“A Justiça pode ser cega, mas a Justiça não é tola”. Foi repetindo esta frase que o ministro Alexandre de Moraes proferiu seu voto na sessão plenária do TSE do dia 31 de outubro, que terminaria por declarar Bolsonaro e Braga Netto inelegíveis por oito anos, por abuso de poder durante as comemorações do Bicentenário da Independência em 7 de setembro de 2022.
Com 5 votos a favor e 2 contra, a maioria do TSE julgou que o capitão e o general usaram das comemorações oficiais do 7 de setembro para fins eleitorais. “Uma alteração absurda; utilizando-se da prerrogativa de comandante-em-chefe das Forças Armadas, simplesmente não houve o desfile tradicional do Rio de Janeiro. Porque o que se adequava mais à política eleitoral, à campanha do candidato à reeleição, era um desfile em Copacabana, para encerrar, no Forte de Copacabana, o seu grande ‘showmício’”, disse Moraes, relembrando as mudanças solicitadas por Bolsonaro quanto ao tradicional desfile no Rio de Janeiro e salientando a fusão entre “cívico-militar e eleitoral”: “mudou o evento e convocou para o evento, entre aspas, as ‘suas’ Forças Armadas”, concluiu Alexandre.
Fez-se justiça, afinal, em relação a Bolsonaro e Braga Netto. Mas convém perguntar: fez-se quanto às Forças Armadas que, de acordo com o próprio ministro Alexandre, “adularam, lamentavelmente, e erroneamente, o candidato à reeleição”? Que comandantes, lamentável e erroneamente, teriam decidido se submeter aos mandos criminosos do presidente, tornando-se assim eles mesmos criminosos? E mais: se a razão para a ausência de punição for a ausência de crime, não deveríamos tomar a coisa muito mais a sério, ao reconhecer que os militares podem ir bem longe de suas funções, “adulando” candidatos com a máquina estatal, mesmo sem cometer crimes? É certo que Bolsonaro fez tudo quanto possível para promover a fusão entre o “cívico-militar” e o “eleitoral”; mas o “militar” também não se dispôs ao longo de todo seu governo a invadir as arenas cívicas e eleitorais? É de se inverter a frase: a Justiça não é nada cega – sabe diferenciar paletós e fardas – mas parece bem tola na sua insistência em punir os primeiros deixando os últimos intactos.
Mas não é só a Justiça. Um dia após a decisão do TSE, Lula anunciou uma Garantia da Lei e da Ordem, poucos dias após dizer que não o faria. É verdade que foi uma meia-GLO: os militares ficaram restritos a portos e aeroportos, e sua presença nas fronteiras foi reforçada. Mas se essa GLO foi desenhada especificamente para que o elemento militar não se envolvesse em combates, por que afinal convocar especificamente o elemento militar? E ainda: não é uma demonstração de fraqueza que um governo que tem relações tensionadas com as Forças Armadas declare num dia que não haverá GLO, e no seguinte que fará uma GLO que não é bem uma GLO?
Um mês adiante, o secretário executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Cappelli – cotado para assumir o cargo que Flávio Dino deixará vago quando for para o STF – diz que o comitê de monitoramento da GLO, que integra as Forças Armadas, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Receita Federal, pode ser adotado de forma permanente. “O ideal seria ampliar os efetivos da PF, PRF e Receita”, reconhece Cappelli, “mas não há espaço fiscal para isso. A ideia é construir, a partir do decreto da GLO, um modelo de integração para cuidar das fronteiras.” Isso é: o que era uma meia-GLO pode virar não só uma GLO inteira, mas se desdobrar numa GLO permanente para as fronteiras, porque “não há espaço fiscal” para uma alternativa. “Não se trata de militarizar”, diz Cappelli, “mas de usar o que temos de concreto”. Ora, talvez se de fato se buscasse alternativas, um “espaço fiscal” fosse descoberto; afinal, a Defesa teve 122 bilhões no orçamento de 2023 (dos quais quase 80% são gastos em pessoal), enquanto o Ministério da Justiça e Segurança Pública tem 20 bilhões – com cerca da metade disso destinado à Polícia Federal. Se o governo cortasse um pouco o gasto com os militares – ao invés de buscar aumentá-lo para atingir a meta definida da OTAN de 2% do PIB em gastos de Defesa – o que “temos de concreto” seria diferente. Enquanto Cappelli fala de seus planos de usar a GLO – aquela que não era GLO – como um “embrião para um comitê permanente”, o Exército envia blindados e homens para a fronteira com a Venezuela e Guiana, em meio à escalada de tensão em relação ao Essequibo, meses após receber tropas norte-americanas para ampliar a interoperabilidade entre as Forças Armadas das duas nações, e a Justiça Militar articula uma PEC no Senado para ampliar suas competências, inclusive no que tange ao julgamento de civis.
Como um governo que passou pelo 8 de janeiro pode terminar seu primeiro ano tão sujeitado e dependente dos militares? A resposta é simples: também neste tema decidiu seguir a linha da contemporização, tolerância e conciliação. Mais do que manter os militares intocados, ajudou-os a recuperar sua imagem. Deixou o ministro da Defesa, José Múcio, atuando livremente como lobista militar frente ao próprio governo e como relações públicas dos fardados frente às câmeras, na expectativa de “pacificar” relações que deveriam ser só de mando e obediência. Trocou o comandante do Exército após o 8 de janeiro para pôr no lugar Tomás Ribeiro Paiva, cuja postura é de legalista, mas a missão confessa é impedir que o governo reforme as Forças. E agora ameaça substituir Dino por Cappelli, que além de querer integrar as Forças Armadas permanentemente a outros órgãos da segurança pública para cuidar de fronteiras, tem um longo passado como defensor do general Villas Bôas. É irônico: Capelli dizia em 2018 que “esquerdistas patéticos” distorciam as palavras de “um brasileiro com B maiúsculo” (referia-se ao general Villas Bôas, que fez tuítes intimidatórios na véspera do julgamento do habeas-corpus de Lula) para “poder posar de ‘herói da resistência’”. Assegurava: esses bravateiros “não têm a menor ideia do que acontece nas Forças”. São palavras de um homem que repentinamente se viu enfrentando uma coluna de tanques no 8 de janeiro, formada para defender golpistas, e que agora se resigna a “usar o que temos de concreto” na segurança pública, porque não haveria alternativa.