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O Partido Fardado anistiado

Ou governo toma para si a tarefa de fazer o coro de “Sem anistia!” valer para militares, ou preparará o caminho para que pouco ou nada possamos gritar
Pedro Marin
O comandante do Exército, General Tomás Paiva, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e o durante cerimônia do Dia do Exército. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

“Sem anistia!”. A frase ecoou em manifestações, comemorações e até na posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em contraposição direta a uma longa tradição histórica do Brasil. Da Colônia à República, passando pelo Império, a anistia foi amplamente concedida no País, de  condenados à morte (para que tomassem parte no combate a invasores), a rebeldes derrotados ou a golpistas mal-fadados.

A lógica por trás da aplicação da medida, por óbvio, não era em geral humanitária, mas estratégica e política: derrotada uma insurreição ou superado um crime, foi muitas vezes vantajoso ao Estado desmobilizar as paixões e ódios dos aprisionados quanto a si, reintegrando-os à vida social, ao invés de preservá-los como inimigos. De fato, muitas vezes a dureza das punições gera precisamente o efeito contrário daquele pretendido – como Rousseau argumentou em relação às palmadas dadas nas crianças. Um exemplo são os episódios conhecidos como Questão Militar, no final do século 19, período em que as tentativas de controlar os militares por meio de censuras e repressão os fazem perceber, pela lealdade mútua, que podem se constituir em partido, o que ao fim deságua no golpe militar que daria origem à República em 1889.

Por outro lado, a concessão de anistia muitas vezes foi tomada pelos seus beneficiados mais como um fator a reforçar a certeza da impunidade. Uma parte dos militares golpistas que operacionalizaram o golpe de 1964, por exemplo, havia sido anistiada anteriormente, após se envolver, cinco anos antes, nas revoltas de Aragarças e Jacareacanga. Ao invés de se reintegrarem à disciplina e ao respeito à hierarquia que a vida militar deveria impor, esses militares continuaram a conspirar, até serem vitoriosos.

A anistia ampla, geral e irrestrita, sacramentada na saída da última da ditadura militar que vivemos, no entanto, teve um aspecto completamente novo: não eram os derrotados, os exilados, presos e perseguidos políticos, os objetos prioritários da anistia, mas sim os militares, os vencedores, que se auto-perdoavam pelos crimes que cometeram contra outros e contra o Brasil. Que os derrotados tenham sido anistiados foi só uma das condições, um dos elementos do pacto – ou, melhor, seu elemento fundamental –, para que os vencedores fardados, quando perceberam que não poderiam permanecer em sua posição a não ser à base de muito mais derramamento de sangue, garantissem que, ao abrir mão dos anéis, não abririam também dos dedos; que ao abrirem mão do governo, não abriam mão de sua posição no Estado. Por razões políticas – por terem o aparelho estatal na mão e por contarem com o temor (não sem razão) de seus adversários – os militares garantiram que não pagariam por seus crimes quando já não estivessem no governo.

É certamente positivo que essa anistia, quarenta anos à frente, imediatamente após a derrota nas urnas do governo mais militarizado da história do País, seja alvo da rejeição popular. Mas sete meses após a posse de Lula e a tentativa de golpe do 8 de janeiro, convém recordar algumas perguntas que, já então, quando a multidão gritava “Sem anistia!”, faziam-se fundamentais: quem é o objeto do coro? Quem não deve ser anistiado é só Bolsonaro, ou isso inclui também os militares? E, já que não queremos anistia, que tipo de punição queremos, e que tipo de punição podemos alcançar?

Nestes temas, o governo Lula vem cambaleando numa corda bamba. Investiga e pune os civis que tomaram parte no 8 de janeiro; aprofunda as investigações contra Bolsonaro; chega até mesmo a avançar contra alguns militares individuais (a prisão de Mauro Cid, a demissão do Comandante do Exército Júlio César de Arruda, etc), mas cala-se quanto ao problema militar mais grave, e que gerou todos estes anteriores: o fato de que as Forças Armadas, em seu conjunto, se entendem como um Poder em disputa com os outros Poderes – um partido –, senão como um Poder sobre os Poderes e a Pátria – um meta-Estado.

Após a derrota do 8 de janeiro, os militares deram um passo atrás, e por isso aceitam que fardados individuais, como Cid, sejam punidos, contanto que sua posição no Estado persista inalterada, e que uma punição às Forças Armadas em conjunto (e particularmente ao Exército, a mais importante e mais ativamente golpista dentre elas) não se efetive. Ao fim, a tática lembra a fórmula da anistia dos 80: abrir mão do governo para não abrir mão do Estado.

