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​​Sudão, as guerras não tão distantes e a urgência de um novo pacifismo

Um mês se passou desde o início da guerra, e os sudaneses estão se perguntando quando ela terminará.
Um mês se passou desde o início da guerra, e os sudaneses estão se perguntando quando ela terminará. Por Sarah Babiker | El Salto – Tradução de Pedro Marin
Membros do Exército Sudanês no vilarejo de Jawa, no Sul de Darfur, em março de 2011. (Foto: Albert Gonzalez Farran / UNAMID)

Um dia você tem sua casa, seu trabalho, suas rotinas diárias, suas tarefas pendentes. Então, de repente, as bombas começam a cair e você não tem mais nada. Ou talvez sua vida já fosse muito precária, você estava vivendo na corda bamba, sobrevivendo. E então as bombas começam a cair e você percebe que tinha algo: a segurança de andar na rua sem medo. Porque a guerra traz muitas coisas, é claro que traz morte, destruição, paralisia do normal, colapso. Mas, acima de tudo, o que a guerra traz é o medo. Um medo difuso e onipresente, porque em nenhum lugar você está seguro. Já faz um mês que o medo tomou conta do Sudão.

Há pouco mais de um ano, muitas pessoas puderam imaginar como seria um dia, qualquer dia, ter de parar de ir à escola, ir ao escritório, ir ver seus pais, porque uma guerra havia estourado. Pudemos ter uma ideia de como era sentir as bombas caindo arbitrariamente sobre a cidade, ver os prédios, antes cheios de vida, feridos pela artilharia pesada, ouvir as histórias de pessoas que enfrentavam um medo sem precedentes, presas em suas casas. Crianças, avós, jovens universitários, olhavámos para nossas telas e elas tornavam tudo real.

Tudo isso estava acontecendo na Europa, com pessoas brancas com um passe privilegiado para a empatia. Poderia ter sido você, mas também poderia ter sido você a mãe que se trancou em casa com seus filhos em 2011 em Damasco, poderia ter sido você, o estudante aniquilado em Bagdá em 2003. Entretanto, foi somente na Ucrânia que a narrativa do “poderia ser você” brilhou na televisão e foi tão poderosa que não faltaram pessoas que diziam: “Eles são como nós, temos que salvá-los”. Havia muito mais pessoas que não diziam isso, que nem sequer pensavam nisso, mas, nesse meio tempo, esse “são como nós” havia se estabelecido em sua empatia e definido o ritmo de suas emoções e ações. A guerra no Sudão acontece muito mais longe, lá onde você não pode imaginar as vidas interrompidas e a televisão não as mostra para você, lá onde as pessoas morrem em abstrato, como se fosse um costume ancestral adquirido por todo um continente.

As bombas não são ouvidas de longe, elas não interrompem sua vida cotidiana até que seja você quem as tenha sobre si. Não se trata de um discurso de culpabilização, é um fato. Isso aconteceu na Ucrânia, onde a guerra de fato começou em 2014 no Donbass. Isso aconteceu durante a maior parte da história do Sudão independente, quando as pessoas estavam morrendo no sul, agora independente, ou em Darfur. Em Cartum ou Kiev, a centenas, milhares de quilômetros de distância, a vida continuava, mesmo que aos trancos e barrancos, com suas manifestações e revoltas, com suas lutas políticas e repressão, com a precariedade das economias e dos futuros; não era fácil, mas as bombas não caíam. Em ambas as cidades havia pessoas deslocadas das guerras na periferia, pessoas que já haviam chegado lá como vítimas, como um problema a ser administrado. Mas a guerra é um câncer que fica fora de controle, uma infecção que se espalha, talvez não imediatamente, pode levar anos ou décadas, mas um dia as bombas começam a ser ouvidas mais perto, sua casa não é mais um lugar seguro, as ruas estão cheias de pessoas armadas que podem matá-lo, os cafés estão vazios, os hospitais estão em colapso, a guerra já está lá e você não está preparado.

E então, por mais corajoso que você seja, por mais ideias que tenha, por mais inteligente ou astuto que consiga ser, nada pode ser feito contra as armas, você só pode fugir. Se a humanidade avançou em alguma coisa, foi em sua capacidade de destruição, no repertório de dispositivos feitos para matar, na eficiência da tecnologia para esmagar vidas, rasgar músculos, perfurar a carne. Tudo o que resta é fugir e tentar chegar a um lugar seguro, enquanto seu destino e o de sua cidade são discutidos em fóruns distantes, entre rivais que não se importam com você, patrocinados por uma comunidade internacional para a qual você não tem muita relevância, a não ser no que tange à preservação dos interesses deles, de qualquer forma.

