com aquele título vai vender para um fundo, etc. Essa ação de 5 mil para construir o estacionamento – ela precisava que o estacionamento fosse construído, tinha que ter uma base material, produtiva. Mas essa ação vai rodar em várias instâncias do mercado, valorizando e valorizando. Mas o estacionamento está lá, e ele vai garantir uma apropriação de uma parcela do excedente futuro da quantidade de carros que forem estacionar lá. Quando se compra um título, público ou privado, se está comprando o recebimento futuro de um empreendimento, de um ativo, que vai existir – mas o valor desse título vai deslocando. E em momentos de crise você tem que garantir a remuneração daquilo que foi transacionado. Normalmente, isso vai ser garantido aumentando as condições de exploração dos trabalhadores: para garantir mais mais-valor para ser distribuído entre esses agentes financeiros que transacionaram com essas mercadorias fictícias. Por isso que, em momentos de crise, principalmente sob a hegemonia das finanças, se apertam ainda mais as condições de exploração da classe trabalhadora. E cada vez as crises vão sendo mais recorrentes.

Antes havia uma coisa que chamávamos de “tendência dos ciclos de Kondratiev”, que era uma ideia soviética, um pouco científica, de que existe uma tendência de um ciclo perfeito, que leva mais ou menos 50 anos: e as crises realmente levavam 50 anos. Do final do século 19 à crise de 1930; da crise de 1930 à crise dos anos 1970. Mas de um tempo para cá as crises têm sido cada vez mais recorrentes, porque a esfera financeira é muito mais instável, muito mais desregulamentada; tem uma tendência a transacionar muito mais valor do que o que é gerado na produção. E para garantir esse pagamento [no momento de crise], ou os Estados socorrem ou se explora ainda mais a classe trabalhadora.

Revista Opera: Você também trata no livro dos críticos da ideia de imperialismo. Um dos casos é o livro “Império” de Antonio Negri e Michael Hardt – que teve uma enorme influência para uma geração de militantes inteira, a partir dos anos 2000 – e você também discute a ideia de que o surgimento das cadeias globais de valor (ou seja, uma infraestrutura de produção descentralizada, que passa por diversas regiões e diversos países) implicaria no fim do imperialismo. Queria que falasse um pouco sobre essas posições; as posições do livro “Império” e essa ideia de que a descentralização da produção implicaria o fim do imperialismo.

Juliane Furno: Como falei antes, o imperialismo amargou um refluxo reflexivo até o início dos anos 2000, e é muito curioso que ele volte à cena política sendo negado; o “Império” como a negação da validade da categoria de “imperialismo” para entender o capitalismo. O Negri e o Hardt avaliam que o imperialismo havia sido a forma de manifestação política das economias capitalistas da era moderna e que agora, na era pós-moderna, não se trataria mais do imperialismo, mas do “império”. E eu vejo, acho que essa talvez seja a coisa mais disseminada. Há duas ideias, claro: primeiro, a ideia de que o imperialismo não existe, que isso seria uma ideia alucinada da esquerda; mas mesmo entre os militantes de esquerda e os críticos aos Estados Unidos, há muito presente a ideia de que hoje não há mais poder vinculado a uma soberania nacional, territorial, mas sim que as grandes corporações ocuparam esse lugar. Essa ideia é muito disseminada.

O “império” foi muito bem aceito, inclusive, por ser a negação do imperialismo num período que vai marcar novas ofensivas imperialistas, não tanto no campo monetário, como foram os anos 70, mas no campo propriamente militar, com as ofensivas que se intensificam a partir de 2001 no Oriente Médio. É bastante ingênuo, e não sobrevive muito a uma análise empírica, achar que são as grandes corporações que hoje tomam suas decisões “próprias” e que, assim, teriam substituído a soberania política dos Estados. Basta olhar quem são as grandes corporações, a quais Estados estão filiadas, para quais Estados elas remetem lucros, ou mesmo as decisões mais contemporâneas [dos Estados]: o que foi os EUA permitindo venda de alguns ativos desde que não sejam para chineses. Ou seja, as empresas não têm soberania nem na venda de cotas! E essas empresas respondem a uma lógica; são inclusive financiadas, têm a sua tecnologia desenvolvida – como é o caso da internet – por um Estado nacional com interesses militares, que parte de um debate que envolve o Departamento de Estado dos EUA, o aparato de Defesa dos EUA.

Há também a ideia de que as burguesias são cosmopolitas, de que “o centro está na periferia e a periferia está no centro”: sim, existe uma tendência de pauperização nas condições de vida da classe trabalhadora nos países centrais também. Mas a burguesia brasileira não explora os trabalhadores dos países centrais – e eu nem gostaria que explorasse, não é uma defesa da burguesia brasileira. É uma constatação: mesmo a exploração que se dá nesses lugares [centrais] não é uma exploração universalizada do ponto de vista geográfico.

