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Como Israel luta em Gaza e qual a situação atual do conflito?

Ofensiva contra Gaza hoje repete passos da guerra de 2014. Soldados à época confirmam desumanização, racismo e ‘fogo livre’ por parte de Israel
Euclides Vasconcelos
soldados da brigadaria Givati e da brigada blindada fazem treinamento de guerra urbana. 28/12/2015. (Foto: Staff Sgt. Alexi Rosenfeld / IDF Spokesperson’s Unit)

Dez anos atrás, entre os meses de julho e agosto de 2014, Israel realizou a operação Margem Protetora na Faixa de Gaza, ofensiva hoje conhecida simplesmente como “guerra de Gaza” de 2014. Até agora, esta era a última das “doze guerras” israelenses no pequeno território de 365 quilômetros quadrados ao sul de Israel, onde hoje duas milhões de pessoas se amontoam sob bombardeio ininterrupto.

A ofensiva começou depois que três jovens israelenses foram sequestrados e assassinados no mês de junho de 2014, um crime atribuído ao Hamas pelo governo do mesmo Benjamin Netanyahu de hoje, ainda que o grupo palestino não tenha assumido a autoria dos sequestros. Em resposta, um palestino de 16 anos foi sequestrado e queimado vivo por israelenses em Jerusalém, o que causou uma explosão de protestos nos territórios palestinos e ataques do Hamas a Israel, que no dia 4 de julho iniciou o bombardeio aéreo da Faixa de Gaza, seguido pela ofensiva terrestre treze dias depois. 

Na dianteira da guerra de 2014, junto a Netanyahu e ao então ministro da Defesa Moshe Ya’alon, estava Benny Gantz, comandante do Estado-Maior Geral das Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês). Gantz foi ministro da Defesa de 2020 a 2022, primeiro-ministro Alternativo junto a Netanyahu de 2020 a 2021 (numa espécie de revezamento) e hoje compõe o gabinete de guerra, nome dado ao governo de coalizão formado em outubro de 2023.

Mas as semelhanças entre 2014 e 2024 não se encerram em personagens que se repetem. A invasão de dez anos atrás carregava também a maioria das justificativas usadas agora. A destruição dos “túneis utilizados para atividades terroristas”, a erradicação do Hamas e a “libertação” da Faixa de Gaza, são razões que ontem foram evocadas e hoje são recicladas para que Israel avance outra vez sobre o que restou do território palestino. Também são semelhantes os passos dados na ofensiva, que se inicia e segue adiante conforme etapas muito bem pensadas do ponto de vista militar, independente do que encontra diante de si.

Em 2016, dois anos depois do fim da guerra, a ONG israelense Breaking the Silence (Quebrando o Silêncio, em tradução literal) publicou o livro-relatório “Foi assim que lutamos em Gaza: testemunhos e fotografias dos soldados da Operação ‘Margem Protetora’ (2014)”, uma coletânea de depoimentos de oficiais e praças que decidiram denunciar o que aconteceu na Faixa de Gaza naquele ano. Essa iniciativa não era de todo nova, já que outros vários livretos, folhetos e livros do mesmo tipo foram publicados pela ONG em vários eixos temáticos: o trato dado a crianças e adolescentes em territórios ocupados, a experiência de soldados mulheres, a ocupação de Hebron (a maior cidade palestina da Cisjordânia), a influência dos colonos israelenses na conduta dos soldados, etc. 

A Quebrando o Silêncio, que se descreve como “uma organização de soldados veteranos que serviram nas Forças Armadas israelenses desde o início da Segunda Intifada e assumiram a responsabilidade de expor o público à realidade da vida cotidiana nos Territórios Ocupados”, assume para si o papel de “estimular o debate público sobre o preço pago por uma realidade em que jovens soldados enfrentam uma população civil diariamente e estão envolvidos no controle da vida cotidiana dessa população”.

O seu trabalho, declara, “visa acabar com a ocupação”, já que “soldados que servem nos territórios testemunham e participam de ações militares que os mudam imensamente. Casos de abuso contra palestinos, saques e destruição de propriedades têm sido a norma há anos, mas esses incidentes ainda são descritos oficialmente como casos ‘extremos’ e ‘únicos’. Nossos testemunhos retratam um quadro diferente — e muito mais sombrio —, no qual a deterioração dos padrões morais encontra expressão no caráter das ordens militares e regras de engajamento que o estado considera justificadas em nome da segurança de Israel.”