Enquanto eles discutem, você tenta fugir. Com milhões de pessoas deslocadas e refugiadas em todo o mundo, poder viver na cidade onde você nasceu tornou-se um privilégio. Você se arrisca em uma jornada rumo à incerteza porque a única certeza é que bombas, hospitais destruídos, homens disparando artilharia nas ruas causam mortes. Dessa certeza, você foge para uma incerteza que também pode matá-lo. Mas você precisa tentar. No caminho, você descobre que as fronteiras não são empáticas, não são comovidas pelo seu terror, não são suavizadas pelo seu desespero. Talvez seu passaporte tenha sido deixado em uma daquelas embaixadas estrangeiras que foram evacuadas assim que puderam, porque a primeira e quase única missão dos países era evacuar as vidas que importavam, as de seus cidadãos. E você, que passou a vida inteira se esquivando de guerras periféricas, encontra-se na mesma situação que muitos de seus compatriotas antes de você em Melilla ou na Líbia – o povo de seu país para quem a guerra veio primeiro – passando dias a fio na fronteira com o Egito, com o coração na mão. Os países aliados daqueles que te massacram não são exatamente amigos do povo massacrado, eles não te receberão de braços abertos.

E aqueles que estão combatendo não estão nem aí para você, alguns são o exército regular, o mesmo exército que dá golpes de Estado de vez em quando, que apoiou massacres em todas as periferias, que se comprometeu com a transição para o governo civil e traiu o povo assim que seus interesses foram ameaçados. Outros são mercenários novatos, sem laços sociais, sem lealdade com o povo que dizem defender. Eles se tornaram uma arma de guerra eficaz, um aniquilador lucrativo de revoltas, a serviço de quem paga mais, e se tornaram ingovernáveis. O que a longa história de protestos do Sudão, seu histórico partido comunista, sua tradição sindicalista e seu movimento de mulheres podem fazer? O que podem fazer suas associações profissionais que se organizaram para lutar pela democracia, sua extensa diáspora, o que podem fazer os comitês de resistência que coordenam a revolução e o apoio mútuo nos bairros? O que pode fazer um povo inteiro, por mais digno e corajoso que seja, diante de um conflito entre senhores da guerra?

Um mês se passou desde o início da guerra, e os sudaneses estão se perguntando quando ela terminará. Não existe guerra rápida, não existe guerra passageira, como sabem os sudaneses, cujo país viveu tantos anos de conflitos periféricos. Viver assim, longe de casa ou sobrevivendo em meio a bombas, é uma das formas possíveis de vida, é assim que gerações inteiras vivem. Os canhões que trovejavam longe começaram a disparar perto, a cidade que você conhecia se encheu de buracos, os noticiários estão cheios de mortes de pessoas conhecidas, pessoas anônimas, todos eram importantes para alguém e agora se foram, não puderam fazer nada para se salvar. A guerra é um domínio da impotência, uma escola de fatalismo e derrota para um povo que se reergueu tantas vezes.

Estamos jantando em um restaurante marroquino em Vallecas com parte da diáspora sudanesa, meu pai e um de seus melhores amigos. Eles assistem a vídeos de bombardeios o tempo todo em seus celulares, seus grupos de Whatsapp estão repletos de testemunhos da destruição, parentes que conseguiram sair, outros que ainda estão aterrorizados, sobrinhos e sobrinhas tentando se acostumar com seu novo status de refugiados em filas eternas em frente à ACNUR (Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados). A guerra no Sudão é uma guerra distante que está pessoalmente perto de casa. Não consegui terminar nenhum artigo sobre o Sudão.

Minhas filhas, netas de duas diásporas, ouvem sobre o significado da guerra enquanto brincam. E não posso deixar de pensar que, com suas revoluções derrotadas até a morte, seus refugiados e diásporas, seus homens fortes desvinculados de qualquer lealdade ao povo, dedicados de corpo e alma ao extrativismo, bem equipados com armas sofisticadas, artistas do dividir para reinar, o Sudão mostra uma dialética irresolúvel que engolirá cada vez mais o mundo por dentro. Teremos que pensar em revoluções que enfrentem esses desafios, pacifismos que alcancem guerras distantes, uma solidariedade internacional que transcenda o racismo.

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