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Como o sonho da Europa de uma solução cooperativa dos conflitos chegou ao fim

A Europa poderia contribuir para uma solução de conflitos que integrasse a heterogeneidade, mas o “pacifista” Obama ativou a semente do nacionalismo excludente no continente
Juan Laborda
Dmitri Medvedev, Barack Obama y Nicolás Sarkozi en la cumbre de la OTAN 2010 en Lisboa. “Ahora miramos con optimismo al futuro”, dijo el entonces el presidente ruso, invitado especial a la cumbre. (Foto: Pete Souza / White House)

Os tambores da guerra rufam na Europa. Líderes profundamente irresponsáveis, entre eles o nosso ministro da Defesa na Espanha, nos preparam para a guerra todos os dias, pedindo um aumento nos orçamentos de defesa da Europa. De acordo com a narrativa deles, a Rússia e Putin são o inimigo a ser combatido. Será que eles sabem que a Rússia é a maior potência nuclear do mundo e nunca pode perder em um conflito generalizado? Na melhor das hipóteses, podemos “empatar”, embora mergulhando todos nós em um inverno nuclear com centenas de milhões de mortos.

Imagino que os ardorosos políticos europeus terão seus bunkers antinucleares prontos para acompanhar os acontecimentos. E também imagino que serão seus parentes em idade militar que marcharão velozes e comprometidos para a guerra – estou sendo irônico. A guerra na Ucrânia é mais um efeito colateral da geopolítica global. Em última análise, são os ucranianos que contribuem com os mortos, em sua maioria homens, como meras peças de xadrez no tabuleiro geopolítico global. Por favor, evite insultar a inteligência acusando todos nós que queremos que não haja mais guerras de sermos pró-Putin.

A maioria dos líderes europeus simplesmente age em incompreensível subserviência ao mundo anglo-saxão, que até o momento esteve por trás da grande maioria dos conflitos bélicos desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Agora que os cálculos em torno da guerra ucraniana não estão indo de acordo com o que foi planejado, certas elites, em conjunto com os partidos europeus liberais, conservadores, social-democratas e verdes, estão dobrando a aposta, falando em rearmamento e, alguns deles, tratando sobre o envio de tropas para a Ucrânia. Em vez das partes beligerantes sentarem e não saírem das respectivas mesas até que um acordo final seja alcançado entre a Rússia e a Ucrânia, houve aqueles no Ocidente – coincidentemente Boris Johnson vem à mente – que acharam por bem empurrar a Ucrânia frente a um confronto com a Rússia – imagino que após a promessa de ajuda militar interminável – sob suposições que não estão sendo cumpridas. Putin é, sem dúvida, o principal responsável pela invasão e pela guerra na Ucrânia, mas alguns países ocidentais, liderados pelo Reino Unido e pelos EUA, têm sua parcela de responsabilidade pelo desastre ucraniano.

A Rússia não apenas não entrou em colapso econômico, mas atualmente está crescendo mais rápido do que qualquer país do G7, enquanto o centro e o norte da Europa estão em recessão. A máquina de guerra de Putin é muito bem financiada – seu banqueiro central é muito mais competente do que o nosso – e pode continuar arrastando esse conflito e até mesmo estendê-lo e ampliá-lo. O governo russo está gastando rublos para expandir os gastos públicos. Qualquer ideia de que o corte das reservas cambiais por meio de um embargo faria com que a economia russa se contraísse ou até mesmo entrasse em colapso não passava de um sonho mirabolante – uma lição importante para os formuladores de políticas econômicas ocidentais.

Quando tudo deu errado?

Mas quando tudo deu errado? Foi no final de 2008, no início da Grande Recessão. Era o momento certo. A Europa deveria ter começado a se desvincular e a reduzir sua dependência geopolítica do mundo anglo-saxão. Após a Grande Recessão, a busca por um novo equilíbrio global pós-crise exigia o fortalecimento e a intensificação das agendas e reuniões entre a Eurolândia e os países do BRICS. Em uma fase de aprofundamento da Grande Recessão, e diante da atitude defensiva e obstrucionista dos Estados Unidos e, especialmente, do Reino Unido, as reuniões de especialistas dos países do Euro-BRICS sobre questões tão diversas quanto o sistema monetário e financeiro, as relações comerciais, a energia e as matérias-primas, ou a segurança e a governança global, constituíam uma importante mudança de perspectiva em favor de uma solução cooperativa altamente prática para sair da crise em direção a um mundo melhor. Nós, europeus, com base em nosso projeto comum, com todas as suas contradições e profundas diferenças, tínhamos muito a contribuir sobre como, de um ponto de vista prático, podemos resolver conflitos de interesse integrando a heterogeneidade, especialmente diante da posição cautelosa da China.

No entanto, o “pacifista” Obama ativou a semente do nacionalismo excludente na Europa e pôs fim ao sonho de uma solução cooperativa que os presidentes Jacques Chirac, Gerard Schroeder e Angela Merkel tanto almejavam. Daquela fagulha, o incêndio atual. No final, se acabou impondo a alternativa de um conflito generalizado.

Se você quiser entender essas ideias, recomendo fortemente o livro de Franck Biancheri,The World Crisis: the Path to the World Afterwards onde ele antecipou a situação atual, incluindo a guerra da Ucrânia, em relação a outro cenário cooperativo que, infelizmente, não aconteceu. O Método de Antecipação Política desenvolvido por Biancheri e, mais tarde, após sua morte prematura, continuado por sua esposa Marie-Helene Caillol, é altamente recomendado.

Um exemplo de antecipação política está resumido no editorial do boletim mensal do think tank Laboratorio Europeo de Antecipación Política (LEAP) de 15 de junho de 2022, ” O clima, a energia, os alimentos, as finanças, os conflitos […] nos levarão, sem que percebamos, a uma profunda crise sistêmica e global […] onde, paradoxalmente, o mundo ocidental parece ser o mais vulnerável, enquanto outras partes do mundo estão assistindo ao colapso, esperando ser salvas dessa espiral infernal […] É isso que nos espera, estamos mergulhando em uma atmosfera cada vez mais medieval. Até que alguém e/ou alguma coisa consiga captar todas essas energias negativas e arrastá-las para um renascimento”.

Algumas considerações finais

A eleição presidencial dos EUA será realizada no final de 2024. Se tudo ocorrer como previsto, Trump vencerá, encerrando talvez uma das piores presidências dos EUA, a de Joe Biden. Seus principais assessores estrangeiros têm atuado como meros estagiários e, na pior das hipóteses, contra os interesses europeus. Lembre-se do “foda-se a UE” da neoconservadora Victoria Nuland, que recentemente anunciou que deixaria seu cargo atual de subsecretária de Estado para Assuntos Políticos – imagino que por causa de suas previsões “precisas”. O problema é que ela nos arrastou para um mundo multipolar. O problema é que ela arrastou nós, europeus, junto com ela. Enquanto isso, o Sul Global já está farto de nosso cinismo e de nossos ares de superioridade moral, que estão desaparecendo à medida que a realidade se impõe – o genocídio em Gaza é um exemplo. É nesse cenário sombrio que, do lado espanhol, só espero que alguns dos partidos à esquerda do PSOE ousem levantar a bandeira do “não à guerra” e fazer dela o slogan das eleições europeias.

(*) Tradução de Raul Chiliani.

El Salto El Salto é um meio de comunicação social autogerido, horizontal e associativo espanhol.

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