Senão, vejamos: Júlio César de Arruda foi demitido do Comando do Exército, com Tomás Paiva, que pinta-se de legalista, tomando seu lugar. Deu-se o assunto por encerrado, embora o próprio Tomás Paiva (que é amigo pessoal de Villas-Bôas, foi seu braço direito, e participou do episódio do tuíte contra a concessão de habeas-corpus a Lula), em reunião fechada com seus camaradas, tenha deixado transparente o oportunismo de seu “legalismo”: considerando a eleição de Lula “indesejada”, disse que é necessário “segurar” para que uma reforma nas Forças Armadas “não ocorra”. Reconheceu que o cenário era “mais difícil”, mas assegurou que “vamos segurar”; e que “obstar qualquer tipo de tentativa de querer nos jogar para o enquadramento […] depende da força política do comandante”. Traduzindo: Tomás Paiva, o atual comandante do Exército, considera que sua relação com o (indesejado) presidente Lula deve ter por objetivo impedir qualquer mudança que este queira fazer sobre as Forças Armadas.

O tenente-coronel Mauro Cid, aparentemente envolvido em todo tipo de quixotada na qual seu antigo chefe, Bolsonaro, tenha se interessado, está preso. A Polícia Federal revelou como ele e seus íntimos pareciam dispostos a defender a tese do Exército como um Poder Moderador para dar sustentação a uma tentativa golpista. Mas tem passado batido o fato de que os comandantes das Três Forças tenham proclamado em nota pública a mesmíssima coisa para defender os acampamentos golpistas, ainda em novembro de 2022, enquanto dissimuladamente ameaçavam os outros Poderes. Como escrevi antes, “ali não falavam os três comandantes como indivíduos – o da Marinha, do Exército e da Aeronáutica –; mas sim a própria Marinha, o próprio Exército, e a própria Aeronáutica, como instituições armadas. Que tenha sido nota emitida pelas três Forças confere à nota um segundo aspecto: que, além das três Forças individualmente, quem falavam eram os militares como comunidade.” Se as teses golpistas no celular de Cid forem suficientes para incriminá-lo, não deveriam também as Forças Armadas em conjunto sofrerem punições por proclamarem publicamente as mesmas posições?

Por fim, desde antes de sua posse, Lula estava decidido por colocar um civil à frente do Ministério da Defesa. Mas deu posse a José Múcio, um civil que, de tão corporativista em relação às Forças Armadas, bem merecia algumas estrelas adornando a ombreira de seu paletó. É revelador do jogo de morde-e-assopra que o governo leva adiante em relação ao tema militar o fato de que, nas disputas com o Centrão, tenha proclamado que ministérios como a Saúde, o Desenvolvimento Social, a Casa Civil e a Secom conformem o “coração do governo”, não estando essas pastas, portanto, à disposição das negociações: a Defesa não conforma o “coração do governo”? Se não este órgão, que parte do corpo governamental ela é? Tomando-se como medida as falas públicas do ministro Múcio, constata-se que é parte que serve para expelir dejetos com uma certa violência. Em tempo: é revelador também do papel das Forças Armadas que o Centrão, afinal, não tenha tentado nunca se apoderar da Defesa.

De nada adianta propor aumentar penas para atos democráticos à luz dos atos do 8 de janeiro, como o faz o ministro Flávio Dino, enquanto o governo busca compor com e apaziguar os ânimos daqueles que foram os maiores responsáveis pelas quebras democráticas na história do País, os clássicos perpetradores do golpismo (aí incluída a intentona o 8 de janeiro).

Até o momento, o Partido Fardado passa anistiado por todo rastro de destruição que deixou pelo País nos últimos sete anos. É verdade que, do ponto de vista penal, o máximo que se poderia fazer é punir militares individualmente por seus desvios. Ocorre que é precisamente este o argumento que agora as Forças Armadas usam para se escudar: qualquer problema que tenha coturnos envolvidos é no máximo um desvio de  conduta individual do militar em questão. O julgamento ao qual as Forças Armadas devem ser submetidas não é criminal; é, antes de tudo, político. “Antes de tudo”, inclusive, para que possam chegar à área criminal: se concordamos que foi a posição política dos militares na década de 80 que lhe garantiram a impunidade, devemos reconhecer também o inverso; que hoje sua punição depende, antes, de fatores políticos.

Toda medida que busque conter a militarização da política, como as alterações no Artigo 142 da Constituição defendidas pelos deputados Alencar Santana e Carlos Zarattini (PT-SP) ou as alterações nos artigos 15 e 16 da Lei Complementar que o regulamenta (Lei Complementar Nº 97), são boas. Mas convém lembrar que se os militares usam de sua posição armada para jogar-se ao campo da política, são precisamente nos campos militar e político que devem ser neutralizados e derrotados. Mais vale o ódio popular pela farda ou a quebra do monopólio da força pelas Forças Armadas que qualquer troca de comando ou elaboração jurídica – as últimas podem ser realizadas sem pisar nos calos militares; as primeiras não. A letra da lei, afinal, costuma valer pouco contra os fuzis, e espertezas e atalhos jurídicos não costumam fincar pedras firmes no caminho dos tanques.

Ou o governo toma para si a tarefa de fazer o coro de “Sem anistia!” englobar também os militares, ou só estaremos preparando o caminho para que, num futuro mais ou menos distante, pouco ou nada possamos gritar.

Revista Opera A Revista Opera é um veículo popular, contra-hegemônico e independente fundado em abril de 2012.

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