Os povos do Equador foram às urnas no dia 5 de fevereiro para votar nas eleições locais e no referendo nacional promovido pelo atual governo de Guillermo Lasso. Mais de 6 milhões de pessoas participaram daquela que seria a última esperança de Lasso para recompor sua autoridade perante a sociedade equatoriana, após seu governo alcançar o escandaloso marco de 80% de insatisfação em dezembro de 2022. Mas não houve salvação, o governo foi derrotado: o povo disse “Não” para todas as perguntas do referendo, além de eleger mais representações progressistas em todas as províncias do país.
Com a escalada da crise social, econômica e política e os escândalos envolvendo a Presidência da República em casos de corrupção, o povo equatoriano marcha pela derrubada imediata do governo.
Para entender o referendo nacional: uma tramoia para enganar o povo
Em setembro passado, diante da enorme rejeição de seu governo, o banqueiro Guillermo Lasso apostou na convocação de um referendo nacional para incluir oito emendas à Constituição, justificando-as como medidas necessárias para enfrentar a grave crise econômica, social e de segurança que vive o país. Imediatamente, as forças populares do Equador denunciaram o caráter enganoso do referendo, uma vez que as propostas eram incapazes de resolver os problemas. O governo se utilizou de temas importantes, como a proteção ao meio ambiente e segurança, para tentar angariar apoio da população, ao mesmo tempo em que propôs retrocessos nos âmbitos da soberania nacional e participação popular.
Um caso do oportunismo do governo é demonstrado na sua proposta para conter a violência. O Equador vive hoje uma explosão de violência devido ao aumento do poder do narcotráfico e da ausência do Estado, especialmente nas províncias mais pobres, como Esmeralda, na costa noroeste do país. Para resolver a questão de segurança, a proposta do governo era incluir uma emenda à Constituição que autorizasse a extradição de pessoas envolvidas em crimes transnacionais.
É fato que o aumento da violência e da insegurança no país se dá pela expansão do crime organizado, especialmente a partir de três fatores na história recente: alteração da rota do narcotráfico para via terrestre passando pelo território equatoriano; adoção do dólar como moeda oficial, facilitando as transações e a lavagem de dinheiro; e, é claro, a íntima a relação dos agentes do Estado e do governo com o crime organizado.
Por todos esses motivos, é evidente que algo precisa ser feito para estancar a crise de violência em que o Equador está imerso. E o povo sabe disso. Inclusive, as pesquisas recentes apontam que a insegurança está em primeiro lugar dentre as insatisfações populares. Note: não é a alta dos preços e nem a falta de saúde básica, é a insegurança.
Mas o resultado político de 5 de fevereiro conclui, primeiro: que o povo não confia no governo Lasso para resolver seus problemas, afinal, ele próprio faz parte do problema. Segundo, e mais importante: uma maior força os movimentos populares, que propuseram em seus programas nas eleições locais medidas mais efetivas para combater a insegurança, como a depuração as Forças Armadas (corruptas até os ossos) e garantia de investimento nos serviços básicos à população – educação, saúde e moradia. Demonstração dessa força é o fato do partido de Lasso não ter ganhado nenhum governo provincial, enquanto a direita neoliberal, representada pelo Partido Social Cristão, perdeu para a coalizão correísta (ligada ao ex-presidente Rafael Correa) a província de Guayaquil, que governava há 30 anos. Já a esquerda revolucionária, representada pelo partido Unidad Popular (UP) superou a cláusula de barreira, elegendo pela primeira vez representantes em todas as províncias, além de vencer o governo provincial de Orellana e de Zamora-Chinchipe, este último em aliança com o movimento indígena Pachakutik.
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O referendo, enfim, provou-se só uma tentativa desesperada de Lasso, e elucidou, na realidade, a capacidade de organização e consciência elevada dos setores populares no Equador. Para Giovanni Atarihuanna, presidente da UP, a vitória do “Não” demonstra que “os equatorianos e equatorianas não confiam num governo medíocre, mentiroso, indolente e corrupto como o de Lasso.”
Governo neoliberal e corrupto: Fora Lasso Já!
A corrupção e o envolvimento do governo com o narcotráfico são elementos que ganham destaque em proporções gigantescas a partir de meados de fevereiro, quando o portal local La Posta divulga uma notícia estarrecedora: havia indícios de que o próprio Lasso estaria envolvido até o pescoço com esquemas de corrupção. A partir de áudios divulgados pelo portal, se expõe uma estrutura de corrupção nas empresas públicas envolvendo Danielo Carrera, cunhado de Lasso, e seu círculo de amigos. A acusação é de venda de cargos públicos, propinas e laços com a máfia albanesa.
As revelações indicam que o caso de corrupção funcionou dentro da Empresa Coordenadora de Empresas Públicas (EMCO), a partir de contratos irregulares no valor de 864 milhões de dólares. Nas hidrelétricas, diversos contratos do setor elétrico teriam sido influenciados, nos últimos dois governos, por Leonardo Cortázar, um operador e financiador de campanhas eleitorais de Correa, Moreno e Lasso. A Procuradoria Geral da República batizou esta rede de corrupção como “Caso Encuentro”, codinome que parodia o lema do “governo da reunião” de Lasso.
Em 4 de março, na Assembleia Nacional, com 104 de 137 votos, os parlamentares recomendaram a abertura do impeachment do Presidente da República pelo crime de conivência com corrupção, em documento intitulado “El gran Padrino”.
Fato é que o povo equatoriano está submetido a uma crise gravíssima: o desemprego sobe desenfreadamente, faltam remédios básicos nos hospitais públicos e o custo de vida está insustentável. Dados apontam 25% da população vivendo na pobreza, ou seja, sem conseguir arcar com o custo de uma cesta básica (764 dólares); quase 10% da população vive na extrema pobreza, com 55 dólares por mês; e mais de 65% da força de trabalho não tem acesso a empregos regulares, aproximadamente 5,5 milhões de pessoas.
Vale lembrar que essas circunstâncias se dão pelas políticas neoliberais implementadas ano após ano (governo após governo) e que aprofundam as péssimas condições de vida do povo. Em outubro de 2019, Quito foi palco de uma grande greve nacional, encabeçada pelos movimentos populares e indígenas, com enfrentamentos de rua entre os manifestantes e a polícia, prisões e mortes. A principal reivindicação era que o governo recuasse do pacote de ajuste fiscal (aumento dos impostos sobre combustíveis e corte no orçamento da saúde e educação). O levante tomou proporções gigantescas e fez com que o ex-presidente Lenin Moreno fosse obrigado a deixar o palácio do governo, em Quito, e estabelecesse o poder executivo em Guayaquil.
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Diante de toda a crise instaurada no país, as forças sociais lideradas pela Frente Popular vão às ruas com a palavra de ordem “Fuera Lasso Ya!” reivindicando a saída imediata do presidente, por renúncia ou impeachment, em contrapartida ao possível adiantamento das eleições em até 6 meses, proposta governista conhecida como “morte cruzada”.
Desde fevereiro, acumulam-se forças nas ruas pelo Fora Lasso Já, aliadas à lutas econômicas, a exemplo do rechaço à nova lei orgânica educacional (uma espécie de Reforma do Ensino Médio equatoriana), encabeçada pelos professores e estudantes. Em seguida, no Dia Internacional das Mulheres, milhares de jovens e trabalhadoras marcharam com cartazes denunciando a violência de gênero e exigindo direitos iguais.
Nos próximos dias de março se espera que aconteçam mais ações nacionais a partir da unidade entre as entidades que representam os trabalhadores, os estudantes e demais setores populares, exigindo a saída do presidente corrupto.