É impossível não lembrar de Fanon, o psiquiatra que abandonou seu trabalho como médico do exército francês na Argélia para lutar contra os franceses pela independência argelina. Fanon percebeu que os distúrbios mentais de seus pacientes — tanto combatentes argelinos quanto soldados franceses da “pacificação” — tinham uma mesma origem: a guerra colonial, que desumaniza ao limite (mas de formas diferentes) o colonizado oprimido, o soldado colonizador em seu papel de carrasco e a população civil do país ocupante. Os distúrbios que Fanon tratava não poderiam ser curados em nenhum hospital psiquiátrico, já que a única cura possível deveria vir do fim da dominação colonial francesa na Argélia.

Assim o é também em Gaza e em toda a Palestina ocupada. A desumanização do povo palestino, tratado como um povo inferior e animais passíveis de extermínio — como dito pelo o ministro da Defesa de Israel —, atua também no sentido contrário, transformando seus algozes em verdadeiras bestas humanas que não se detém diante de nenhum limite próprio ou imposto para atingir seu objetivo político: a expulsão total ou parcial dos palestinos de Gaza, custe o que custar.

Mas é possível saber como Israel atua no campo de batalha? Como ter acesso ao passo a passo de uma guerra em meio à desinformação, propaganda e ao filtro da censura militar? No que se apegar quando jornalistas são mortos para não relatar o que vêem e até os números de mortos são desacreditados como “números do Hamas”? 

Nesse caso, poucas coisas são mais úteis que os relatos de combatentes da frente de batalha. Mais útil ainda quando os combatentes em questão são movidos pela denúncia do que viram e fizeram  — homens e mulheres que, tendo cumprido o papel de pequenas engrenagens na grande máquina de guerra de Israel, tentam nadar contra a maré de uma sociedade fundada e orientada para a guerra permanente contra um inimigo visto como uma raça inferior. 

Vejamos primeiro, por soldados israelenses, como Israel luta em Gaza. Na sequência, um panorama da situação atual da guerra e suas perspectivas.

A preparação do terreno

Major de Infantaria, Norte da Faixa de Gaza (p. 25): “Há uma etapa que inclui uma ‘tela de acompanhamento’ — o disparo de projéteis de artilharia antes da chegada das forças. Você notifica os residentes, lança panfletos — quem fugiu, fugiu — e então você atira. Estou falando de um uso bastante massivo de fogo. A artilharia, seu propósito é permitir que nossas forças entrem sem serem feridas. (…) De acordo com relatórios de inteligência e comunicações militares, você está falando de uma situação em que todas as casas são classificadas como algum tipo de local hostil. (…) Sabe qual piada estava sendo contada no exército na época? Uma piada de que os palestinos só cantam o refrão porque não lhes restam estrofes [casas]. (em hebraico, a palavra para estrofe é a mesma palavra usada para casa).

Tenente, Infantaria, Rafah (p. 82): “Antes da entrada a pé na Faixa de Gaza, uma quantidade insana de artilharia foi disparada em toda a área. Duas horas sem parar, ‘Boom, boom, boom.’ Depois disso, os tanques entraram em duas fileiras, e na frente dos tanques um D9 (trator de esteira blindado) arou toda a área, e nós seguimos por onde ele passou. (…) Antes que um tanque faça qualquer movimento, ele dispara, toda vez. Esses caras estavam loucos para atirar, completamente loucos. Essas eram suas ordens, tenho certeza disso, não há chance de alguém apenas sair atirando assim.”

O briefing antes da operação

Primeiro-sargento, Infantaria, Norte da Faixa de Gaza (p. 139): “(…) geralmente a ideia é usar muito fogoisso não é Judéia e Samaria (na Cisjordânia)você quer encontrar pessoas em pedaços lá dentro. É assim que é gerenciado, em poucas palavras. Além disso, geralmente um D9 (trator de esteira blindado) se aproxima, derruba uma parede e você entra pela parede.”

Capitão, unidade não revelada (p. 167): “As regras de engajamento fazem parte do procedimento de combate, é a primeira coisa dada a cada companhia que entrae não havia nenhuma. (…) Durante o briefing com o comandante do batalhão na noite da incursão, foi perguntado quais eram as regras de engajamento, como nos comportamos, em quem atiramos e em quem não atiramos. O que ele disse foie esse foi o sentido geral das coisas‘Estamos entrando em uma zona de guerra.’ (…) B) O combate em Gaza é muito complicado porque, por um lado, estamos [entrando] e, por outro lado, a Faixa [de Gaza] é tão pequena que os moradores não têm realmente para onde escapar.”