Dá pra dizer também, hoje com muito mais propriedade, que a própria Lava Jato é uma experiência de uma guerra de caráter comercial, movida por um Estado nacional contra uma empresa de um outro Estado nacional, através não da empresa, mas de sanções ao Estado, ou de patrocínio de golpes. Portanto, são Estados em disputa tentando barrar interesses que são empresariais; porque essas empresas respondem, obviamente, à lógica de um Estado nacional. A Odebrecht não construiu porto em Cuba, embargada pelos Estados Unidos, ou o metrô em Caracas, por uma lógica empresarial desinteressada. Mas a partir de uma concepção de um Estado. E assim é com as demais empresas: a sua atuação nos países periféricos também se dá a partir de uma ação interessada de seus Estados. E sim: os países centrais têm um aumento expressivo na sua pobreza, mas enquanto a pobreza nos países periféricos tende a aumentar em graus muito superiores, inclusive com deterioração de qualquer possibilidade de manutenção de um sistema de seguridade social – porque as empresas e o capital desses países centrais também tentam se aproveitar do que são os ganhos da mais-valia da seguridade social nos países periféricos.

Então acho que há uma análise muito mais complexa que mantém viável, com atualidade histórica e atualização teórica, a ideia de imperialismo, frente a qualquer possibilidade de ser subsumida à ideia de “império”.

Quanto às Cadeias Globais de Valor (CGV), é um debate muito legal que tem sido desenvolvido por Intan Suwandi, que é uma autora indonésia que dá aula nos Estados Unidos e tem tratado da ideia de Cadeias de Valor-Trabalho, uma forma de garantir que o que está no centro [da discussão sobre as Cadeias Globais de Valor] sejam várias relações políticas e econômicas e, especialmente, a força de trabalho. As Cadeias Globais de Valor não são o fim do capitalismo ou o fim da centralização “nacional” dele. Essa ideia de que as nações agora não têm as suas empresas, portanto perderam poder econômico – não; o que se transfere são as partes baixas do processo produtivo; a montagem, as camadas manuais da industrialização do trabalho. A parte de maior valor adicionado segue sendo realizada nos países centrais.

E usar essa métrica das Cadeias de Valor-Trabalho desmonta o que é uma teoria muito convencional na economia: a ideia de que a produtividade marginal do trabalho determina o salário nominal dos trabalhadores. Até hoje se fala muito sobre isso. Samuel Pessoa, por exemplo, vive dizendo que os salários são baixos no Brasil porque a produtividade é baixa. Veja: a produtividade na China, na Indonésia e na Índia é muito superior à produtividade de países como os Estados Unidos. E mesmo assim a remuneração da força de trabalho é muito menor nestes primeiros; portanto a remuneração da força de trabalho não é uma lei econômica decorrente da produtividade. O ganho da produtividade é um ganho de excedente; todo ganho de excedente é um ganho de distribuição de valor, que diz respeito à luta distributiva, portanto de luta de classes. E essas cadeias são uma das formas de manutenção da transferência de valor, porque transferem uma parte do valor – a parte com mais trabalho – para os países centrais, com um valor – tal como Samir Amin apontava – que não incorpora no custo unitário dessas mercadorias ou insumos à quantidade de trabalho, se houvesse uma equalização ou padronização da taxa de salários.

Revista Opera: É recorrente no debate político, midiático e econômico brasileiro nós ouvirmos a ideia de que o Brasil precisa mudar sua legislação trabalhista e tributária, e as suas regulações em geral, para atrair mais investimentos estrangeiros. De acordo com dados que você cita no livro, os investimentos estrangeiros no País de várias modalidades cresceram de 2003 a 2013; e uma das modalidades específicas, o investimento estrangeiro direto, seria responsável por cerca de 3% do PIB brasileiro – o que colocaria o Brasil entre os cinco países que mais recebem esse tipo de investimento. O Brasil realmente precisa mudar suas leis, sua regulação, para atrair mais investimentos estrangeiros? E é necessariamente bom, para um povo ou para um País, receber mais investimentos estrangeiros?

Juliane Furno: Eu acho muito bom que possamos contar com uma coisa chamada História, e especialmente a História recente, não é? Porque veja: a apreciação desse dado mostra, principalmente pós-2008, também com uma mudança do comportamento da China com relação aos países periféricos, que houve um aumento no Brasil das inversões de capital estrangeiro, especialmente via investimento direto externo, e num período que não houve reformas no campo trabalhista; pelo contrário, houve aumento da fiscalização do trabalho; aumento na formalização do trabalho; um aumento no custo mínimo da força de trabalho, no salário mínimo, com impacto na estrutura média salarial. E não houve nenhuma mudança significativa na legislação tributária também. O que poderia inclusive haver porque, fora o Brasil, somente a Estônia não taxa lucros e dividendos, e no Brasil ainda temos uma inequidade tributária muito grande, que em alguma medida pesa bastante sobre o capital; que poderia pesar mais sobre pessoas físicas muito ricas e menos sobre o capital. Ou seja, uma reforma tributária progressiva poderia inclusive contribuir – ao contrário do que a mídia aponta – na lógica de atração de capital, no sentido de talvez haver menos custos tributários sobre o investimento feito no Brasil.

