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Afinidades eleitorais

Embora se apresentem como diametralmente opostos, Trump e Biden são muito semelhantes, seja na guerra comercial com a China ou na questão Israel-Palestina
Marco D’Eramo
Último debate presidencial das eleições norte-americanas de 2020. (Foto: Adam Schultz / Biden for President)

É hora de revelar um segredo de polichinelo. O presidente Joe Biden está implementando as mesmas políticas que foram instauradas pelo difamado, zombado e indiciado Donald Trump, só que com menos alarde e de forma mais decisiva e brutal. Em particular, Biden está seguindo resolutamente o caminho da desglobalização que causou tanto alvoroço quando o presidente de peruca laranja embarcou nele.

Biden intensificou a guerra comercial com a China desencadeada pelo seu antecessor. Enquanto as iniciativas de Trump foram esporádicas e teatrais, como o indiciamento do diretor financeiro da Huawei, as políticas mais sistemáticas de Biden – reprimindo as exportações de tecnologia avançada – aumentaram a aposta. A guerra na Ucrânia, que eclodiu pouco mais de um ano após o início do mandato de Biden, pode parecer distinguir as duas presidências, mas as suas repercussões na Europa também revelam pontos em comum: o desmantelamento da Ostpolitik alemã (uma política tenazmente perseguida pela Alemanha desde a chancelaria de Willy Brandt há meio século), a dissociação das economias alemã e chinesa e a manutenção da Europa firmemente sob a tutela da OTAN.

A administração Biden seguiu o manual de desglobalização dos republicanos, até nos detalhes. Trump enfraqueceu a Organização Mundial do Comércio (OMC) ao recusar-se a ratificar a nomeação de juízes para o seu principal tribunal de apelações, que resolve disputas comerciais internacionais; os democratas continuam obstruindo essas nomeações. Como resultado, a OMC ficou paralisada e a sua relevância diminuiu. A mesma postura pode ser observada nas relações com a Arábia Saudita: apesar de ter prometido na sua campanha eleitoral fazer dos sauditas um “pária” após o bárbaro assassinato do jornalista Jamal Khashoggi em 2018, Biden visitou Riad em julho de 2022, após a invasão da Ucrânia, para persuadir Mohammed bin Salman a aumentar a produção de petróleo e incentivar laços mais estreitos do país com Israel. Na primavera seguinte, Biden estendeu o tapete vermelho para receber o príncipe herdeiro “pária” em Washington.

Poderíamos acrescentar outras promessas não cumpridas, incluindo as ecológicas, não obstante os tão apregoados subsídios verdes na Lei de Redução da Inflação de Biden. Durante a sua campanha eleitoral, Biden prometeu bloquear novos projetos de exploração de petróleo e gás. Depois rebentou a guerra na Ucrânia e, no final de abril de 2022, a Casa Branca anunciou que estava abrindo terras públicas para perfuração – quase 59 mil hectares – a novos leilões de petróleo e gás, poucos meses depois de os ter suspendido. E não parou aí: em março de 2023, o governo aprovou o projeto Willow, um empreendimento de extração de petróleo com duração de décadas no valor de 8 bilhões de dólares para a Reserva Nacional de Petróleo do Alasca, que é propriedade do governo federal. De acordo com as estimativas do próprio governo, o projeto produziria petróleo suficiente para liberar 9,2 milhões de toneladas métricas de dióxido de carbono por ano, o equivalente a acrescentar 2 milhões de carros movidos a gasolina às estradas.

Mas há outra área em que Biden seguiu discretamente os passos de Trump: a construção de um muro ao longo da fronteira com o México. Uma política de assinatura da administração Trump – embora só tenha conseguido construir 80 quilômetros de novos muros (reparando ou substituindo outras centenas de quilômetros) –, os democratas prometeram que não acrescentariam nem mais um centímetro. Recentemente, Biden autorizou a construção de 20 milhas (32 km) de novas barreiras ao sul do Texas. A pouco menos de um ano das eleições de 2024, a intenção da iniciativa é clara.