Primeiro-sargento, Infantaria, Norte da Faixa de Gaza (p. 235): “Fomos instruídos [durante os briefings] que quem estiver na área é perigoso, é suspeito. (…) [Houve um caso em que] um soldado que estava em um dos postos viu um velho [palestino] se aproximando, então ele gritou que algum velho estava se aproximando. Ele não atirou nele — atirou perto dele. O que eu sei, porque verifiquei isso, é que um dos outros soldados atirou duas vezes naquele avô. Uma grande confusão começou, todo mundo pegou seus equipamentos rapidamente e queria sair (…) Eu fui até uma janela para ver o que estava acontecendo lá fora, e vi que havia um velho deitado no chão, ele foi baleado na perna e estava ferido. Foi horrível, o ferimento era horrível, e ele parecia morto ou inconsciente para mim. Então descemos e dissemos a toda aquela força — esses caras estavam todos verdadeiramente perturbados — ‘Chega, não há motivo para atirar nele, se controle, ele está morto.’ E então uma discussão começa [entre os soldados]: ‘O que te faz um especialista em morte? O que você é, algum médico?’E depois disso, algum cara da companhia saiu e atirou naquele homem novamente, e isso, para mim, foi a gota d’água. Não acho que houve um único cara na minha tropa que não tenha ficado chocado com isso. Não é como se fôssemos um bando de esquerdistas, mas — por quê? Tipo, o que diabos, por que você teve que atirar nele de novo? Um dos problemas dessa história é que não houve uma investigação sobre isso, pelo menos nenhuma que eu saiba.”

A política de fogo livre

Primeiro-sargento, Infantaria Mecanizada, Deir al-Balah (p. 26 e 27): “As regras de engajamento são bastante idênticas: Qualquer coisa dentro [da Faixa de Gaza] é uma ameaça, a área deve estar ‘esterilizada’, esvaziada de pessoas — e se não vemos alguém acenando com uma bandeira branca, gritando ‘Eu me rendo’ ou algo assim — então ele é uma ameaça e há autorização para abrir fogo. (…) Houve um aviso de inteligência sobre animais. Se um animal suspeito se aproximar, atire nele. Na prática, não fizemos isso. Tivemos discussões sobre fazer ou não fazer.” 

Primeiro-sargento, Corpo Blindado, Deir al-Balah (p. 65-66): “E foi aí que começou minha dificuldade lá, porque as regras formais de engajamento — eu não sei se para todos os soldados — eram: ‘Tudo que ainda estiver lá só é bom se estiver morto. Qualquer coisa que você veja se movendo nos bairros em que está não deveria estar lá. Os civis [palestinos] sabem que não deveriam estar lá. Portanto, quem você vir lá, você mata.’ (…) O comandante disse: ‘(…) Ninguém, nenhum civil que não seja um terrorista, tem motivo para estar a menos de 200 metros de um tanque. E se ele se coloca em tal situação, aparentemente está tramando algo.’ (…) Não há civis. A suposição de trabalho afirma — e quero enfatizar que isso é uma espécie de citação: que qualquer pessoa localizada em uma área das IDF, em áreas que as IDF assumiram o controle — não é considerada um civil. Essa é a suposição de trabalho. Entramos em Gaza com isso em mente e com uma quantidade insana de poder de fogo.”

A diversão das tropas

Primeiro-Sargento, Corpo Blindado (p. 76): “Durante toda a operação, os motoristas dos tanques tinham essa vontade de querer atropelar carros — porque o motorista, ele não pode disparar. Ele não tem nenhuma arma, ele não consegue experimentar a diversão em sua totalidade, ele só avança, recua, vira para a direita, para a esquerda. E eles tinham esse tipo de impulso louco de atropelar um carro. Quero dizer, um carro que está na rua, um carro palestino, obviamente. E teve uma vez que o motorista do meu tanque, um cara um pouco hiperativo, conseguiu convencer o oficial do tanque a atropelar um carro, e realmente não foi tão emocionante assim – você nem percebe que está passando por cima de um carro, não sente nada — apenas dissemos no rádio: ‘Atropelamos o carro. Como foi?’ E foi legal, mas realmente não sentimos nada.”

