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Brasileiros em Gaza servem a guerra diplomática de Israel contra o Brasil

Postura do embaixador de Israel é comparável só a um diplomata brasileiro em Israel que convide membros do Hamas a assistir vídeos de bombardeios em Gaza

Pedro Marin
Kits de ajuda humanitária do Governo Federal são desembarcados em Al-Arish, no Egito, de onde seguiram para Gaza. (Foto: SO Johnson/FAB)

Mais de 3 mil estrangeiros já deixaram Gaza, rumo ao Egito, por meio da passagem de Rafah. Até o momento, nenhum dos 34 cidadãos brasileiros que ali estão e que aguardam a saída desde que a guerra teve início. Um comentarista liberal descobriu há pouco, por raciocínio lógico, que a definição para tal estado de coisas é prisão, o que faz dos brasileiros reféns e do Estado de Israel um carcereiro. Por extensão, deveria reconhecer o mesmo em relação aos 2 milhões de palestinos que vivem em Gaza precisamente sob essas condições, mas com nenhuma proteção diplomática de um terceiro Estado.

Fosse essa a única nova de Israel em relação ao Brasil no dia de ontem – isto é, que os brasileiros mais uma vez terão de esperar para sair de uma zona de guerra – poderíamos dizer, simplesmente, que Israel mantém uma enorme má vontade com o governo brasileiro, o único a tentar construir, no Conselho de Segurança da ONU, uma saída que pudesse ser aprovada por todos os membros e que permitisse pausas humanitárias. Mas, desgraçadamente, somos obrigados a dizer, depois de ontem, que a diplomacia israelense tem feito uma verdadeira ofensiva contra o Brasil, usando as vidas dos brasileiros aprisionados em Gaza como chantagem.

No dia de ontem o embaixador israelense no Brasil, Daniel Zonshine, se reuniu com o ex-presidente Jair Bolsonaro e membros da chamada “bancada conservadora” na Câmara dos Deputados, para mostrar-lhes vídeos da ação do Hamas contra Israel no dia 7 de outubro. Dado que Bolsonaro reconhecidamente é, mais do que opositor do atual governo, alguém que no mínimo buscou desconhecer os resultados das eleições que levaram Lula à presidência (senão alguém que estimulou um golpe de Estado no Brasil); alguém que falava em “metralhar a petralhada” num passado não tão longínquo; e alguém que permitiu que, sob seu comando, a ABIN usasse softwares de espionagem israelenses contra jornalistas e juízes, não será demais dizer que a postura do embaixador israelense é comparável somente a um embaixador brasileiro em Israel que convide membros do Hamas para assistir vídeos de bombardeios israelenses em Gaza. Este foi o primeiro ato provocativo, de guerra diplomática, de Zonshine contra o Brasil.

O segundo ato veio com a prisão, pela Polícia Federal, de supostos membros do Hezbollah que estariam planejando atos terroristas no Brasil. Até aqui, sobre os supostos atos, não há evidências concretas de absolutamente nada – as prisões foram resultado de cooperação do Mossad, agência secreta israelense, com a Polícia Federal –, enquanto perguntas abundam. Por exemplo: por que o Hezbollah estaria planejando atentados terroristas em um país que, no geral, tem mantido posição divergente dos interesses de Israel no Conselho de Segurança da ONU, e que mantém boas relações com o Irã? Que sentido estratégico teriam ações terroristas em um país que, aliás, está neste momento se batendo com Israel, em função precisamente do sequestro de seus cidadãos em Gaza?

Seja lá o que vier a ser esclarecido no futuro, o fato é que as manchetes “terroristas do Hezbollah presos no Brasil” já cumpriram um papel de propaganda ao Estado do embaixador Zonshine. Mas ele foi adiante: em entrevista ao O Globo, o embaixador disse que “se [os supostos membros do Hezbollah] escolheram o Brasil, é porque tem gente que os ajuda”. Quem os ajuda, embaixador? Em um ambiente em que a extrema-direita nativa que Zonshine acolhe para sessões de cinema grita aos quatro cantos que o Partido dos Trabalhadores tem relações com “grupos terroristas”, o que sugere a finésse diplomática de Zonshine ao O Globo? Foi esta a segunda e inexplicável provocação.

O terceiro ato de guerra diplomática, no entanto, é muito mais grave. É precisamente que Zonshine toma todas estas medidas enquanto seu Estado mantém os brasileiros em Gaza, ciente de que uma resposta brasileira a seus desvarios diplomáticos terá de pesar na balança essas mais de trinta vidas. O embaixador aposta em brincar com fogo em terras estrangeiras, tendo como garantia cidadãos destas terras presos por seu país. Para quem condena o sequestro político com tanta veemência, não há outras palavras para descrever tal Estado que não sequestrador e cínico.

Revista Opera A Revista Opera é um veículo popular, contra-hegemônico e independente fundado em abril de 2012.

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