Pesquisar
, ,

Familiares de mortos e desaparecidos na ditadura pedem a retomada de Comissão

Extinta no penúltimo dia do mandato Bolsonaro, Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos durante ditadura ainda não foi retomada.
Extinta no penúltimo dia do mandato Bolsonaro, Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos durante ditadura ainda não foi retomada. Por Rubens Valente | Agência Pública
Ato no DOI-CODI, em São Paulo, no marco dos 50 anos da ditadura militar, em 2014. (Foto: Mídia NINJA)

Passadas 12 semanas da posse do novo governo, ainda não foi reinstalada a CEMDP (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos) extinta pelo ex-presidente Jair Bolsonaro no penúltimo dia de seu mandato, em 30 de dezembro. Hoje (28) familiares de mortos e desaparecidos na ditadura militar (1964-1985) deverão se reunir em Brasília com o ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos e Cidadania) para pedir o retorno das atividades da CEMDP, a retomada das buscas pelos corpos dos desaparecidos e a conclusão de casos considerados pendentes, entre outras medidas.

São esperados para o encontro com Almeida cerca de 150 familiares dos mortos e desaparecidos, incluindo mais de 40 parentes de camponeses. Procurado pela Agência Pública, o ministério afirmou que a reunião não será aberta à imprensa. Disse que “tem trabalhado intensamente para a reinstalação da CEMDP, tomando todas as medidas cabíveis para que isso ocorra e tratando o caso com máxima prioridade” e que o “processo está, neste momento, na Presidência para decisão” (leia ao final a íntegra das respostas do ministério).

A CCV (Comissão Camponesa da Verdade), criada em 2012 por diversas organizações não governamentais, como a Contag, a CPT, o MBA e o MST, também solicitou uma audiência com Almeida para reforçar “o reconhecimento dos direitos à Justiça de Transição das comunidades camponesas”.

Foto com foco nas mãos de uma mulher durante ato Ditadura Nunca Mais, segurando um cartaz branco com a seguinte frase em vermelho: "onde estão os nossos desaparecidos?"
Familiares de mortos e desaparecidos na ditadura militar querem retorno das atividades da CEMDP. (Foto: Mídia NINJA)

A CCV pede a revisão da lei que criou a CEMDP (nº 9.140/95) a fim de “reabrir o prazo para requerimentos dos familiares de mortos e desaparecidos, inclusive camponeses e indígenas” e explicitar esses dois grupos como “elegíveis aos direitos” que a lei concedeu “por ação ou por omissão dos agentes do Estado”.

O ex-preso político na ditadura, ex-deputado federal pelo PT de Mato Grosso e membro da CCV Gilney Viana, um especialista no tema da violência da ditadura contra os camponeses, disse à Pública que “o diagnóstico hoje é que houve quase que uma exclusão dos camponeses e indígenas” na Justiça de Transição até aqui. Ele menciona que, desde 1995, a CEMDP não recepcionou nenhum caso de indígena e dos 50 casos de camponeses, 27 foram deferidos e 23, indeferidos. Na Comissão de Anistia, apenas 15 casos de indígenas foram deferidos, em um total geral de 78.887 protocolos até outubro de 2020. A CCV aponta que esse “é o retrato da exclusão total dos indígenas e quase total dos camponeses da Justiça de Transição nos processos administrativos”.

 Leia também – As “verdades” paralelas do Brasil Paralelo 

Para Viana, a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) cumpriu “apenas parcialmente seu mandato de ‘efetivar o direito à memória e à verdade histórica’”. Em artigo publicado neste mês na revista “Xapuri Socioambiental”, Viana escreveu que, por um lado, a CNV teve “o mérito de provar que as prisões ilegais, torturas, estupros, assassinatos de opositores políticos e ativistas sociais, e ainda ocultação de cadáveres, foram responsabilidade do Estado e não de agentes isolados do sistema repressivo”. Por outro, “ao não reconhecer nenhum, literalmente nenhum indígena, como morto e ou desaparecido forçado, quando tinha conhecimento de que pelo menos 8.350 casos de assassinatos de indígenas com participação e responsabilidade do Estado, no período estudado, reproduziu a lógica da exclusão da exclusão: exclusão histórica dos direitos da cidadania e exclusão dos direitos à memória, verdade, justiça e não repetição”.