Primeiro-sargento, Corpo Blindado, Deir al-Balah (100-101): Após três semanas no tanque, subimos para o posto e vimos uma rota e uma espécie de competição começou. ‘Você é um artilheiro, vamos ver se você é um homem de verdade, vamos ver se você consegue acertar um carro em movimento.’ Então eu escolhi um carroum táxie tentei disparar um projétil, mas não consegui acertar. Passaram mais dois carros e tentei com mais um ou dois projéteis, e não acertei. O comandante disse: ‘OK, chega, você está usando todos os meus projéteis, pare com isso.’ Então passamos para uma metralhadora pesada. Também não conseguimos acertar carros depois de algumas tentativas com isso, até que de repente eu vi um ciclista, simplesmente pedalando feliz. Eu disse OK, esse cara eu vou derrubar. Eu calibrei a distância e não acerteiacertou um pouco à frente dele e então de repente ele começa a pedalar como um louco, porque estava sendo alvejado, e toda a tripulação do tanque está rindo, ‘Nossa, olha como ele está rápido.’ Depois disso, conversei sobre isso com alguns outros artilheiros e descobri que havia uma espécie de competição entre todos os tipos de caras, ‘Vamos ver se esse artilheiro acerta um carro, ou se aquele artilheiro acerta um carro.’ (…) Eu, pessoalmente, lá no fundo, quero dizer, fiquei um pouco incomodado, mas após três semanas em Gaza, durante as quais você está atirando em qualquer coisa que se movee também naquilo que não está se movendo, em quantidades loucas(…) O certo e o errado se misturam um pouco, e seus valores morais se perdem um pouco e você meio que surta, e também se torna um pouco como um jogo de computador, totalmente legal e real.”

Cada casa é um alvo

Sargento de primeira classe, Infantaria Mecanizada, Deir al-Balah (p. 39): Sabíamos que estávamos entrando em uma casa e que poderíamos ser bons meninos, nos comportar da melhor maneira possível, mas mesmo assim um D9 (bulldozer blindado) apareceria e aplanaria a casa. Descobrimos muito rapidamente que toda casa que deixávamos, um D9 aparecia e a arrasava. (…) Em nenhum momento até o final da operação, até que o comandante da unidade nos fizesse um debriefing, alguém nos explicou o valor de arrasar casas. Durante a conversa, o comandante da unidade explicou que não era um ato de vingança. Que as casas situadas em um eixo alto deste lado do morro dominavam toda a área entre [a cerca de separação com] Israel e o bairro, e por isso não poderiam ser deixadas em pé. Elas também têm vista para as cidades israelenses e permitem que sejam usadas para bombardeio com morteiros. Em certo ponto, entendemos que era um padrão: você sai de uma casa e a casa desapareceapós duas ou três casas você percebe que há um padrão. O D9 vem e aplaina. (…) E quando mapas atualizados foram emitidos depois que saímos [da Faixa de Gaza], vimos que apenas as duas casas que permaneceram em pé quando saímos apareciam neles.

Primeiro-sargento, Corpo Blindado, Deir al-Balah (p. 114-115): “A ofensiva começou quando começou a escurecer e meu tanque liderava o caminho, estávamos em uma espécie de comboio, e havia esta pequena casa. E então, de repente, vemos um bairro inteiro se abrindo diante de nós, muitas casas, tudo estava lotado e no momento em que chegamos àquela casinha, a ordem para atacar veio. Cada tanque mirou na direção que escolheu e então disparamos muito na pequena casa com metralhadoras e também um projétil para garantir que não houvesse ameaça dentro dela. E de repente vejo o bairro inteiro na minha frente, e então há estresse, e confusão no rádio, e o comandante estava realmente improvisando, e de repente ele me diz: ‘Você vê aquela casa? Dispare lá.’ Boom, eu atirei. ‘Vá, motorista, avance’, e o motorista avançou um pouco e chegamos a uma espécie de beco. ‘Você vê a casa à esquerda? Dispare nela.’ Boom, nós atiramos, e estávamos apenas, tipo, atirando sem propósito. Não havia inteligência sobre esta ou aquela casa — era apenas o comandante da minha tropa e eu decidindo atirar nela porque você tem que atirar, você tem que ‘provocar’. Pode muito bem ter acontecido de pessoas terem sido mortas lá dentro, mas realmente não havia inteligência sobre esses edifícios específicos. E foi assim que continuou. ‘Você vê aquela casa na sua frente? Atire.’ (…) E durante a ofensiva, ninguém atirou em nós — nem antes, nem durante, nem depois. Lembro-me que quando começamos a recuar com os tanques, olhei para o bairro e pude simplesmente ver um bairro inteiro em chamas, como nos filmes. Colunas de fumaça por toda parte, o bairro em pedaços, casas no chão, e tipo, pessoas moravam lá, mas ninguém havia atirado em nós ainda. Estávamos atirando sem propósito.”

