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O Bund: os socialistas judeus que não amavam o sionismo

Movimento de socialistas judeus do Leste Europeu foi principal força na comunidade judaica por décadas, colaborando com a Revolução Russa e a revolta de Varsóvia
Diego Díaz
Bundistas em Nova York, em 1932.

Em 1897, nascia em Vilnius, na Lituânia, a “União Geral dos Trabalhadores Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia”. Impulsionado por jovens trabalhadores e intelectuais, o Bund era um movimento secular que lutava pela transformação do Império Russo em uma federação democrática, socialista e plurinacional. Uma república governada por trabalhadores e camponeses, na qual os judeus e os outros povos e nacionalidades do império seriam libertados de todas as formas de opressão e discriminação. Para o Bund, o fim da autocracia czarista permitiria que os judeus finalmente se tornassem cidadãos livres e iguais, mas sem abrir mão de sua especificidade, identidade e cultura.

As ideias socialistas e nacionalistas passavam por um período de expansão na Rússia de Nicolau II, e muitos trabalhadores e intelectuais judeus se sentiram interpelados por elas. Seu desejo era unir a luta pela libertação social com a luta pela libertação nacional. Eles se sentiam membros de uma classe explorada, mas também de uma minoria cultural discriminada, que falava um idioma marginalizado, o ídiche. Por isso, o Bund se auto definia como “o partido dos mais oprimidos de todos os oprimidos”. 

Com uma grande massa de trabalhadores e artesãos, os Bundistas estavam convencidos de que a criação de uma organização autônoma de trabalhadores era a maneira mais eficaz de contribuir para a disseminação do socialismo na comunidade judaica. Mais da metade da população judaica europeia vivia no Império Russo no início do século XX. Diferentemente da Europa Ocidental, onde os judeus haviam sido submetidos, com o avanço da revolução liberal, a uma eliminação progressiva das discriminações legais e sociais que favoreceram sua assimilação cultural, na Europa Oriental um antissemitismo social e institucional sufocante manteve a marginalização dos judeus em uma comunidade segregada. Progroms periódicos, linchamentos coletivos de judeus, geralmente com a cumplicidade de autoridades czaristas, eram a expressão mais radical desse antissemitismo, que levaria muitos judeus a emigrar, não para a Palestina, mas para os EUA e a América do Sul.

Relativamente isolados do resto da sociedade, os judeus orientais haviam reafirmado sua identidade coletiva, uma identidade que tinha diferentes expressões culturais além da religião. A mais importante delas era o ídiche, um idioma de origem medieval, derivado do tronco linguístico do alemão, mas com influências hebraicas e eslavas. O Bund estava empenhado em tornar o ídiche, e não a religião, o grande elemento de identificação dos judeus do Império Russo. Diante da russificação forçada que o czarismo impôs a todos os povos e da aposta sionista de recuperar o hebraico, o idioma da religião, mas sem falantes na vida cotidiana, os Bundistas defenderam o direito à educação em ídiche, bem como o uso e o cultivo desse idioma em todas as áreas da vida social. Consequentemente, sua propaganda e agitação também eram conduzidas nesse idioma popular, que eles promoviam por meio da educação não formal, da imprensa, da literatura e do teatro.

Ao contrário dos sionistas, os bundistas não defendiam a emigração para outros lugares a fim de construir um estado étnico judeu, mas sim a permanência e a luta por uma sociedade democrática, socialista e plurinacional. De acordo com essa ideia não exclusivista, eles defendiam uma política de alianças com o Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR). Os social-democratas reconheceriam o Bund como um partido autônomo dentro do POSDR, e este último colocaria sua substancial militância a serviço do incipiente socialismo russo. No entanto, essa coexistência não foi isenta de tensões e, entre 1903 e 1906, o Bund se separou do movimento social-democrata russo devido a diferenças organizacionais e estratégicas. O rompimento ocorreu em anos importantes para o Império Russo, com a revolução fracassada de 1905 e os grandes progroms que mataram mais de 2 mil membros da comunidade judaica.