E por falar em clima pré-eleitoral: é notável que, durante a recente greve do sindicato United Auto Workers, tanto Biden como Trump tenham ido ao Michigan, embora o seu comportamento tenha sido bastante diferente quando lá chegaram (Biden expressou solidariedade para com os trabalhadores que faziam piquetes, enquanto Trump disse aos trabalhadores de uma loja não sindicalizada que os piquetes não fariam “a mínima diferença”). No entanto, vale a pena refletir sobre ambas as visitas, manifestamente artificiais, feitas com um olho nas eleições. Lembremos que, como Branko Marcetic observou em 2018, Biden passou grande parte de sua carreira “atacando grupos progressistas enquanto cruzava o corredor para votar com os republicanos em instâncias importantes,  que eram decididamente prejudiciais para a classe trabalhadora” – votando a favor, por exemplo, da revogação da Lei Glass-Steagall e da reforma da previdência social de Clinton em 1996. Não esqueçamos também que Biden passou 36 anos como senador pelo Delaware, um paraíso fiscal interno dos Estados Unidos. Mais de 1,4 milhões de entidades empresariais º entre as quais mais de 60% das empresas da lista Fortune 500 – estabeleceram seu endereço legal no Delaware, porque as empresas registradas no Estado que não exercem a sua atividade lá não pagam imposto sobre o imposto de renda corporativo. Ver Biden num piquete é, portanto, um pouco estranho. Esta postura em favor dos trabalhadores reflete a do próprio Trump, cujo cortejo aos trabalhadores da indústria manufatureira é igualmente oportunista e superficial.

As visitas ao Michigan trazem à mente a expressão “Democratas de Reagan”, os trabalhadores sindicalizados de colarinho azul que Reagan conquistou com tanto sucesso em termos ideológicos na década de 1980. Parte deste grupo desertou para os republicanos em 2016, quando Trump venceu em vários estados do Cinturão Enferrujado, incluindo a Pensilvânia, o Michigan e o Wisconsin, todos os quais votaram em Reagan em 1980 e 1984 (e em Obama em 2008 e 2012). De certa forma, os “democratas de Trump” são o oposto dos democratas de Reagan: aqueles que votaram em Reagan foram contra os seus próprios interesses econômicos em nome da ideologia – em parte o tema do livro publicado em 2004 por Thomas Frank, What’s the Matter with Kansas?. Os seguidores de Trump, pelo contrário, foram empurrados para a direita em função dos seus interesses econômicos – como resultado da perda de bons empregos (aqueles com assistência médica, aposentadorias, férias pagas) ou sentindo que estavam sob ameaça. Em um comício eleitoral em 2020, Trump disse: “Queremos garantir que mais produtos sejam orgulhosamente estampados com a frase – essa bela frase – made in the USA“. Sob Biden, os democratas, evidentemente alarmados com as eleições de 2016, adotaram esse bordão. Os discursos de Biden enfatizam o regresso dos empregos à América: “Onde está escrito que a América não pode voltar a ser a capital mundial da manufatura?”.

Isso ajuda a perceber a semelhança política entre os dois presidentes, por mais que se apresentem como diametralmente opostos. É justo presumir que as diferentes classes dominantes de um país têm, às vezes, interesses divergentes, ou mesmo opostos. Mas se o país for o império que domina o mundo, pelo menos em um ponto as classes dirigentes estarão de acordo: não querem ver a base do seu poder (isto é, o império-nação) enfraquecida. Aqueles que detêm o poder pretendem, no mínimo, mantê-lo, se não consolidá-lo ou expandi-lo. Assim, é razoável inferir que os interesses conflitantes entre as várias frações se manifestam em diferentes estratégias para governar o mundo, em diferentes concepções de império. Nos Estados Unidos, estas diferentes concepções de império são reduzidas aos clichês do isolacionismo (ou unilateralismo) versus o multilateralismo intervencionista. É claro que este binômio é simples demais: na realidade, pode haver um intervencionismo unilateralista, entre outras combinações. Mas, na década de 1990, estes campos aglutinaram-se no partido da globalização (que busca governar o mundo através da liberalização do comércio e dos fluxos financeiros) e seus oponentes. Ao longo da década de 1990 e dos anos 2000, o campo da globalização levou a melhor: a versão neoliberal da globalização ficou conhecida como o Consenso de Washington, que foi imposto à força na Sérvia, no Iraque, no Afeganistão, etc.