Destruição máxima antes de um cessar-fogo

Primeiro-sargento, Infantaria, Norte da Faixa de Gaza (p. 182): “Houve um cessar-fogo humanitário que entrou em vigor às 6:00 da manhã. Lembro-me que nos disseram às 5h15: ‘Olhem, vamos fazer um show.’ Foi incrível, a precisão da Força Aérea. O primeiro projétil atingiu exatamente às quinze para as cinco em ponto, e o último atingiu às 5h59 e 59 segundos, exatamente. Foi incrível. Fogo, bombardeio incessante do bairro ‘Sevivon’ (a leste de Beit Hanoun), que, se me lembro corretamente, se estendia mais para o oeste e sul de onde estávamos lá. Sem parar. A área inteira de Beit Hanoun – em ruínas. (…) E quando você voltou, o que viu daquele bairro? Nada. Absolutamente nada. Nada. Como a cena de abertura em ‘O Pianista’. Há aquela foto famosa que eles sempre mostram em viagens à Polônia (viagens organizadas em que jovens israelenses visitam locais de memória do Holocausto) que mostra Varsóvia antes da guerra e Varsóvia após a Segunda Guerra Mundial. A foto mostra o coração de Varsóvia e é esta cidade europeia elegante, e então eles mostram no final da guerra. Eles mostram exatamente o mesmo bairro, apenas com uma casa ainda em pé, e o resto são apenas ruínas. Foi assim que parecia.”

Quando acaba o cessar-fogo

Primeiro-sargento, Infantaria, Norte da Faixa de Gaza (p. 222): “Nos estabelecemos em nosso local e, aos poucos, os palestinos começaram a voltar. Em certo momento, logo no início, uma mulher mais velha se aproximou, e um dos oficiais disse que ela deveria ser baleada. Disseram a ele para disparar tiros de advertência em sua direção, e depois de alguns tiros ela recuou. Mais tarde, muitas pessoas com bandeiras brancas se aproximaram e tiros de advertência também foram disparados perto delas. E para onde elas estavam tentando ir? Elas estavam voltando para suas casas, por isso estavam segurando aquelas bandeiras… Este era um bairro muito pobre. Você podia ver, olhando para os animais deles tambémestavam realmente magros. Eles estavam trancados, os animais, então não tinham comida. E havia outro cara, quando entramos na casa, ele estava apenas sentado lá. [Os soldados] algemaram seus braços e pernas e amarraram um pano em volta de seus olhos e ele ficou lá por um dia inteiro.”

O ódio racial

Tenente, Brigada Givati, Rafah (p. 156-157): “O lema que guiava muitas pessoas era ‘Eles vão ver’. Era evidente que esse era um ponto de partida. ‘Eles vão ver’. Muitos caras que fizeram o serviço militar de reserva comigo não têm muita compaixão em relação… A única coisa que os motiva é cuidar de seus soldados e da missão — eles são impulsionados para uma vitória das IDF, a qualquer preço. E eles dormem tranquilamente à noite. Estão totalmente em paz com isso. Estas não são pessoas que passam os dias procurando coisas para matar. De forma alguma. Mas eles também não têm medo de matar. Eles não veem isso como algo ruim. O elemento de prazer no poder também está presente, são todos os tipos de coisas. Acho que muito pode ser aprendido com a Operação ‘Margem Protetora’ sobre a questão de lidar com civis e como isso funciona. Havia muitas pessoas lá que realmente odeiam árabes. Realmente, odeiam árabes. Você podia ver o ódio nos seus olhos.”