Diante dos crescentes ataques às comunidades judaicas, os militantes do Bund formaram milícias armadas para se proteger. Foi nessa experiência de autodefesa que se cristalizaram algumas experiências de colaboração entre bundistas e sionistas, especialmente com a corrente sionista de esquerda que também estava começando a surgir dentro desse movimento de caráter mais conservador.

Por volta da época da revolução de 1905, o Bund atingiu seu auge, com mais de 30 mil membros. Entretanto, a ressaca da revolução também trouxe consigo o florescimento do nacionalismo no Império Russo. O sionismo expandiu-se acentuadamente, e a adoção de posições trabalhistas por alguns dos nacionalistas judeus levou o Bund a perder sua hegemonia até então incontestável entre o proletariado judeu, parte do qual, horrorizado com o antissemitismo de muitos de seus vizinhos, começou a sonhar mais com a construção de um socialismo na Palestina do que na Rússia.

O Bund acabou retornando em 1906 ao Partido Social Democrata Russo, dividido entre a corrente menchevique mais moderada de Martov e a corrente bolchevique mais radical de Lênin. Apesar da força do Bund entre os socialistas judeus, nem todos os socialistas judeus do Império Russo consideravam necessária a existência de uma organização autônoma. Dois líderes proeminentes da esquerda social-democrata, Trotsky, ucraniano, e Rosa Luxemburgo, polonesa, representavam esses outros judeus altamente assimilados que adotariam posições estritamente da classe trabalhadora, pouco interessados em questões culturais, como a preservação do ídiche.

Manifestação do Bund polonês em 1936.

O Bund e a Revolução Russa

Em 1917, o Bundismo havia perdido terreno para um sionismo em ascensão, reforçado naquele ano pela Declaração Balfour, na qual o governo britânico se comprometia com a criação de um “lar nacional judeu” após o fim da Guerra Mundial. Os bundistas, no entanto, continuaram sendo uma força a ser reconhecida no movimento trabalhista do Império Russo e participariam, juntamente com outras organizações socialistas, dos sovietes que surgiram após a revolução de fevereiro de 1917 na Rússia, na Ucrânia e em outros territórios. Apesar de sua tradicional afinidade com a facção menchevique, no decorrer da revolução uma seção do Bund se distanciou de seus líderes, partidários do Governo Provisório de Kerensky e defensores da continuação da guerra com a Alemanha e a Áustria-Hungria, e se juntou às fileiras dos bolcheviques, que defendiam “pular” etapas e radicalizar a revolução em uma direção socialista.

Lênin, historicamente contrário ao Bundismo, não permitiu que o Bund existisse como uma organização autônoma dentro do Partido Comunista, mas criou uma seção judaica para lidar com os problemas específicos dessa minoria, bem como para incentivar os judeus a se juntarem às fileiras comunistas. A violência antissemita praticada pelos exércitos contrarrevolucionários durante a sangrenta Guerra Civil que se seguiu à Revolução de Outubro de 1917 acabaria inclinando muitos membros do Bund a se juntarem ao Partido Comunista e ao Exército Vermelho, que era liderado por um bolchevique judeu, Leon Trotsky.

Após a vitória dos bolcheviques na guerra, a União Soviética combinou a repressão religiosa com o reconhecimento do ídiche e dos judeus como uma minoria cultural. Ela eliminou as discriminações legais em vigor sob o czarismo, que limitavam a capacidade dos judeus de se locomover e de exercer certos ofícios, e até patrocinou a migração, a partir de 1928, para a Região Autônoma Judaica de Birobidzhan, no Extremo Oriente, perto da fronteira com a China. O território, estabelecido como uma república em 1934, tinha o russo e o ídiche como idiomas oficiais, mas não conseguiu atrair a grande maioria dos judeus, que continuaram a viver no oeste da Rússia. No entanto, durante algum tempo, Birobidzhan tornou-se a alternativa de propaganda soviética ao sionismo, atraindo até mesmo alguns judeus dos EUA e da Palestina.

