O ataque maciço que está ocorrendo no Líbano e que tem como alvo aparelhos eletrônicos pessoais pertencentes a membros do Hezbollah, que até o momento matou pelo menos 20 pessoas e feriu cerca de 3 mil, já não deixa dúvidas sobre o envolvimento de Israel. O ataque que começou na terça-feira (17) continuou em um segundo dia, com mais relatos de explosões de outros dispositivos de comunicação pessoal, matando pelo menos nove pessoas e ferindo dezenas de outras em um funeral na quarta-feira (18) de pessoas que haviam sido mortas no primeiro ataque, no dia anterior.
O ataque em andamento, que só pode ser descrito como de natureza terrorista, não tem precedentes em seu escopo e método, mas a sua natureza como um ataque indiscriminado está longe de ser única para Israel. De fato, a doutrina de Israel de infligir danos maciços a civis tem o nome da área de Beirute, Dahiya, onde esse mesmo tipo de ataque foi realizado. O desenvolvimento mais recente marca um avanço chocante no desprezo total de Israel pela vida humana, mas isso não é novidade, mesmo que você nunca saiba disso lendo a imprensa ocidental.
A mídia ocidental
A equipe do The New York Times, formada por Patrick Kingsley, Euan Ward, Ronen Bergman e Michael Levenson, cobriu o ataque e, embora tenha apontado Israel como responsável, trabalhou para incluir o enfoque de relações públicas de Israel, flagrantemente falso, de que se tratava de um ataque direcionado.
O Times reportou:
“De acordo com autoridades norte-americanas e outras com informações sobre o ataque, Israel escondeu material explosivo em um carregamento de pagers de fabricação taiwanesa importados para o Líbano. O material explosivo, de apenas 30 ou 60 gramas, foi inserido próximo à bateria de cada pager, disseram duas das autoridades. Os pagers, que o Hezbollah encomendou da empresa Gold Apollo, em Taiwan, foram adulterados antes de chegarem ao Líbano, de acordo com algumas das autoridades. De acordo com um oficial, Israel calculou que o risco de ferir pessoas não afiliadas ao Hezbollah era baixo, dado o tamanho do explosivo”.
O Times também escreveu que “as explosões pareciam ser a última saraivada em um conflito entre Israel e o Hezbollah, que se intensificou depois que o Hamas atacou Israel em 7 de outubro”, dando a isso uma aura de mera atividade militar, em vez de um ataque flagrantemente impreciso e mortal contra uma população civil. O denunciante americano Edward Snowden, citado no Mondoweiss recentemente, resumiu corretamente o foco e o impacto do ataque:
“O que Israel acabou de fazer é, por qualquer método, imprudente. Eles explodiram um número incontável de pessoas que estavam dirigindo (ou seja, carros fora de controle), fazendo compras (seus filhos estão no carrinho de bebê atrás dele na fila do caixa), etc. Indistinguível do terrorismo”.
O analista político sênior da AlJazeera, Marwan Bishara, ofereceu uma constatação da realidade talvez mais pertinente para o público ocidental:
“Para nossos telespectadores em todo o mundo, talvez seja útil fazer uma ‘encenação’ aqui. Imagine se 1.200 pessoas, ativas no Pentágono, no Departamento de Estado e na CIA, tivessem pagers explodindo em seus rostos, braços e abdominais. Como você acha que os EUA se sentiriam em relação a isso?”
O Times observa a “longa história de Israel no uso de tecnologia para realizar operações secretas contra o Irã e grupos apoiados pelo Irã” como se fosse uma conquista tecnológica impressionante. Mas, na realidade, para entender o que Israel está fazendo neste caso, devemos observar seu histórico de ataques indiscriminados. E isso é, de fato, não apenas historicamente relevante, mas também estratégica e geograficamente pertinente.
O caminho dos ataques indiscriminados ao genocídio
O nome da Doutrina Dahiya tem origem no bairro Dahiya, em Beirute, que Israel atacou e devastou durante a guerra de 2006, um bairro onde viviam muitas famílias ligadas ao Hezbollah. Em 2008, o então chefe militar do Comando Norte, Gadi Eisenkot (mais tarde chefe de gabinete e ministro centrista), cunhou a doutrina e delineou “o que acontecerá” com qualquer inimigo que ousar atacar Israel:
“O que aconteceu no bairro de Dahiya, em Beirute, em 2006, acontecerá em todos os vilarejos de onde Israel for alvejado… Aplicaremos força desproporcional [no vilarejo] e causaremos grandes danos e destruição. Do nosso ponto de vista, esses não são vilarejos civis, são bases militares”.
Israel já aplicou esse método em seu ataque a Gaza em 2008-9. O “Relatório Goldstone” da ONU, de 2009, concluiu que Israel havia realizado um “ataque deliberadamente desproporcional, projetado para punir, humilhar e aterrorizar uma população civil” e observou que a Doutrina Dahiya “parece ter sido exatamente o que foi colocado em prática”. Só para reiterar: “Punir, humilhar e aterrorizar”. Essa última palavra, “aterrorizar”, deve nos fazer refletir, especialmente nesse contexto específico.
O recente ataque a Gaza tem sido, de certa forma, a implementação dessa doutrina na forma de um genocídio completo. Isso não é surpreendente, já que a veia do dano deliberado a civis como uma lógica de “guerra” está no DNA dessa doutrina desde o início.
Então, agora, Israel está explodindo pagers. A perspectiva de que isso seja considerado um ato de terror pela mídia ocidental parece ser muito baixa. Isso ainda é considerado uma visão muito radical quando se trata de Israel, porque terror é um termo político reservado apenas para os inimigos do Ocidente. Para os leitores do New York Times, trata-se apenas de uma “última saraivada” e não de uma expressão da natureza de Israel em si.