Tenente, Divisão Gaza (p. 162-163): “Ao contrário de operações anteriores, você podia sentir que havia uma radicalização na forma como todo o processo foi conduzido. O discurso era extremamente de direita. O exército obviamente tem inimigos muito claros – os árabes, o Hamas. Há essa dicotomia rígida. Há aqueles envolvidos [palestinos envolvidos no combate] e aqueles não envolvidos, e pronto. Mas o simples fato de serem descritos como ‘não envolvidos’, em vez de como civis, e a dessensibilização ao crescente número de mortos no lado palestino – e não importa se estão envolvidos ou não – o número insondável de mortos de um dos lados, o nível inimaginável de destruição, a forma como células militantes e pessoas eram consideradas alvos e não seres vivos – isso é algo que me preocupa. O discurso é racista. O discurso é nacionalista. O discurso é anti-esquerdista. (…) Durante a operação, isso se radicaliza.”

Nada resta depois da guerra

Primeiro-sargento, Engenharia, Cidade de Gaza (p. 179): Durante todo o período de combate, tem-se em mente que há essa coisa chamada ‘o dia seguinte’, que é: o dia em que saímos [da Faixa de Gaza], quanto mais [áreas] deixadas amplamente abertas e ‘limpas’ possível, melhor. Decide-se por uma linha específicadurante os dias após a Operação ‘Chumbo Fundido’ era de 300 metros da cercae ela é nivelada, achatada. Não importa se há bosques lá, não importa se há casas, não importa se há postos de gasolinatudo é nivelado porque estamos em guerra, então podemos fazer isso. Você pode justificar qualquer coisa que faça durante a guerra. Tudo de repente parece razoável, mesmo que não seja realmente razoável. Tínhamos alguns D9s (bulldozers blindados) em nosso batalhão e posso atestar que os D9s sozinhos destruíram centenas de estruturas. Foi na reunião de avaliação. Houve algumas estruturas a mais que destruímos no final. Obviamente, houve todo tipo de outras coisas, mas o D9 era a principal ferramenta, ele não para de funcionar. Qualquer coisa que pareça suspeita, seja apenas para limpar um caminho, seja para alguma outra coisa, seja o que for – ele derruba. Essa é a missão.

* * * 

No período recente (de 2000 pra cá, isto é, apenas no século XXI) a Faixa de Gaza foi palco de um sem-número de ataques, invasões e ocupações. Em decorrência da Segunda Intifada (ou Intifada al-Aqsa), Gaza ficou ocupada até 2006. Dois anos depois, em 2008, Israel lançou a operação Inverno Quente, um prelúdio da guerra de 2008 (ou operação Chumbo Fundido, que durou até o ano seguinte). Em 2012, a operação Pilar de Defesa, e finalmente a guerra de 2014, citando apenas os momentos mais significativos. 

Com um exercício de comparação minucioso entre os dias de hoje e as incursões anteriores, veríamos que a guerra atual pouco tem de novo em método – destaca-se, isso sim, pela magnitude e por algo ainda mais importante, seu objetivo político: a óbvia decisão de expulsar de uma vez os palestinos de Gaza (ou tentar fazê-lo), custe o que custar.

Os números nos dão um pouco da dimensão do que acontece hoje. Se em 2014 Israel matou 2250 palestinos em dois meses, a guerra atual em apenas quatro já custou mais de 30 mil vidas palestinas. A máquina de guerra opera agora a toque de caixa para dar à política o que esta deseja.

Ao dividir o território de Gaza em setores e avançar metodicamente sobre cada um deles, hoje Israel empurra os palestinos que sobreviveram em direção ao Egito, para ocupar a Faixa de Gaza de maneira permanente. O bombardeio aéreo indiscriminado, a destruição intencional da infraestrutura civil, o terraplanar de imensas regiões residenciais, a incursão terrestre — tudo visa expulsar o máximo de palestinos do seu território sem que tenham para onde voltar, matando tanto quanto possível no caminho.

Tal é a situação atual. Depois de quatro meses de guerra, tendo a invasão começado do norte (a partir do território israelense) em direção ao sul (onde Gaza faz fronteira com o Egito), Israel espremeu dois milhões de palestinos – ou tantos quantos tenham sobrevivido – contra o muro de uma faixa de terra que, vista do mapa, se revela um grande beco sem saída. No fim desse beco está Rafah, a última cidade palestina onde se amontoa todo um povo.

