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Breves (e urgentes) notas sobre o ludismo

O ludismo passou à história como uma rebelião de desesperados. No entanto, foi uma primeiras mostras do desenvolvimento de uma incipiente consciência de classe entre os trabalhadores ingleses.

O ludismo passou à história como uma rebelião de desesperados. No entanto, foi uma primeiras mostras do desenvolvimento de uma incipiente consciência de classe entre os trabalhadores ingleses. Por Juan Manuel Soria | Primera Línea – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
“Enoch”, o martelo usado pelos trabalhadores ludistas. (Foto: davepattern)

Num 11 de março de 1811, explodiu a primeira rebelião ludista em Nottingham, na Inglaterra. A destruição da maquinaria como forma de protesto não era algo novo, mas sim uma tática que vinha se desenvolvendo há décadas junto com o incipiente processo de industrialização.

Este tipo de ação não correspondia a um “terror” em relação à tecnologia. Era uma forma de protesto que tinha bastante a ver com as noções da economia moral da época, com a proteção do ofício artesanal frente ao avanço da maquinaria e a grave situação econômica gerada pela guerra contra a França revolucionária. Apesar de ter havido várias ondas de destruição de máquinas, a mais importante foi a do período entre 1811 e 1812, que coincide com uma grande carestia gerada pelo conflito bélico e pelo fechamento do mercado americano, o que impedia a exportação da produção britânica.

Às noites, depois de enviar cartas ameaçadoras aos donos das máquinas tecelãs (assinadas pelo mítico Ned Ludd, um personagem fictício), os ludistas invadiam as oficinas com seus rostos enegrecidos, armados com o “Enoch”, seu martelo, e passavam a destruir os teares mecânicos. Contavam com um alto nível organizativo e eram protegidos pelas comunidades e aldeias nas quais viviam e trabalhavam. Em 1812, diziam as autoridades britânicas, o movimento tinha chegado a um tal nível de organização que a situação demandava a intervenção do exército inglês, o que efetivamente ocorreu. Os cabeças do movimento foram julgados e condenados à forca.

Este não é um fato menor, já que, como disse George Rudé em A multidão na História, os contemporâneos ao ludismo “se inclinaram a ver nestas atividades desígnios mais profundos e sinistros […] dificilmente puderam deixar de associar a destruição de máquinas aos movimentos de reforma política […] houve uma tendência em crer que os ludistas estavam realmente dispostos a derrubar o governo pela força”. Os ecos da “era da revolução” eram sentidos na Inglaterra do fim do século 18 e início do 19, onde a difusão do ideário radical e jacobino com a formação das Sociedades de Correspondência fazia as classes dominantes temerem por uma explosão revolucionária similar à ocorrida em 1789 na França.

Embora o movimento em alguns momentos tenha chegado a ter certos aspectos “políticos”, com proclamações a favor de “derrubar” o governo, suas intenções e objetivos eram outros. Como a investigação histórica nos permite ver, o ludismo teve mais a ver com um último gesto quando as negociações não conseguiam solucionar os conflitos laborais. Não foi um “movimento desesperado”, e sim uma das primeiras mostras do desenvolvimento de uma incipiente consciência de classe entre os trabalhadores ingleses e, claro, também entre a burguesia e a aristocracia, que se uniram para defender seus interesses frente ao que sentiam como uma ameaça aos seus lucros.

 Leia também – Exigir a não-violência dos oprimidos é um critério impossível que ignora a História 

O movimento ludista foi eliminado quase completamente até o final da década de 1810. Passou à história como uma rebelião de desesperados sem nenhum tipo de organização nem eixo orientador. No entanto, autores como Hobsbawm, Rudé ou Thompson nos permitiram reavaliar o sentido de suas ações, as noções morais que as orientaram e suas causas e consequências. Contribuíram para resgatar sua práxis da “enorme condescendência da posteridade”. Suas ações, distintas das nossas formas atuais de luta e organização, seguem nos inquietando em um mundo onde a tecnologia e as máquinas colonizam cada vez mais nosso cotidiano. Nas ações, cartas e canções assinadas por Ned Ludd, talvez, possamos encontrar um espelho ao qual olhar, um reflexo de um passado que segue nos desafiando, um eco de tempos pretéritos de homens e mulheres que exigiram uma vida que valesse ser vivida.

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