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Palestina: como a imprensa também vira arma de guerra

Mídia faz enorme esforço caça-clique com histórias de estupros e degolas não comprovadas, mas falha em cobrir a violência informativa em Gaza
Pedro Marin
Soldado da unidade “Sky Riders”, das Forças de Defesa de Israel, durante exercício em julho de 2022. (Foto: Israel Defense Forces / Flickr)

O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu sugeriu, há alguns dias, que os palestinos vivendo em Gaza deixassem a região, que seria bombardeada. Na manhã de ontem, um porta-voz das Forças de Defesa de Israel (IDF) aconselhou que os palestinos saíssem pela fronteira com o Egito, dizendo que a fronteira do país com Rafah, único ponto de passagem possível de Gaza para o Sinai, estava aberta. Pouco tempo depois, as IDF emitiram um comunicado desfazendo as declarações de seu porta-voz, dizendo que “não houve um chamado oficial para que os palestinos se dirigissem ao Egito”. Depois, Israel bombardeou a região, o que, segundo o Ministério do Interior de Gaza, tornou a fuga de palestinos para o Egito impraticável, e segundo a ONG egípcia Sinai for Human Rights, “causou um novo fechamento do ponto de passagem”.

Seja por cálculo, seja por erro dos militares israelenses e de Netanyahu, as declarações contraditórias efetivamente levaram centenas de palestinos a buscar proteção se dirigindo a um lugar que não só não lhes garantia uma saída, mas que também foi bombardeado pelo mesmo Estado que os recomendou tal destino. Considerando que se trata de um governo que fala em uma “guerra contra animais”, não é demais perguntar: o Estado de Israel quis levar os civis palestinos para uma ratoeira?

Este é um dos muitos episódios sanguinolentos ocorridos ontem em Gaza. Mas ontem quem navegasse por alguns dos principais jornais do país teria uma impressão muito diferente da situação no enclave.

A capa de um grande portal era quase inteiramente dedicada aos brasileiros mortos no sábado na rave mórbida em território ocupado e à volta de brasileiros que estavam em Israel. Mais à noite, a capa da Folha dava destaque para as declarações de Biden e Netanyahu após ligação, e que mencionaram estupros contra mulheres israelenses durante a ofensiva do Hamas no sábado. Embora a própria notícia do jornal reconhecesse que os líderes “não deram nenhuma prova” desta dura acusação, a home do jornal era também sugestivamente adornada por um artigo de opinião de Mariliz Pereira Jorge: “O estupro como arma de guerra”. A linha-fina: “Vida de mulheres na Faixa de Gaza é recheada de violência.” O artigo, no entanto, não cita nenhum caso de estupro concreto – só menciona que uma refém alemã que participava da rave foi filmada no sábado sendo sequestrada seminua por combatentes do Hamas, em uma caminhonete. Hoje, o site norte-americano Forward, focado na comunidade judaica dos EUA, noticia que as Forças de Defesa de Israel declararam não ter nenhuma evidência de que estupros tenham ocorrido durante a ofensiva do Hamas no sábado.

Não custa lembrar que em 2011, durante a guerra da OTAN contra a Líbia, o Procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional, Luis Moreno-Ocampo, a embaixadora norte-americana na ONU, Susan Rice, e a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, promoveram a história de que as tropas de Kaddafi recebiam viagra para cometer estupros punitivos em massa contra opositoras do governo. Esta notícia, que fez manchetes e foi repetida em todo o mundo, foi desmentida por um relatório da Anistia Internacional: “uma investigação da Anistia Internacional não conseguiu encontrar provas dessas violações de direitos humanos e, em muitos casos, desacreditou-as ou lançou dúvidas sobre elas. Ela também encontrou indícios de que, em várias ocasiões, os rebeldes em Benghazi pareciam ter conscientemente feito alegações falsas ou fabricado provas”, escreveu em 2011 o jornalista britânico Patrick Cockburn.

Cito a seguir o próprio relatório da Anistia Internacional: “Não só não encontramos nenhuma vítima [de estupro], como também não encontramos nenhuma pessoa que tenha conhecido vítimas. Quanto às caixas de Viagra que supostamente teriam sido distribuídas por Kadafi, elas foram encontradas intactas perto de tanques que estavam completamente queimados.” Posteriormente, em 2016, com o vazamento de e-mails da então secretária de Estado, Hillary Clinton, pelo Wikileaks, soubemos que a história se originou de um relatório de inteligência do Departamento de Estado, de março de 2011, segundo o qual “fontes agora dizem – de novo, rumores (ou seja, a informação vem do lado rebelde e não foi confirmada de forma independente pela inteligência ocidental) que Kaddafi adotou uma política de estupros e até distribuiu viagra para suas tropas”. Que a história fosse classificada como um “rumor não confirmado de forma independente” não impediu que Susan Rice a contasse no Conselho de Segurança da ONU.

Poderia parecer só uma certa mania midiática, um interesse especial por unir as palavras “árabe” (ou “muçulmano”) e “estupro”. Mas é ainda mais grave: é uma campanha de opinião pública. Não é por acaso que, junto da obsessão narrativa sobre estupros, ontem – justamente ontem, o principal dia da contra-ofensiva! – tenha surgido também o relato de dezenas de bebês israelenses degolados durante a ofensiva do Hamas no sábado. A informação surgiu originalmente na emissora israelense i24News, mas pouco depois a agência de notícias turca Anadolu falou com a porta-voz das Forças de Defesa de Israel (IDF), que disse: “nós vimos a notícia, mas não temos quaisquer detalhes ou confirmações sobre isso”.

Sim; o estupro, lamentavelmente, foi e é usado como uma arma de guerra. Ele não só toma o corpo da mulher como um “território” a ser “conquistado” no conflito, como a pune especificamente por sua condição de mulher – isto é, não se trata sequer de um crime de guerra “comum”, no qual “qualquer um” poderia ser atingido: trata-se de uma violência específica, direcionada. E sim, bebês, lamentavelmente, foram e são feitos de alvos em conflitos, embora sejam incapazes de sequer compreender o contexto que os leva à morte prematura – quem dirá defender-se dela.

Mas as acusações de estupros e degolas em massa, sem provas, ainda que bem manchetadas, também fizeram e fazem parte dos arsenais militares. Bem faria não só aos jornalistas, não só aos civis palestinos e israelenses, mas ao público em geral, ao sagrado leitor do qual o jornalista deve ser um servente, que enquanto “provas não forem dadas” para sustentar manchetes caça-cliques e grandiloquentes, os jornais se focassem em cobrir e apurar fatos, não em repetir e destacar narrativas incendiárias de atores interessados na justificação do conflito ou na distração das atenções. Fatos como os avisos desencontrados do Estado de Israel, que levaram civis a uma zona de bombardeio, por exemplo.

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