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Momento Bukele: a esquerda e o problema da segurança

Em El Salvador, Nayib Bukele move guerra contra gangues e ganha projeção internacional. Discurso de “punho de ferro” contra o crime deve ser chave nas próximas eleições, e deveria preocupar esquerdas.
Em El Salvador, Nayib Bukele move guerra contra gangues e ganha projeção internacional. Discurso de “punho de ferro” contra o crime deve ser chave nas próximas eleições, e deveria preocupar esquerdas. Por Jaime Bordel Gil | El Salto – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, durante cerimônia de posse. (Foto: Gobierno de El Salvador)

Há algumas semanas, a comoção estourou entre os setores progressistas no Chile. O último relatório do instituto de pesquisas Cadem mostrava que o presidente estrangeiro mais bem avaliado pelos chilenos era o salvadorenho Nayib Bukele, muito à frente de Volodymyr Zelenski e Joe Biden. Quase 70% dos chilenos dão a Bukele as notas máximas, enquanto só 18% avaliam negativamente o chamado presidente “millennial”. O mesmo fenômeno está ocorrendo em outros países, como a Colômbia, onde a revista Semana, muito crítica ao presidente Petro, dedicou uma extensa reportagem algumas semanas atrás ao combate contra as gangues “maras” em El Salvador com o título “O milagre Bukele”. O presidente salvadorenho está recebendo elogios na América Latina em um momento em que a segurança se torna um tema central em muitos países.

Avaliação de presidentes estrangeiros pela população chilena. (Fonte: Cadem)

As duas grandes medidas de Nayib Bukele em seu primeiro mandato foram estabelecer o Bitcoin como moeda corrente e levar adiante uma política de punho de ferro contra as gangues. A primeira, apesar de ter conquistado ao presidente alguma popularidade entre os fanáticos das criptomoedas, não teve o êxito esperado, mas a segunda alcançou os objetivos buscados com sua implementação.

No dia 27 de março de 2022, o governo de Bukele declarou um estado de exceção após o país sofrer vários dias de violência extrema, com 87 mortes pelas mãos das gangues. Desde então, começou uma guerra sem quartel contra as organizações criminosas, e um ano depois o país centro-americano conta com uma taxa de dois homicídios a cada 100 mil habitantes, frente a uma taxa de 103 homicídios em 2015 ou a uma taxa de 17,6 homicídios de 2021, segundo fontes do governo.

Estas impressionantes cifras não foram gratuitas, e o saldo da guerra contra as gangues em apenas um ano é de mais de 60 mil detidos, centenas de desaparecidos nas prisões, e milhares de denúncias por prisões arbitrárias. O jornal El Faro teve acesso a documentos do Ministério Público salvadorenho que mostravam pelo menos 690 casos de pessoas encarceradas sem provas nem acesso a julgamento ou a advogado, e um extenso relatório das ONGs Human Rights Watch e Cristosal trouxe à tona inúmeros casos de tortura, detenção arbitrária, desaparecimentos forçados de curta duração e outros maus-tratos.

Em El Salvador, para lutar contra a insegurança e o crime organizado, se renunciou à democracia e ao estado de direito. Desde que, há pouco mais de um ano, se declarou o estado de exceção no país, a Assembleia Legislativa, na qual o partido de Bukele, Nuevas Ideas, conta com ampla maioria, prorrogou oito vezes este estado que concede poderes extraordinários ao presidente e restringe direitos fundamentais. Este órgão também aniquilou a separação de Poderes, destituindo os magistrados da Sala Constitucional do Tribunal Supremo e o Procurador-Geral, para colocar aliados do governo em seu lugar.

A consequência mais notória destas medidas é que, graças a uma sentença do Supremo Tribunal, Bukele poderá se apresentar à reeleição, embora isso não seja permitido pela Constituição salvadorenha. Mas também há outras consequências não menos importantes. Na situação atual, Bukele controle de facto o processo judicial através da Sala Constitucional, já que através dela pode transferir juízes e fiscais a novos postos, o que se converteu em um mecanismo de coerção e castigo para os juízes. Desde então, têm se tornado comuns casos como o do juiz Godofredo Salazar, que foi transferido em abril de 2022 após ser acusado publicamente por Bukele de cumplicidade com as gangues, por ter absolvido 42 pessoas contra as quais não havia provas suficientes.

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A situação não é melhor em matéria de direitos humanos, e desde a declaração de estado de exceção as liberdades de reunião e associação foram fortemente restringidas, e já não existe a obrigação de pôr os detidos à disposição de um juiz num prazo de até 72 horas. A isto se somam as péssimas condições nas prisões, as detenções em massas, e medidas como a redução da maioridade penal para os 12 anos. Um panorama francamente hostil e autoritário, no qual, como definiu o antropólogo Juan Martínez d’Aubuisson em um artigo do Washington Post, a máfia das gangues foi substituída pela máfia do Estado.

