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A imprensa transformará o pária retornado num herói?

A imprensa deve resistir à tentação de mais uma vez tornar quem é polêmico, mas irrelevante, em líder perigoso. Bolsonaro não é líder da oposição; é um pária.
(Brasília – DF, 25703/2020) O então Presidente da República Jair Bolsonaro, durante coletiva de imprensa ao lado do Presidente do Banco Central Roberto Campos Neto, do Presidente da Caixa Pedro Guimarães e do Presidente do BNDES Gustavo Montezano. (Foto: Marcos Corrêa/PR)

Após ter abandonado o País, com o fim do último ciclo eleitoral, para passar uma temporada como refugiado na Flórida, nos Estados Unidos, Jair Bolsonaro voltou ao Brasil. Voltou sem arrastar as massas que pretendia e que, em boa medida, o seguiam fielmente alguns meses antes. Não voltou como mito, mas tampouco como o pária que é.

É provável que, julgado nos tribunais, Bolsonaro no mínimo se torne inelegível. A possibilidade de prisão tampouco está afastada, já que fatos que a motivem abundam. Seja como for, ocorra o que ocorrer, o futuro político do ex-presidente e do movimento organizado em torno dele em boa medida dependerá de como a imprensa o tratará a partir de agora.

É verdade que por longo tempo houve uma intencional condescendência da grande imprensa com Bolsonaro, em especial nas eleições de 2018 – lembremos das “decisões muito difíceis” do Estadão. Também é verdade que programas humorísticos ofereceram palcos à odiosa figura durante anos, quando ela ainda habitava o baixo clero do Congresso. E, claro, não esqueçamos do recente editorial da Folha de S. Paulo, que dizia na sua versão online, sobre a volta de Bolsonaro, que “opondo-se ao petismo, o bolsonarismo pode dar vigor à política brasileira – desde que abandone a violência, a atitude antidemocrática e a polarização irracional.” Supostamente, a publicação deste editorial teria ocorrido por uma falha; o texto correto, tal qual na versão impressa, deveria dizer que “o bolsonarismo até poderia, se abandonasse a violência e o autoritarismo, liderar uma oposição saudável ao PT. Esse não é infelizmente o desfecho mais provável.” Evidentemente, a mudança de forma nos editoriais só distingue o grau de esperança dos editorialistas na utilidade do ex-presidente – não anula o fato de que haja tal esperança. No primeiro, o bolsonarismo pode fazer uma grande obra, desde que, seguindo as orientações do jornal, abandone aquilo que lhe caracteriza. No segundo, o bolsonarismo até poderia contribuir para algo, mas suas características tornam isso improvável. O que impossibilita que a Folha se refugie na desculpa de que estampou a primeira versão do editorial por um erro não é que os dois textos digam exatamente a mesma coisa, mas sim o fato de que partam de uma mesma lógica: para os editorialistas, o “autoritarismo” e a “violência”, ou a “polarização irracional” e a “atitude antidemocrática”, são meros apetrechos do bolsonarismo, um estilo que bem poderia desaparecer sem que o seu conteúdo se esvaísse. Note-se que este jornal não é assim tão permissivo com outros políticos latino-americanos, sempre essencialmente “ditatoriais” – como o venezuelano Maduro ou o nicaraguense Ortega –, nem o jornal é assim tão compreensivo, no Brasil, com ocupações de camponeses sem terra, de trabalhadores sem teto ou com atos de manifestantes sem peias. Não poderiam eles também “dar mais vigor” à política brasileira e significarem uma oposição à esquerda ao governo Lula?

De qualquer forma, não é este tipo de apoio objetivo da imprensa ao bolsonarismo, por anuência ou ação ativa, que pretendo discutir aqui. Nem são os editoriais o fator mais importante da relação entre mídia e o ex-presidente. A pergunta é a seguinte: supondo que os jornalões não desejem mais uma vez ajudar a alçar Bolsonaro à posição de líder, agora na oposição, eles podem fazê-lo seguindo sua lógica noticiosa habitual?

