Finalmente, a Livraria Cultura teve sua falência decretada. Não escrevo isso com nenhum prazer, mas tampouco tomado de compaixão ou nostalgia. Os editores, livreiros e sebistas têm uma longa lista de rancores em relação à gigantesca rede de livros que tinha sua loja-sede na Avenida Paulista. No fundamental, esses rancores vêm das práticas monopolistas que a Cultura impôs ao mercado dos livros – descontos absurdos que pressionavam a concorrência, condições de compra de estoques terríveis para as editoras, atrasos ou ausência de pagamentos para fornecedores (ajudando a levar alguns deles à falência), etc. Todas as práticas por meio das quais a Amazon se estruturou nos Estados Unidos, a Cultura buscou levar adiante antes dessa concorrente gringa desembarcar por aqui. Daí porque tantas pessoas ligadas à produção e venda de livros lembrem a Cultura, agora que ela se foi, em termos tão duros.
Compreendo que alguns tenham nostalgia, que lembrem de um café que tomaram naquela megastore no Conjunto Nacional, de um livro que compraram ali para um filho, de um lançamento ao qual foram no teatro dentro da loja. Mas por trás daquele ambiente aconchegante e revigorante, dos sofás e puffes estendidos aos leitores-compradores, dos funcionários sempre muito simpáticos e de toda a loucura abissal que era uma loja de três andares lotados de livros, havia um modelo comercial que efetivamente parecia odiar os livros.
Uma das memórias amarguradas que li hoje sobre a livraria é de um editor que trabalhou ali aos 18 anos. Disse que ficou pouco tempo na loja, mas lembrou de um cliente que atendeu: um senhor, visivelmente pobre, que se disse analfabeto, e que tinha ido à loja comprar um livro para a filha. A menina, ou moça, tinha escrito o título num pedaço de papel. O então atendente foi atrás do livro no estoque e, quando voltou para o seu cliente, ele tinha sido retirado da loja por um segurança, sob o argumento de que sua presença estava espantando os outros clientes. O atendente correu pra fora da loja tentando achar o senhor, mas não o encontrou; e ficou com aquele papelzinho. Ele terminava de contar a história presumindo o sentimento de desonra e incompetência que o velho sentiu, chegando em casa sem ter conseguido comprar o livro da filha.
Evidentemente, não foi culpa do segurança. Mas, mesmo que não tenha havido uma ordem direta da gerência, é de nos colocar a pensar: que tipo de monumento aos livros expulsa de si um velho analfabeto que foi ali procurar um livro pra filha? Se é lícito remoer-nos de aflição porque aquele espaço tão magnífico banhado a luzes quentes já não existe mais, também não devemos supor que era um espaço feito para alguém? Que fora um espaço pensado para que determinados clientes se sentissem bem, e que outros fossem afastados para que não espantassem estes primeiros? O livro é uma arma da universalização: qualquer exclusivismo quanto a ele é comparável à sua queima.
Estas coisas calam fundo em mim, mas, além disso, calam fundo no Brasil. Começo pelo pessoal; os que me são mais próximos já conhecem a história. Minha avó veio para São Paulo de uma cidadezinha da Paraíba, na divisa com Pernambuco, para “trabalhar em casa de família”. Aqui conheceu meu avô, um filho de espanhóis que trabalhava com construção civil. Esse meu avô foi mobilizado para a Segunda Guerra – felizmente não embarcou – e, enquanto estava mobilizado, escreveu alguns diários. Conta minha mãe e tias que, um belo dia, minha avó “juntou uma lixairada” e botou pra fora de casa. Entre o “lixo” perdido como entulho, aqueles diários. Meu avô ficou muito sentido, e realmente sinto muito por ele. Mas o que realmente me embrulha o estômago é minha avó: ela só jogou aquilo fora, só tratou os diários como lixo, porque nunca aprendeu a ler. Não poderia nem supor o que era aquilo na sua inteireza: este é o aspecto realmente triste da história. Imagino a dureza da situação dos dois: apesar do inestimável valor daquelas coisas escritas, a condição da minha avó era tão injusta que tornaria injusta qualquer revolta de meu avô. A vó Joséfa era como aquele senhor expulso: incapaz de ler e escrever, mas suficientemente digno pra dar pra filha aquilo que não teve, nem poderia entender. Mas aquele espaço mágico no Conjunto Nacional o chutou de lá.
Apesar dessa trajetória familiar, dei a sorte de ter pais que, embora pobres, eram leitores. Faltou muita coisa na infância e na adolescência, mas não faltaram livros. Cresci podendo vê-los, tocá-los, até pedir alguns vez ou outra: pude ter suficiente tempo e contato para aprender a gostar deles. Criou-se aí um hábito, que acabaria virando ofício: me espantei quando, vendendo meu primeiro livro, consegui pagar um amontoado de dívidas com as quais eu ia tocando a vida enquanto tentava viver da escrita. “Comendo palavras” foi o título de um pequeno texto que enviei para os apoiadores desta Revista Opera, rememorando que logo eu, que na infância tinha pegado uma coleção do Monteiro Lobato numa das estantes de casa e vendido no ferro velho para almoçar; logo eu, neto de Joséfa; estava agora – graças ao livro que escrevi, e graças ao apoio deles – podendo comer a partir desse ofício.