O dilema Bukele

Frente a uma situação tão desoladora, se poderia esperar que o presidente Bukele despertasse a mesma hostilidade que outros mandatários de regimes autoritários, mas o fato é que sua figura está tendo um grande êxito dentro e fora de suas fronteiras. Com uma espetacularização da repressão e uma frenética atividade nas redes sociais, o líder salvadorenho tem conseguido passar sua mensagem repressiva como uma de ordem, apresentando seu modelo como o único viável para lidar com o crime organizado. Olhando para o interior, muitos salvadorenhos afirmam ter recuperado a liberdade que as gangues lhes haviam tirado, enquanto, no exterior, políticos populistas e de extrema-direita se confessam admiradores do modelo Bukele e prometem replicá-lo em seus países.

Bukele apresenta um falso dilema para sua sociedade e para a comunidade internacional: ou democracia e direitos humanos, ou paz e liberdade. Este é o discurso que o presidente salvadorenho usa para justificar as políticas aplicadas durante os últimos meses, às quais se soma um toque populista para fazer frente às críticas internacionais, sob o qual El Salvador é apresentado como um pequeno país que só quer ser soberano e aplicar as políticas que considera adequadas, sem que as nações poderosas o incomodem. Bukele estabelece assim uma dicotomia na qual ou se está com o governo ou com os criminosos, e descarta os críticos acusando-os de serem mais conscientes dos Direitos Humanos dos criminosos do que dos das pessoas comuns. Uma estratégia que o fez ganhar numerosos adeptos tanto a nível nacional como internacional.

E uma das coisas que mais surpreende em Nayib Bukele é precisamente sua enorme projeção internacional, o que deveria preocupar muito a esquerda. Em um momento político no qual a segurança se encontra entre as principais preocupações dos cidadãos de muitos países, discursos como o de Bukele podem encontrar o contexto perfeito para calar a população. Candidatos como Javier Milei na Argentina, ou José Antonio Kast e Franco Parisi no Chile, já demonstraram de maneiras mais ou menos explícitas sua sintonia com Bukele, e em vários países do continente as próximas eleições podem se dar sob o seguinte esquema: ordem e punho de ferro contra o caos.

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Esse contexto em alguns casos tem sido favorável à esquerda, mas se chegar em um momento em que as preocupações com a segurança aumentem, as coisas podem ficar mais complicadas. Por mais rechaço que possa ter de alguns setores, o modelo Bukele se mostrou exitoso no que se refere a erradicar o crime organizado, reduzindo notavelmente o poder e a influência das gangues. E embora existam argumentos de sobra para combatê-lo, se não há nenhum modelo para enfrentar os problemas da segurança, muita gente pode se ver inclinada a votar por opções que, embora não respeitem os direitos humanos, ataquem duramente os problemas que os impedem de viver tranquilos no dia-a-dia.

Para sobreviver a esse dilema entre o respeito irrestrito aos direitos humanos e a segurança dos cidadãos, a esquerda precisa de uma fórmula para enfrentar a segurança a curto prazo que dê solução aos problemas da criminalidade e da delinquência nos bairros sem cair na vertente punitivista. O problema é que, até o momento, as soluções que foram dadas são demasiadamente parecidas com as oferecidas por governos de direita ou centro-direita, como é o caso das declarações de estado de exceção dos governos de Gabriel Boric, no Chile, e de Xiomara Castro, em Honduras. Com estas soluções não só não foi possível chegar à raiz dos problemas, como também em alguns casos – como o chileno – elas conseguiram reforçar os setores mais duros da direita. É neste sentido que se manifestava o presidente do Partido Republicano de José Antonio Kast no Chile, Arturo Sequella, que disse em uma entrevista que ouvir o presidente e o Partido Comunista falarem sobre segurança nos mesmos termos de seu partido mostra que eles estão no caminho certo e alcançando seus objetivos.

O grande desafio para governos progressistas como o de Gabriel Boric, Gustavo Petro ou Lula da Silva é encontrar soluções para esses problemas que comecem a produzir resultados no curto prazo sem falar a mesma língua da direita. 

Se nada for feito a respeito e as respostas forem dadas apenas na chave punitivista, é muito provável que uma parte das pessoas afetadas por esses problemas de segurança acabe votando em opções políticas que prometem pôr fim ao problema arrasando com a democracia e os Direitos Humanos. O próximo ciclo político será fundamental, já que em muitos países será possível decidir se avançamos com medidas como o livre porte de armas, ou aplicamos incursões e prisões em massa nos bairros.

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O deputado Gaspar Rivas, do Partido de la Gente, no Chile, afirmou há algumas semanas que “é preciso terminar com o show dos direitos humanos para os delinquentes” e que “os direitos humanos são para humanos direitos”. Uma afirmação perigosa, que pode conduzir a uma espiral antidemocrática. Parafraseando mais uma vez Martínez d’Aubuisson, nas próximas eleições muitos países correm o risco de escolher parar de sofrer nas mãos da máfia das organizações criminosas para sofrer nas mãos da máfia do Estado. E um futuro sem contrapesos democráticos e no qual os Direitos Humanos só sejam respeitados para aqueles considerados “humanos direitos” pode ser um remédio bastante pior que a doença.

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