Bundistas poloneses e lituanos

O curso da Primeira Guerra Mundial e suas consequências separaram os bundistas poloneses e lituanos de seus colegas nos territórios que formariam a URSS a partir de 1922. Na Lituânia, a maioria do Bund optaria pela autodissolução do partido e se juntaria às fileiras bolcheviques locais, opondo-se à independência da República Báltica. Na Polônia, no entanto, o Bund manteve sua existência. Ele seria um aliado frequente do Partido Socialista Polonês e se sairia bem nas eleições locais, empatando em votos com os partidos sionistas nos distritos com maior população judaica.

Com a invasão nazista, o Bund juntou-se à resistência contra os ocupantes. No gueto de Varsóvia, militantes do Bund e sionistas de esquerda formaram a Organização de Combate Judaica, uma milícia alternativa à União Militar Judaica, sionista e de direita. Organizados clandestinamente, em janeiro de 1943, os vários grupos de resistência assumiram o controle do gueto de surpresa, executando os colaboracionistas e forçando os soldados alemães a se retirarem. A insurreição, apoiada com armas pela resistência polonesa, causou mais de 1 mil baixas nazistas e não pôde ser contida até meados de maio, quando o exército alemão queimou e destruiu o gueto e ordenou a deportação dos sobreviventes para o campo de extermínio de Treblinka.

Após a Segunda Guerra Mundial, muitos dos resistentes judeus que haviam sobrevivido ao nazismo optaram por emigrar para a Palestina. Alguns deles, no entanto, como o bundista Mark Edelman, um dos líderes do levante do gueto de Varsóvia, optaram por permanecer em um país que também consideravam seu e para cuja reconstrução esperavam contribuir.

Na Polônia do pós-guerra, a vida orgânica do Bund, aliado aos comunistas, durou pouco tempo, até ser completamente absorvida pelo Partido Operário Unificado Polaco, que em 1948 se tornou na prática o partido único da nova república popular.

Marek Edelman, membro do Bund e comandante da Organização de Combate Judaica.

O fim do Bund

As ideias do Bund sobreviveram por um bom tempo na América. Desde meados do século XIX, os EUA e o Canadá, bem como vários países da América Latina, receberam uma migração significativa de judeus do Império Russo. Esses imigrantes também trouxeram consigo seus ofícios, costumes, idioma e ideias políticas. O bundismo, portanto, se desenvolveria em diferentes partes da América, sobrevivendo nesse continente à sua progressiva extinção na Europa Oriental. Os bundistas na América trabalhariam para manter a cultura ídiche, organizar sindicatos de trabalhadores judeus e combater o antissemitismo em aliança com movimentos progressistas e de esquerda em seus países de acolhida.

O impacto do Holocausto e a devastação causada pela guerra mudariam tudo. Após o genocídio na Europa, muitos judeus de todo o mundo se voltariam para o sionismo e passariam a aceitar a criação de um Estado étnico na Palestina. As ideias plurinacionais do Bund estavam, portanto, em retrocesso em 1948, quando o movimento realizou seu Congresso Mundial em Nova York para discutir sua posição sobre a fundação do Estado de Israel.

O Congresso, sem atacar Israel, condenou o nacionalismo chauvinista e deplorou a criação de um Estado judeu homogêneo em vez de um único Estado binacional árabe-judeu a partir da antiga colônia britânica. Um estado democrático e secular no qual ambas as nacionalidades pudessem coexistir pacificamente. O movimento alertou contra a tendência do sionismo de “mobilizar tudo e todos somente para Israel”, bem como de “monopolizar a vida judaica”, estabelecendo uma identificação totalitária entre a identidade judaica e o sionismo. Um novo Congresso, realizado em 1955 em Montreal, exigiu o fim da discriminação contra os árabes em Israel, a interrupção da expansão territorial israelense, uma solução justa para o problema dos refugiados palestinos e a promoção do ídiche em Israel, que havia transformado o hebraico em seu idioma oficial. Era para ser o canto do cisne de um movimento que estava perdendo terreno entre as novas gerações de judeus da diáspora. Os últimos remanescentes do Bundismo se desvaneceriam nas décadas seguintes, até sua completa extinção.

(*) Tradução de Raul Chiliani

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