O comandante-geral da Polícia Militar de São Paulo, coronel Cássio Araújo, garantiu: os vários casos de assassinato ou agressões imotivadas por policiais nas últimas semanas foram “casos isolados” e “falhas pessoais”. “A minha análise é que ainda conseguimos tratar isso como casos isolados, porque a instituição jamais incentiva isso. Nenhuma dessas falhas pessoais que aconteceram, aconteceram por um ensinamento errado, por algum protocolo que foi mal entendido; muito pelo contrário. São falhas com assinatura pessoal de cada uma dessas pessoas envolvidas nestes episódios. O sistema está funcionando adequadamente”, assegurou o comandante em entrevista à CNN.
Os casos em questão são o assassinato de Gabriel Renan da Silva Soares, de 26 anos, morto por um policial em uma loja de conveniência Oxxo com múltiplos disparos pelas costas após furtar sabão lava-roupas; o de um homem jogado por policiais de uma ponte em Cidade Ademar, zona sul de São Paulo; o assassinato do estudante de medicina Marco Aurélio Cardenas Acosta, com disparo à queima roupa; o assassinato de Ryan da Silva Andrade Santos, de 4 anos, morto por um disparo de escopeta calibre 12 durante ação policial no Morro São Bento, em Santos – seu pai também havia sido assassinado em ação anterior na Baixada Santista.
Poderíamos incluir tantos outros casos com repercussão na imprensa nas últimas semanas, e tantos mais sem repercussão alguma. O leitor provavelmente terá na mente alguns quantos casos de brutalidade policial ocultos, de primeira ou segunda mão, assim como o tem o articulista. Poderia dizer que não há “casos isolados” e “falhas pessoais” onde o governador declara, frente a uma denúncia na ONU pelas ações de sua polícia: “pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, que não ‘tô nem aí’”. Ou onde o secretário de segurança é alguém que diz com orgulho ter sido desligado da Rota porque “matou muito ladrão”. É verdade que estes fatos colaboram para que as mortes por PMs tenham aumentado em 98% entre 2022 e 2024, mas faz muito tempo, e são muitos os Estados, onde os “casos isolados” de ações ilegais, violentas e/ou homicidas das polícias militares são demais para contar.
A separação entre a organização militar e seus agentes têm se popularizado no País. Foi também este o ânimo do ministro da Defesa, José Múcio, frente o indiciamento pela Polícia Federal de 25 militares por se articularem para realizar um golpe de Estado no Brasil. Destes 25, sete eram coronéis, sete eram generais, e cinco destes generais eram quatro-estrelas que tiveram, portanto, passagem pelo Alto-Comando do Exército. Além destes, também o almirante Almir Garnier, comandante da Marinha à época, foi indiciado. Ainda assim, Múcio, que deveria ser a voz do governo para os militares, fez questão de separar “CPFs” e “CNPJs”.
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O que o discurso busca, em um e outro caso, é convencer que os problemas – violência e alta letalidade em um caso, golpismo e tutela política no outro – são de todo estranhos às organizações militares. Daí se concluiria que nada haveria de mudar nas Polícias Militares ou nas Forças Armadas. Alguns erroneamente se convencem disso no caso das Forças Armadas; ninguém crê sinceramente nisso no caso das polícias: neste caso, aqueles que se opõem à mudança são simplesmente os que crêem que a polícia deve ser realmente uma fútil máquina de matar.
Os cânones dizem que as organizações militares nascem de uma espécie de pacto social em que os civis, em troca de proteção, dão aos militares o direito legítimo sobre o monopólio da força. Pode ser que isso tenha se dado em algum lugar do mundo, em alguma época histórica, mas não no Brasil. Aqui, as organizações militares – Forças Armadas e Polícias – nasceram já pervertidas pelo escravismo. Ambas tiveram em seu gérmen a função de dar sustentação a um sistema escravocrata: caçar escravos, combater quilombos, reprimir capoeiras; em resumo, defender um ordenamento contrário aos desejos e aspirações da maioria do povo. Ambas nasceram e se desenvolveram sem que a sociedade pudesse, de qualquer forma, estabelecer um debate sério sobre o que desejaria destes homens que, em tese, deveriam protegê-la: efetivamente, só se pode falar em democracia no Brasil a partir de 1945, e mesmo aqui havia e houve todo tipo de restrição, do veto ao voto do analfabeto aos golpes militares, o último dos quais fechou completamente as comportas à participação popular por 21 anos, de 1964 a 1985.
