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Nunca se tratou de ‘livre comércio’ – podemos parar com essa farsa estúpida?

Acordos de 'livre comércio', como o TPP, costumam ter mais a ver com distribuir riqueza entre os ricos do que com eliminar ou reduzir barreiras comerciais

Dean Baker
A estátua “Fearless Girl”, de Kristen Visbal, enfrenta o touro de Wall Street. (Foto: Anthony Quintano / Flickr)

Nas últimas quatro décadas, as administrações de ambos os partidos políticos norte-americanos promoveram acordos comerciais destinados a redistribuir a renda entre os mais ricos. Esses acordos foram rotineiramente chamados de acordos de “livre comércio”, dando a entender que se destinavam a eliminar barreiras ao comércio.

Isso claramente não corresponde à verdade. Os acordos comerciais de fato eliminaram as barreiras ao comércio de produtos manufaturados, pressionando para baixo os salários dos trabalhadores do setor manufatureiro e dos trabalhadores sem formação universitária em geral. Entretanto, pouco ou nada fizeram para eliminar as barreiras nos serviços profissionais altamente remunerados, como os prestados por médicos e dentistas. E aumentaram algumas barreiras, principalmente em relação aos monopólios de patentes e direitos autorais concedidos pelo governo.

Essa combinação de reduções e aumentos de barreiras teve o efeito inequívoco de transferir a renda dos trabalhadores comuns para os trabalhadores altamente qualificados. Proteções mais rígidas de patentes e direitos autorais enriquecem pessoas como Bill Gates e trabalhadores do setor de biotecnologia; elas não colocam dinheiro no bolso de funcionários do setor de comércio varejista, motoristas de caminhão e zeladores. Na verdade, as patentes e os direitos autorais tiram dinheiro de seus bolsos, pois os fazem pagar mais por medicamentos, equipamentos médicos, software e milhares de outros itens, reduzindo assim seus salários reais.

É compreensível que os proponentes desses acordos comerciais gostem de chamá-los de “livre comércio”. Afinal de contas, isso soa muito melhor do que “acordos de manipulação de mercado”. Por alguma razão bizarra, os oponentes desses acordos comerciais também costumam chamá-los de acordos de “livre comércio”.

Aparentemente, eles acham que, politicamente, é melhor atacar o “livre comércio” do que os acordos comerciais que redistribuem a renda entre as classes mais altas. Isso me parece quase uma loucura, mas sou um economista, não um estrategista político.

De qualquer forma, com esse pano de fundo em mente, fiquei muito feliz em ver um recente artigo do New York Times sobre os possíveis riscos para a economia dos EUA decorrentes de um crescimento mais lento na China. Perto do final, o artigo discute as implicações geopolíticas de uma economia chinesa enfraquecida:

“Além de quaisquer repercussões financeiras e econômicas diretas, vale a pena considerar se uma China em declínio altera significativamente a dinâmica geopolítica e os interesses americanos.

Há muito tempo, Washington teme que um bloco comercial dominado pela China possa limitar o acesso das empresas norte-americanas aos mercados, estabelecendo regras que, por exemplo, contenham proteções fracas para a propriedade intelectual. Um acordo comercial nesse sentido entrou em vigor no início de 2022, depois que os Estados Unidos abandonaram sua tentativa de formar a Parceria Transpacífica (TPP).”

Observem que o artigo diz muito explicitamente que um dos principais objetivos da Parceria Transpacífica (TPP) era a forte proteção à propriedade intelectual reivindicada pelas empresas dos EUA. É claro que isso é verdade. O acordo provavelmente teria sido finalizado pelo menos dois anos antes se os Estados Unidos não estivessem brigando por regras de exclusividade de uso de informações para o setor farmacêutico.

Incrivelmente, a TPP foi muitas vezes chamada de acordo de livre comércio, embora tivesse muito pouco a ver com a redução das barreiras comerciais tradicionais. Na verdade, os Estados Unidos já tinham acordos de “livre comércio” com seis dos outros onze países do pacto proposto e tinham tarifas baixas com a maioria dos outros. (O Vietnã foi a exceção).

De qualquer forma, é bom ver o New York Times falando honestamente sobre a TPP. Não se tratava de um acordo de livre comércio, mas de um acordo comercial estruturado para aumentar os lucros das empresas dos EUA.

(*) Dean Baker é co-fundador do Center for Economic and Policy Research. Ele é Ph.D em Economia pela Universidade de Michigan, e trabalhou anteriormente como economista-sênior do Economic Policy Institute e como consultor para o Banco Mundial, para o Comitê Econômico do Congresso dos EUA e para o Comitê Consultivo Sindical da OCDE (TUAC).

(*) Tradução de Pedro Marin.

CELAG Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica

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