Em um artigo anterior, descrevia como o ambiente da comunicação, em especial a partir dos anos 90, foi tomado por “uma espécie de positivismo da razoabilidade, defensor de uma razão única – a liberal –, da técnica, da neutralidade e dos bons modos” que “deu forma a uma nova subjetividade política e uma nova forma na comunicação” na qual “líderes, os políticos poderiam ser longe das câmeras. Na frente delas, deveriam ser comportados aspirantes a burocratas.”

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Este “pacto da razoabilidade” se manifestou nas eleições de 2018, quando se dizia por exemplo que Bolsonaro inevitavelmente “seria controlado” caso fosse eleito; e também na de 2022, com jornalistas, âncoras e entrevistadores insistindo em manter intacto tal pacto, no máximo pressionando o então presidente a compô-lo – e portanto lhe revestindo deste verniz “razoável” ao mesmo tempo que o ofereciam um palco para fazer suas estripulias midiáticas de costume. A insistência por parte da imprensa em tornar a política razoável, mesmo quando não é assim que ela se apresenta, combinada com a sua obsessão pela neutralidade, a torna refém do político que faz do absurdo sua estratégia discursiva. Algo que ficou perfeitamente demonstrado durante a pandemia.

Em 2000, ocorreu nos Estados Unidos a chamada “Revolta dos Brooks Brothers”: a invasão, por uma massa de funcionários e apoiadores do Partido Republicano, ao local onde os votos das eleições de 2000 do condado de Miame-Dade, na Flórida, eram recontados. Insistindo que a eleição estava sendo roubada, os republicanos invadiram o escritório violentamente e tumultuaram a recontagem, que teve que ser parada, assegurando assim que George W. Bush, que estava à frente de Al Gore por uma pequena margem de votos, se consagrasse vencedor.

Roger Stone é o nome do estrategista responsável por esta ação. Não é acaso que ela tenha traços similares à invasão do Capitólio dos EUA, em 6 de janeiro de 2021, ou aos atos golpistas no Brasil em 8 de janeiro deste ano. Roger Stone é um consultor político norte-americano que começou sua carreira trabalhando na campanha de Nixon, em 1968. Esteve envolvido no escândalo Watergate, foi criador do que conhecemos hoje como “PACs” (Comitês de Ação Política) nos EUA e é o principal “criador” do candidato Trump. Pouco mencionado se comparado a Steve Bannon, Stone trabalhou como lobista para Trump nos anos 1990 e, nestas mesmas tumultuadas eleições de 2000,  foi o principal articulador da campanha de Trump pelo Partido Reformista – um estratagema para rachar o Partido Reformista em benefício dos republicanos.

Stone, que deu o tom à vitoriosa campanha de Trump em 2016, se orienta por uma filosofia que constitui uma união estranha de niilismo, maquiavelismo e elementos de arte performática. Em 2018, ele publicou o livro “Stone’s Rules: How to Win at Politics, Business  and Style” (Regras do Stone: Como vencer na política, negócios e estilo, em tradução livre), no qual descreve alguns de seus princípios. Uma das primeiras “regras”, a quarta, é “o passado está fodendo o prólogo”, isto é, o desconhecimento sobre o passado permite que ele se repita – ou, melhor, que Stone faça ele se repetir, desorientado jornalistas e consultores que “não têm senso da História ou de precedentes”. Outras regras: “em política, a única coisa pior do que estar errado é ser chato”; “ataque, ataque, ataque – nunca defenda”; “não deixe nenhum ataque passar sem resposta”; “a técnica da grande mentira” (“a tática de criar uma mentira tão grande, monstruosa e impressionante que ela toma vida própria está bem viva na política americana e na imprensa. Faça ela grande, a mantenha simples, repita-a suficientes vezes, e as pessoas acreditarão”, diz ele); “o ódio é um motivador mais forte que o amor”; “use a internet para fazer com milhares de dólares o que antes requeria milhões”; “não admita nada; negue tudo; faça um contra-ataque”; e finalmente “muito de algo bom é bom” (“A vitória eleitoral de Trump demonstra, entre muitas outras coisas, que a mídia se tornou tão diversificada que a ideia de ‘muita exposição’ não existe mais. Em qualquer eleição, especialmente as nacionais, o reconhecimento do nome do candidato é um objetivo básico e por vezes caro”, escreve).