Gilney Viana, ex-preso político da ditadura militar brasileira, é um senhor na faixa dos 70 anos, branco, com cabelos, barba e bigode grisalhos. Ele veste terno cinza escuro e camisa social cinza clara. Gilney está sentado em uma mesa durante uma audiência no Senado relacionado à ditadura militar
Para o ex-preso político e membro da CCV Gilney Viana (à dir), o Estado falha em reconhecer o direito à Justiça de Transição de camponeses e indígenas mortos e desaparecidos na ditadura. (Foto: Geraldo Magela/Agência Senado)

“Ao reconhecer apenas 41 camponeses mortos e desaparecidos”, continuou Viana, “quando tinha em mãos uma relação de 1.196 camponeses mortos e desaparecidos (incluindo 14 advogados e 7 religiosos apoiadores das causas camponesa e indígena) reproduziu o preconceito de classe, rendeu-se à cultura colonial da casa grande e do latifúndio que não reconhece a resistência camponesa como luta política, como exercício de direito formalmente estabelecido e politicamente conquistado”.

Criada em 1995 sob pressão dos familiares e ex-presos políticos no primeiro ano do governo FHC (1995-2002), a CEMDP tinha por objetivo “proceder ao reconhecimento das pessoas” mortas e desaparecidas “em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas” de 1961 a 1979 (depois, em 2002, a data final foi estendida para 1988). Outras tarefas da comissão eram “envidar esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas” e “emitir parecer sobre os requerimentos relativos a indenização que venham a ser formulados” pelas famílias abarcadas pela lei.

A comissão ficou, ao longo do governo Bolsonaro, vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, sob comando da pastora evangélica, bolsonarista e hoje senadora Damares Alves. Na maior parte do tempo foi presidida por um assessor de Damares, Marco Vinicius Pereira de Carvalho, até então um completo desconhecido no tema da ditadura militar e que já disse que o golpe militar de 1964 evitou “uma ditadura comunista” no Brasil. O governo Bolsonaro trocou quatro, dos sete membros, e assim garantiu a maioria no colegiado.

Desde o começo, o governo Bolsonaro deu indicações de que pretendia extinguir a CEMDP. Por duas vezes, em 2022, o Ministério Público Federal manifestou-se contrariamente a essa possibilidade. Em recomendação de dezembro último, o MPF mencionou que a CEMDP é necessária para “a perfeita execução das condenações” impostas ao Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, vinculada à OEA (Organização dos Estados Americanos).

O MPF citou os casos “’Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia)’, julgado em 2010, ocasião na qual o Estado brasileiro foi obrigado a ‘realizar esforços para determinar o paradeiro das vítimas, e identificar e entregar os restos mortais a seus familiares’ e a ‘indenizar as vítimas (reparação pecuniária por dano moral, material e por restituição de custas e gastos)’ (trechos da sentença); e do caso ‘Vladmir Herzog’, em que foi estabelecido que o Brasil deve ‘adotar as medidas mais idôneas, conforme suas instituições, para que se reconheça, sem exceção, a imprescritibilidade das ações emergentes de crimes contra a humanidade e internacionais, em atenção à presente Sentença e às normas internacionais na matéria’”.

 Leia também – Paramilitarismo militar: o terrorismo do “Grupo Secreto” antes e durante a ditadura 

“A extinção da CEMDP”, alertou o MPF, “é ainda prematura, considerando a existência de casos pendentes, que demandam providências administrativas, como o reconhecimento de vítimas, busca de corpos/restos mortais e registros de óbito, os quais ainda não foram objeto de requerimentos individuais, tais como os relacionados a desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, na Vala Perus e no Cemitério Ricardo Albuquerque”.

No governo Lula, a comissão deverá ficar na pasta de Silvio Almeida, junto com a Comissão de Anistia. Mas a demora para o preenchimento dos cargos e para o retorno das atividades da Comissão tem gerado dúvidas entre os familiares. Na página oficial do “quem é quem” do ministério, atualizada no último dia 22 de março, a única referência à CEMDP é um cargo, vago, de coordenação-geral de Memória e Verdade e de apoio à CEMDP. Essa indefinição contrasta com a situação da Comissão de Anistia, cujos novos membros foram anunciados ainda no dia 17 de janeiro.