Poder comer da escrita é, naturalmente, um grande privilégio. Mas mesmo que nunca tivesse tido a ousadia de escrever uma só palavra, ter sido pobre e leitor já teria sido um escudo e uma lança. Por um lado, porque poder ler realmente é uma sorte imensa: o exercício profundo de decodificar o visual (a palavra) numa abstração, numa série de ideias ou imagens que se passam dentro da nossa cabeça, cria uma inteligência específica, um distanciamento que dá ao leitor a “capacidade de agir sem reagir ou envolver-se” que tem um impacto gigantesco nos homens e nas sociedades. A criação das nações não teria sido possível sem a invenção da imprensa, argumenta Marshall McLuhan no seu “Os meios de comunicação como extensões do homem”. Concorda com ele aquele Monteiro Lobato que me comprou um almoço décadas após ser já falecido: “Um país se faz com homens e livros”. Por outro lado, ser leitor me deu uma dignidade única como pobre. Não porque os meus semelhantes não lessem também, porque eu me “destacasse” entre eles de alguma forma – o que me entristecia e entristece – mas porque me protegeu, muitíssimas vezes, da ignorância e prepotência típica dos abastados. Sobram histórias nesse sentido.
Bem, do pessoal para o Brasil: eu demorei mas, pelos livros, descobri que aquela história da minha avó, que tanto me impressionava, era a História do Brasil. Um dos traços distintivos do nosso País – que nos separa mesmo de países vizinhos – é o nível da ignorância à qual nosso povo foi submetido, e a duração dela. Não tivemos uma maioria alfabetizada até os anos 50 do século passado; fundamos nossas universidades 300 ou 200 anos depois de nossos vizinhos. A razão para tudo isso é óbvia: escravos não precisam ler. E a consequência também: se não lerem, é mais difícil que se rebelem (lembram-se, a propósito, do quão impressionante foi aquele revolta de escravos na Bahia, em 1835? Um dos traços característicos dos malês era precisamente a alfabetização). É impossível pensar qualquer coisa no Brasil sem pensar a trajetória da leitura neste canto do mundo – num livro que escrevo sobre militares, por exemplo, dedico um capítulo ao tema.
Enfim, voltando à Livraria Cultura: o caso daquele senhor, que não conseguiu o bendito livro da filha, pode ser mesmo só um caso, um erro do segurança; poderia até ser só uma invencionice de um editor amargurado. Mas ainda assim seria emblemático do que era a Cultura: um ambiente de livros incensados a café caro, de uma empresa que parecia e prometia ser uma espécie de Meca dos livros, mas que, no seu trato com pequenos concorrentes e editores, bem demonstrava que preferiria os malês analfabetos; como o senhor expulso, como minha avó.
Apesar de tantas reclamações de contas não pagas, a Livraria Cultura se expandiu muito à base de empréstimos do BNDES: ao menos 31,7 milhões em 2011 e 28 milhões em 2013. Não me oponho – pelo contrário, aprovo; mais, exijo! – que um banco de desenvolvimento invista milhões de reais na leitura. Como disse, nós temos, como Nação mesmo, uma conta a resolver com os livros, que não será resolvida – e pior, só se aprofundará – pelos “novos meios” de comunicação. Mas, convenhamos: no que tange à popularização da leitura, dos livros, da cultura, não era aquilo só mais uma dessas coisas exuberantemente lindas, gigantescas, mas ocas e mentirosas, que nos são tão comuns?
“Menos armas, mais livros” foi uma frase muito difundida e usada pela campanha de Lula no ano passado. Agora que temos um novo governo, há a oportunidade de efetivar o slogan: que se joguem milhões na cultura (com “c” minúsculo, não maiúsculo), na leitura, na escrita; que se dê subsídios aos livros e que se imponha uma regulação que impeça que a Amazon siga fazendo o que a Cultura fez por tanto tempo: tratar o livro como commodity.
Termino homenageando, agradecendo e sugerindo que o governo se empenhe, portanto, a dar força a alguns setores e iniciativas que, tal qual aquele senhor expulso da megastore, à primeira vista são bem simples, mas carregam sua giganteza precisamente em seus atos mais prosaicos: sebos, seus donos e trabalhadores; pequenas e médias livrarias e livreiros; editoras, escritores, editores, trabalhadores do livro em geral; bibliotecas, bibliotecários e todos seus funcionários; saraus, poetas, slams* e slammers; escolas públicas, professores, seus funcionários e alunos.
Este país não precisa nem nunca precisou de gigantescos monumentos privados à providência da leitura; precisa antes de seu povo perambulando pelas sendas, vielas e esquinas com livros nas mãos.
* Com uma dedicatória especial ao Slam da Guilhermina, que completa 11 anos neste mês, e que, como tem feito com muitos, pôs um tijolo na minha formação.