Mas, no segundo mandato de Obama, as fissuras neste edifício estavam começando a aparecer. Os ‘think tanks’ (e não apenas os conservadores) começaram a preocupar-se com a ascensão da China e com as forças centrífugas que a globalização estava fomentando dentro do império, particularmente na Europa. Os críticos da globalização começaram a salientar que a estratégia dos EUA, ao transformar a China na “fábrica do universo”, estava minando a si mesma.

Esses críticos começaram também a chamar atenção para a forma como os efeitos da globalização estavam erodindo o consenso doméstico em torno da ideia de império. Se na década de 1950 um operário dos Estados Unidos tinha um interesse legítimo no império (o seu salário e nível de vida eram os mais elevados do mundo), isso já não era verdade nos primeiros anos do novo milênio, quando a grande maioria das fábricas americanas havia sido transferida, primeiro para as maquiladoras mexicanas e depois para a Ásia. De certa forma, a globalização estava enfraquecendo o império em seu front interno.

Isto nos leva a outro aspecto da surpreendente continuidade entre as políticas de Trump e Biden. Os ‘bien-pensants‘ de todo o mundo subestimaram seriamente Trump, ridicularizando-o pelo seu histrionismo e pelas suas mentiras. (Vale a pena recordar que, quando foi eleito, Reagan também foi ridicularizado – como um ator de filmes B, totalmente ignorante em matéria de política externa, um tolo que consultava cartomantes e estava convencido do fim iminente do mundo, destinado a sofrer impeachment em poucos meses. Vimos a continuação). Mas, claro, o governo Trump não era só Trump. O seu gabinete incluía o CEO da Exxon, vários membros do banco mais poderoso do mundo (Goldman Sachs), uma bilionária do Meio-Oeste (Betsy DeVos), vários generais do Pentágono e, como segundo secretário de Estado, Mike Pompeo, o homem dos irmãos Koch. Magnatas do Vale do Silício participaram de reuniões na Casa Branca. Em 2018, o Relatório Anual da Heritage Foundation, dando “adeus a algumas pessoas excelentes em 2017”, vangloriava-se de que “a administração Trump  contratou mais de 70 dos nossos funcionários e antigos alunos.” No ano seguinte, o think tank gabou-se do fato do governo Trump ter “adotado 64% das sugestões políticas da Heritage”. Por trás da fanfarronice de Trump, em muitos aspectos o seu governo estava sendo teleguiado por esses think tanks financiados pela fração da classe dominante dos EUA que o fez ser eleito.

Durante a Guerra Fria, circulava um lugar-comum: que os republicanos eram conservadores na política interna, mas menos agressivos na política externa, enquanto os democratas eram progressistas em casa, mas mais belicistas no exterior (a Guerra do Vietnã foi travada sob Kennedy e Johnson; Nixon negociou a paz). Após a derrota da URSS, esta noção perdeu a sua validade: foram os presidentes republicanos, Bush Sr. e Bush Jr., que atacaram o Iraque, o Afeganistão e o Iraque novamente (embora Clinton tenha desencadeado o ataque à Sérvia e Obama tenha continuado a guerra do seu antecessor). Isto nos leva à última, mas não menos significativa, área em que Biden repetiu as posições de Trump: na sua visão para o Oriente Médio, formalizada nos Acordos de Abraão de 2020, vista de forma mais evidente no apoio total e incondicional de Biden a Benjamin Netanyahu. Com a dupla Trump-Biden parece que estamos de volta à Guerra Fria: apesar de todas as suas proclamações bombásticas, Trump não começou nenhuma guerra. Com Biden, já estamos na segunda.

(*) Marco D’Eramo é jornalista. Foi correspondente do Paese Sera e do La Repubblica, além de fundador do Il manifesto e colaborador da The New Left Review.

(*) Tradução de Raul Chiliani

Sidecar O Sidecar é o blog da revista New Left Review, fundado em 2020.

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