O Brasil só se estabeleceria seriamente como uma democracia liberal no pós-ditadura. Portanto, até então, não houvera pacto algum. Mas na única ocasião em que a oportunidade de discutir as organizações militares apareceu, na Constituinte de 1987, o debate foi de todo restringido pelo poder militar sainte, que impôs vetos quanto a essa questão. Um dos vetos dizia respeito à redação do artigo 142, recém evocado como sustentação jurídica de uma intentona golpista. Outro dizia respeito ao artigo 144, que estabelece as polícias como militares e forças auxiliares e de reserva do Exército; e especialmente quanto aos decretos que garantiram a subordinação efetiva das Polícias Militares ao Exército (como o Decreto-Lei 667, de 1969, que estabelecia a Inspetoria Geral das Polícias Militares como um órgão do Exército, dirigido por general, responsável pelo controle sobre as polícias). Se vê, portanto, que o presente está encharcado de passado.
Em organizações militares em que os desvios individuais se avolumam a tal ponto que a sociedade passa a desconfiar de que sejam a regra, o que se coloca em questão é a organização militar em si. Daí tanta resistência, por parte de comandantes, ministros, políticos, em reconhecer que há um problema grave de concepção, história, cultura e formação das organizações militares. Conservadoras por definição – porque o ofício policial ou militar deve exigir um ordenamento restrito e uma certa estreiteza de concepções, por razões operacionais – o perigo que não percebem é que a desculpa dos “desvios individuais” sirva apenas para que as organizações conservem a sua própria desordem, dissimulada como ordem somente pelo discurso autoindulgente. Um certo tipo de conservadorismo, motivado pelas necessidades operacionais do ofício, protege, assim, uma má operacionalidade de facto das organizações, que tem raízes mais profundas: para que e como se estruturam; com que fim operam. Raízes essas intocáveis, no entanto, pela proteção que as próprias organizações militares garantem a si mesmas na medida em que negam-se a abrir-se à discussão, limitando-se a, quando muito, descartar as maçãs feias da macieira podre.
Ao fim, o comandante assegura à sociedade que tudo está bem, para proteger a organização; mas a sociedade sequer vê esta organização como tal, e sim como um agrupamento de gangues. Entre o temor da sociedade e a reafirmação de que tudo corre bem por parte dos comandantes, o melhor que burocratas fazem é propor medidas pontuais para “evitar” ou “melhorar” tal ou qual aspecto, participando assim da farsa que reza que estruturalmente as organizações funcionam e que suas violências são falhas pontuais.
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O civil tem razão em desconfiar do mundo militar: porque o presente é só uma confirmação da acuracidade dos relatos do passado; e o passado serve de simples explicação ao presente. O militar, em resposta, estabelece suas desconfianças do civil, quando não o agride: vê sua vida como um grande parque de diversões, como demonstra recente vídeo da Marinha, quando a realidade do civil é, por exemplo, correr o risco de morrer aos quatro anos com um tiro de escopeta. O militar vê o civil como pitoresco. Mas não os vemos assim: os vemos com desassossego. Conhecemos bem a farda, ainda que à farda nossos trajes sejam de todo estranhos. Sem uma ruptura nas organizações militares, no presente, em relação ao seu passado, esse desassossego será perene.
Ou o Brasil muda suas organizações militares, ou corre o risco de deixá-las tal como estão: dispostas a matar ou mudar um Brasil que sequer conhecem.
Ou as organizações militares abrem-se às mudanças, desarmando-se de seu discurso autoprotetor e deixando as pistolas e sabres para fora das salas de reunião, ou seguirão em guerra contra o povo que juraram proteger e que supõem que deve amá-las.
Enquanto algo próximo ao tal pacto ideal dos cânones não puder se estabelecer sobre as organizações militares, o que seguirá é a conservação de organizações feitas sem o povo e voltadas contra ele. As polícias e Forças Armadas, fundadas sob impérios e reformadas sob ditadores, não entregarão coisa melhor do que precisamente aquilo a que foram destinadas por tais regimes. A macieira podre seguirá renegando algumas maçãs feias e carregando os frutos estranhos cantados por Billie Holiday: frutos de valor irrisório; frutos jogados de pontes; frutos verdes e frutos na flor da idade. Frutos dos quais escorre o sangue nas folhas e raízes.
(*) Pedro Marin é fundador e editor-chefe da Revista Opera. É editor de Opinião de Opera Mundi, autor de “Aproximações sucessivas – O Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III”, “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, e co-autor de “Carta no Coturno – a volta do Partido Fardado no Brasil”.