Em um ato especial de sadismo, Israel deteve sua ofensiva terrestre nas portas da cidade e anunciou a data da marcha final: 10 de março, início do Ramadã, mês sagrado para os muçulmanos. Desde então e a conta-gotas, tem bombardeado as tendas de refugiados vindos das cidades ao norte, uma forma de não dar trégua e manter as pessoas sob o permanente medo da morte vinda dos ares, enquanto esperam a morte que vem pelo calendário. Uma medida duplamente sádica, já que a data marcada pode ainda ser apenas um blefe que espalha terror psicológico – enquanto o ataque pode vir antes ou depois da data marcada, garantindo o elemento surpresa.

Mapa da Faixa de Gaza. Em vermelho as áreas bombardeadas até 2 de fevereiro. Acima, ao norte, a fronteira com Israel. Ao sul, no canto inferior direito, Rafah, última cidade da Palestina antes da fronteira com o Egito. / BBC

Por mais que tudo façam para separar guerra e política e dissimular que por trás de todo conflito há as mais frias razões e passos cuidadosamente planejados, assim o é. A guerra atual apenas começou como um ato de resposta ao ataque do Hamas no dia 7 de outubro. Ele foi, de maneira direta, apenas o estopim utilizado para colocar em prática os planos já elaborados de uma ofensiva final contra a Faixa de Gaza.

Resgatar os reféns, destruir os túneis e a erradicar completamente o Hamas, tudo isso não passa de razões apresentadas, objetivos que jamais serão alcançados por completo, e Israel sabe disso, inclusive porque já as apresentou exatamente da mesma forma nas guerras de um passado recente. Diante da óbvia impossibilidade de atingi-los, alguns podem se enganar achando que essa é uma guerra sem razão, iniciada sem um objetivo em mente e que, não sabendo o que fazer, Netanyahu se limita agora a prolongar o  massacre – temendo perder o poder se a guerra acabar, como dizem alguns dos seus críticos.

Mas a política de Israel para esta guerra é clara: a curto prazo, a tomada do território, a expulsão dos palestinos e a ocupação militar da região. A médio prazo, o que chamam de “desmilitarização”: o desmantelamento de todas as organizações armadas, a instauração de um governo de colaboradores das forças de ocupação  – como detalha o plano apresentado por Netanyahu ao seu gabinete de segurança. Por fim e a longo prazo, a colonização da região. Por meio da distribuição e venda de terras a colonos judeus, Israel estabelecerá no território conquistado o seu apartheid racial que separa judeus e árabes em um sistema de leis semelhante ao que imperava na África do Sul até 1991.

Apesar de claro, não se trata de um plano fácil de ser executado, e nada garante que o será em sua totalidade. O primeiro grande obstáculo à ocupação militar é a imensa densidade populacional da Faixa de Gaza, a maior do mundo – daí a necessidade de expulsar o máximo de palestinos que conseguirem. Operar de maneira prolongada em uma área onde dois milhões de pessoas se amontoam em 365 metros quadrados seria muito custoso, um sangramento permanente e a conta-gotas. Enfrentar uma guerra de guerrilhas em um ambiente urbano povoado como Gaza torna muito difícil, quiçá impossível, estabelecer controle total do terreno de maneira permanente — especialmente um terreno cujo subsolo é atravessado por uma infinidade de túneis, construídos por décadas.

As perdas provocadas atualmente por esse tipo de combate talvez sejam a parte mais difícil de mensurar, já que Israel não nos oferecerá dados reais sobre o número de soldados mortos e retirados do combate. Mas alguns acontecimentos podem nos dar uma dimensão aproximada dos acontecimentos. Por exemplo: no dia 23 de janeiro as Forças de Defesa de Israel anunciaram que 21 dos seus soldados foram mortos em um único ataque na parte central da Faixa de Gaza (área esta ocupada por Israel há cerca de dois meses), a 600 metros de distância da fronteira israelense. Se adicionarmos à análise a estimativa divulgada pelo The Wall Street Journal de que cerca de 80% da rede de túneis construída pelo Hamas sob Gaza continua intacta e operando, é possível extrair pelo menos uma conclusão: apesar da óbvia superioridade militar de Israel, ainda é extremamente custoso a um exército ocupante manter-se em um território cuja população lhe é hostil e a força que se combate possui pleno conhecimento do terreno. 