Como se vê, Stone não explica só Trump como também, em boa medida, Bolsonaro. Talvez sua “regra” mais importante seja a seguinte: “a imprensa não é o inimigo”. Stone não dá muitos detalhes sobre sua lição, mas sugere: “Seja direto e útil aos repórteres e a maioria – certamente não todos – serão diretos com você, e talvez até honestos. Aqueles que não são diretos nem honestos devem receber desinformação ou nada; qualquer coisa que os faça parecer tolos”. A imprensa não é o inimigo; é o campo de batalha.

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De volta a Bolsonaro: não será impressionante se o ex-presidente retomar a sua forma costumeira de atuação com a mídia. Pressionado pela possibilidade de se tornar inelegível ou mesmo de ser preso, e também pressionado pela perspectiva de tornar-se irrelevante no campo que abriu para si em meio a tantos outros ávidos por tomar-lhe a posição de liderança da extrema-direita, é bastante provável que Bolsonaro retorne aos ensinamentos de Stone – que deram a linha a Trump mais que os de Bannon –, fazendo declarações grandiloquentes, organizando ações espetaculares, oferecendo à imprensa fatos grandiosos demais para serem ignorados e ao público mentiras demasiado atraentes para não serem levadas em conta.

Nos tempos anteriores ao jornalismo digital, em que os jornalistas confrontavam-se com a limitação do espaço, os meios cumpriam o papel de gatekeepers (porteiros); isto é, eram responsáveis por classificar o que devia ou não estar nos jornais, dando diferentes graus de importância às notícias do dia: umas entram, outras não. Com os meios eletrônicos, o aumento do espaço disponível aos jornalistas teve o efeito de diminuir a importância deste papel de gatekeeper, de seletor de notícias: podem noticiar virtualmente tudo o que ocorre num determinado dia. O critério de noticiabilidade foi afetado, e os políticos o perceberam: basta que algum deles tome para si o papel de dizer ou fazer barbaridades para figurar nas notícias mais lidas do dia – e muitas vezes até na primeira página dos jornais impressos.

A imprensa, se não quiser tornar o pária retornado ao Brasil um herói, deve compreender que a política não está mais – se é que já esteve – na esfera da “razoabilidade”. Que há políticos ávidos por parecerem não aspirantes a burocratas ou genros ideais, mas glutões desbocados; e que esse tipo não pode atuar senão dessa forma, sendo inútil, portanto, qualquer apelo por um bolsonarismo “razoável”, despido de suas características mais evidentes.

É verdade que Bolsonaro não é um anônimo, que é um ex-presidente, e que é atualmente presidente de honra de seu partido, o Partido Liberal (PL). Mas Fernando Henrique, Lula, Dilma, Temer; todos foram ex-presidentes. O futuro típico dos ex-presidentes sem cargos na imprensa é o do esquecimento; habitam somente os “bastidores” da política, não as primeiras páginas de jornais. Bolsonaro, embora exótico, deve ter o mesmo tratamento.

A imprensa deve resistir à tentação de mais uma vez tornar quem é polêmico, mas irrelevante, em líder perigoso. Bolsonaro objetivamente é desimportante para a cena política brasileira hoje; não tem cargo, não tem tribuna, não tem recursos e, se é verdade que ainda tem bases, também é verdade que não consegue mobilizá-las como antes. É um pária, um presidente que se refugiou: sua relevância não é a de líder da oposição, é de investigado.

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