Agora, é bom lembrar que grande parte desse investimento estrangeiro – aí não o investimento direto externo, mas investimentos em carteira, em portfólio – são investimentos de caráter especulativo, de curto prazo. E quero explicar de antemão; esses investimentos são importantes por um motivo: o Brasil, assim como os demais países subdesenvolvidos, tem uma tendência a ser deficitário histórica e estruturalmente no que chamamos de transações correntes. Ou seja: os países têm, nas suas contas nacionais, duas balanças; uma balança que é a de transações correntes. Nela há a balança comercial, a de serviços e uma conta de capitais. Nós somos muitas vezes superavitários na balança comercial – ou seja, exportamos mais mercadorias do que importamos –, mas sempre somos muito deficitários na balança de serviços, porque o Brasil é uma economia muito pouco desenvolvida, então temos que importar tecnologia, aluguel, frete, tudo. E então essa conta dá negativo. Mas o balanço de pagamentos de um País tem de ser sempre zero. Se não for, precisamos captar recursos internacionais; o que é um problema, porque precisaria pedir para o FMI, com todos os constrangimentos que isso significa. Como compensamos então um lado negativo da conta? Tendo um outro lado positivo. E o outro lado do balanço de pagamento, que não são as transações correntes, são as transações financeiras: lá estão os investimentos em portfólio, em carteira, atração de investimento direto externo, etc. Ou seja: de um lado da balança nós botamos mais dólares para fora – porque no fim do dia contratamos mais coisas em dólares do que recebemos –, e no outro lado da balança nós temos que receber mais dólares do que mandamos para fora. Então a nossa taxa de juros há sempre de ser maior do que a do mercado mundial, porque temos que ter esse diferencial para os investidores virem colocar dinheiro aqui – isso é um limite estrutural, por exemplo, para a nossa política monetária. Então esse capital é importante porque precisamos dele para fechar em zero, para não recorrermos ao FMI.

Só que ele entra aqui e não tem nenhum problema para sair a hora que quiser. Porque durante a gestão Armínio Fraga no Banco Central, no governo Fernando Henrique Cardoso, acabou qualquer tipo de controle sobre esses fluxos de capital. Inclusive esse investidor nem paga nada, e fica ganhando na especulação: chega num dia, sai no outro. O que o Lula fala que “desagrada o mercado financeiro” são esses investidores; fazendo movimentos coordenados de entrada e saída. E esses movimentos sem regulação vão afetar a taxa de câmbio, a estabilidade, etc. Então essa forma descontrolada é muito ruim. O investimento direto estrangeiro é bom para o País, embora tenha um problema: ele remete lucro. Ou seja, ele vai fazer com que parte dessa conta toda da balança de pagamentos seja remeter mais dólares para fora – e portanto vamos precisar que mais dólar entre. E, de novo, às vezes tem que entrar por um motivo especulativo. Então é um investimento bom desde que seja coordenado por um projeto: um projeto de transferência tecnológica, um processo de substituição de importações. Um projeto em que o capital entra aqui, supre um setor importante, mas nós temos um aprendizado e um ganho tecnológico, como são nas experiências chinesas, e depois nós vamos montar nossa própria fábrica.

E, para finalizar: a própria indústria de petróleo e gás, durante o período Lula e Dilma, período em que mais havia regra de conteúdo local, período em que a Petrobras era a operadora única, etc; o período que mais tinha “interferência estatal” era o período que mais as empresas estrangeiras internacionais vinham disputar leilão. Agora fazem leilão e não vem ninguém!

É uma pena que o jornalismo econômico, escrito ou televisivo, não chame um contraponto: porque esse tipo de argumento não resiste a meia dúzia de dados. Assim eles podem ser medíocres e relativamente canalhas sem serem constrangidos ao vivo, porque não têm um debatedor para se contrapor ao seus argumentos. Então, no fim das contas, isso é disputa ideológica. E veja: 3% do PIB… Nenhum país quebra porque parou de vir investimento estrangeiro; nenhum país deixa de investir num país que tenha o que o Brasil tem: mão de obra abundante, recursos naturais, um mercado interno gigantesco. Há muito mais elementos que determinam a vinda de investimento internacional do que como estão as coisas públicas, qual é a legislação trabalhista vigente, se o governo tem déficit ou não, etc. Mas isso faz parte de um jogo político, que é o de fazer pressão econômica – não através de partidos, organizações da sociedade civil – mas a partir da economia, como uma arma de combate, e não como um ramo do conhecimento que precisa passar pelo olhar da política e portanto o olhar do debate público. Mas, sendo tratado dessa forma “técnica”, parece que o argumento é natural, objetivo, avalizado pelas contas matemáticas, e que não está submetido a debate. Portanto nos dão de bandeja que ou essas reformas são maturadas ou o Brasil vai perder as oportunidades no mercado internacional.

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