O segundo obstáculo principal é o atual esforço de guerra, que Israel não pode sustentar indefinidamente. Em quatro meses de guerra total Israel assassinou 30 mil pessoas, isto é, 1,5% da população palestina na região. Se somarmos aos mortos os feridos e desaparecidos, a cifra sobe para os 5%. O esforço envolvido nesse banho de sangue significou uma queda de quase 20% no PIB do israelense no último trimestre do ano passado

Com um território e população bastante reduzidos, Israel não pode se dar ao luxo de sustentar uma guerra sem perspectiva de fim. A mobilização dos reservistas para o combate afeta os setores onde essas pessoas trabalham e de onde foram retiradas, bem como a quantidade de deslocados gerada pela evacuação das regiões próximas à Faixa de Gaza e do Líbano cria um problema de gerenciamento que não é pequeno. Há ainda que se mencionar a situação no Mar Vermelho, onde o assédio permanente dos Houthis aos navios dirigidos a portos israelenses afetou o trânsito pelo Canal de Suez, criando uma série de contratempos em toda a cadeia de comércio mundial.

Em resumo: Israel se prepara para guerras rápidas e assim as luta porque são essas que melhor se adequam às suas características. O ônus de um território pequeno (e seus desdobramentos militares) é parte da razão de ser da sanha expansionista de Israel, que, alegando questões de segurança, pretende tomar para si não apenas o território palestino, mas estabelecer um verdadeiro espaço vital no seu entorno às custas da anexação de territórios de outros países da região, tema que pretendo retomar em outro escrito.

A menos que a guerra extrapole Gaza, com a abertura de uma segunda frente na fronteira com o Líbano ao norte, onde Israel precise enfrentar também o Hezbollah; ou que imperativos de ordem política (como a pressão internacional por um cessar-fogo e a própria situação interna do país, que há meses acumula instabilidades) acabem por obrigar Israel a interromper a ofensiva, a parte inicial dessa guerra destinada a expulsar os palestinos do seu território pode estar próxima do fim. 

Como não há quem pareça disposto a impedir, em breve Israel marchará sobre Rafah, obrigando o Egito a abrir sua fronteira para a multidão em desespero. O mundo já se prepara para isso em toda a sua covardia civilizada. O próprio Egito já conduz os preparativos para receber parte dos palestinos que, uma vez expulsos de sua terra, jamais receberão permissão para voltar. Segundo autoridades egípcias, um campo de refugiados de dois mil metros quadrados cercado por muros está sendo construído em pleno deserto do Sinai, perto da fronteira. 

De uma forma ou de outra, o ataque a Rafah não será uma simples operação de expulsão, já que o campo improvisado no deserto do Sinai tem capacidade para apenas 100 mil pessoas das 1,5 milhões que agora estão em Rafah — e o Egito só se diz disposto a receber de 50 a 60 mil. A conta não bate.

O povo palestino está sozinho em Gaza. Uma vez que foram impedidos de constituir um exército próprio, só as organizações armadas puderam até hoje fazer alguma frente à opressão israelense, e o fazem de maneira completamente assimétrica. Mesmo com tudo isso, ainda há os que olham para a realidade e insistem em não ver o óbvio: Israel não tem direito de se defender, pois é o agressor. Como disse recentemente o embaixador chinês na ONU ao Tribunal de Haia, Israel é “uma nação estrangeira que ocupa a Palestina, então o direito à autodefesa está mais com os palestinos do que com os israelenses”. E justamente por isso, condenar as respostas de qualquer organização palestina é o mesmo que pedir-lhes que morram sem revidar. 

Como bem escreveu um dos últimos franceses honrados sobre a luta dos povos colonizados, no prefácio ao já citado livro de Fanon: “Sabíamos, creio eu, porém nos esquecemos dessa verdade: nenhum gesto de ternura apagará as marcas da violência, só a violência pode destruí-las. (…) A arma de um combatente é sua humanidade. Porque, no primeiro tempo da revolta, é preciso matar. Abater um europeu é matar dois coelhos com uma cajadada só, é suprimir ao mesmo tempo um opressor e um oprimido: restam um homem morto e um homem livre; o sobrevivente, pela primeira vez, sente um solo nacional sob a planta dos pés. Nesse instante, a nação não se afasta dele: encontra-se aonde ele vai, onde ele está — nunca mais longe do que isso, confunde-se com a sua liberdade.” Substitua “europeu” por “colonizador”, e Sartre nos deu a única verdadeira lente com a qual se pode enxergar esta guerra.

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