Os familiares lembram que há muitos casos pendentes, por exemplo as inúmeras obras e ações da ditadura que vitimaram povos indígenas apontados pela CNV – o trabalho fala em mais de 8.350 mortos – e de camponeses. São citados ainda diversos casos no contexto urbano, como o assassinato, após sequestro, do diplomata José Jobim (1909-1979), já reconhecidos pela CNV como uma ação praticada por agentes do Estado.

Na quarta-feira (29), as famílias deverão se reunir novamente com o ministério para falar sobre a lei e a Comissão de Anistia.

Familiares de mortos e desaparecidos na ditadura seguram cartazes com as fotos de seus parentes e o nome deles em vermelho
Ainda há casos pendentes de vítimas da ditadura, que demandam providências como o reconhecimento de vítimas, busca de corpos/restos mortais e registros de óbito. (Foto: Mídia NINJA)

Ministério diz que busca de corpos é atribuição do Estado brasileiro

Em resposta às perguntas da Agência Pública, o MDHC (Ministério de Direitos Humanos e Cidadania) afirmou que a reinstalação da CEMDP é “máxima prioridade” e que o assunto está na Presidência da República. Sobre a retomada de buscas por corpos dos desaparecidos políticos, o ministério afirmou que “as buscas para a localização e identificação de pessoas desaparecidas é uma atribuição do Estado brasileiro, já que o Brasil foi sentenciado em alguns casos, como o referente à Corte Interamericana de Direitos Humanos e à 1ª Vara Federal de Brasília, ambos relativos à Guerrilha do Araguaia”.

“Além disso, com a restituição da CEMDP, revalida-se também sua função de ‘envidar esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados’”, respondeu a pasta.

 Leia também – José Genoíno: “Brasil tem que passar por uma purgação” 

Sobre a busca de corpos de camponeses e indígenas vítimas da ditadura, o ministério disse que “o caso tem recebido notória atenção deste Ministério em reuniões e planejamentos, mas ainda não há uma definição sobre a agenda”.

A respeito do pedido de revisão do prazo e outras mudanças da lei da CEMDP, o MDHC disse que “o tema ainda não foi debatido”. Sobre a proposta da Comissão Camponesa da Verdade de criar uma “uma diretoria ou equivalente” destinada “ao apoio à memória camponesa, indígena e quilombola”, o ministério respondeu que o tema “ainda não foi debatido a fundo, mas foi sinalizado, durante reunião com o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), sobre o caso Gabriel Salles Pimenta que há interesse por parte deste Ministério em instituir um instrumento de levantamento e apuração de fatos relacionados a violações de direitos humanos no campo”.

Pública solicitou acesso, para cobertura jornalística, ao encontro do ministro com os familiares, mas o pedido foi vetado. De acordo com a pasta, “trata-se de um encontro que foi requisitado pelos próprios familiares de mortos e desaparecidos na ditadura. Como forma de deixá-los mais à vontade para que eles apresentem suas reivindicações e necessidades, a audiência não será aberta ao público. Após a reunião, contudo, divulgaremos matéria para divulgar os principais pontos do encontro”.

Continue lendo

O candidato Pablo Marçal gesticula e olha diretamente para a câmera durante debate Folha/UOL. No seu paletó, há um adesivo com seu número: 28.
Marçal deve ir ao segundo turno, e debate na Globo é central para definir quem irá com ele
honduras xiomara castro
Ingerência e tentativa de golpe de Estado em Honduras
Um jovem chuta 'santinhos eleitorais' que cobrem as calçadas durante primeiro turno das eleições. Na foto, os santinhos voam, enquanto ao fundo uma caminhonete passa pela rua.
Frei Betto: eleições e a síndrome da gata borralheira

Leia também

sao paulo
Eleições em São Paulo: o xadrez e o carteado
rsz_pablo-marcal
Pablo Marçal: não se deve subestimar o candidato coach
1-CAPA
Dando de comer: como a China venceu a miséria e eleva o padrão de vida dos pobres
rsz_escrita
No papel: o futuro da escrita à mão na educação
bolivia
Bolívia e o golpismo como espetáculo
rsz_1jodi_dean
Jodi Dean: “a Palestina é o cerne da luta contra o imperialismo em todo o mundo”
forcas armadas
As Forças Armadas contra o Brasil negro [parte 1]
PT
O esforço de Lula é inútil: o sonho das classes dominantes é destruir o PT
ratzel_geopolitica
Ratzel e o embrião da geopolítica: os anos iniciais
almir guineto
78 anos de Almir Guineto, rei e herói do pagode popular