José Múcio é uma criatura curiosa. Sua escolha como ministro da Defesa de Lula, ainda em dezembro de 2022, foi surpreendente por uma única razão: poucos se lembravam quem era o homem que fora presidente do Tribunal de Contas (TCU) e ministro-chefe da Secretaria de Relações Institucionais durante os primeiros governos petistas quando seu nome voltou a aparecer nas manchetes. Dentre os estudiosos do tema militar a confusão não foi menor: o fato de que Múcio não tivesse nenhuma ligação com o tema da Defesa sugeria que o ministro seria, antes de tudo, um burocrata, apontado para mediar as relações da caserna com o governo em termos conservadores, preferencialmente nos bastidores.
Tendo uma longa trajetória na política pernambucana, primeiro como prefeito de Rio Formoso, depois como secretário (no Estado e na cidade do Recife), Múcio voltou ao centro da cena política nacional com a experiência ainda de cinco mandatos consecutivos como deputado federal.
Trouxe ao ministério a raposice daqueles tempos: no geral discreto, o ministro prepara suas posições públicas, testando suas teses possivelmente polêmicas com declarações pontuais, medindo a temperatura da água antes de entrar. Quando as consolida, seja por encontrar a fórmula retórica perfeita – quase sempre por intermédio do sofismo –, seja por ter sido aparentemente aceita no debate público, ele a consagra como ditado, repetindo-a incessantemente. Em resumo, a criatura Múcio, quando fala, se especializou em erguer florestas para esconder folhas.
Se esta é a postura frente aos microfones, a dinâmica é outra nos bastidores. O ministro se consagrou como uma espécie de coxim, escolhido para absorver discretamente os impactos das tensões entre o governo Lula e uma caserna que, com Bolsonaro, ganhara uma proeminência inédita na política nacional.
Recentemente, no entanto, a criatura saiu de seu habitat natural e durante 1h30 respondeu à bancada de jornalistas do Roda Viva; uma rara oportunidade de estudar o ministro. Neste pequeno bestiário, no entanto, não estarão em questão as teatralidades discursivas de Múcio – isto, todos reconhecem, ele faz bem. Tampouco se pretende esboçar um retrato psicológico do ministro. O que nos interessa é desbravar a abundante floresta em busca da folha; compreender o núcleo duro do pensamento e atuação política de Múcio em relação à Defesa e ao papel dos militares na vida nacional.
O papel do ministro da Defesa
Talvez o aspecto mais inédito da entrevista seja a sinceridade com que o ministro se apresenta como um ignorante sobre o universo em que foi posto. Múcio não só comete vários erros conceituais e factuais, como dizer que o artigo 142 preveria um “poder moderador” (tese que nunca se encontrou em Constituição alguma, e que foi iniciada pelo advogado e jornalista ultramontano Jackson de Figueiredo – não por acaso, também um jurista ultracatólico a recupera hoje –, e que tomou a forma panfletária pela pena de Eugênio Gudin); ou ainda atribuir a Mauro Cid a patente inexistente de “major-coronel”.
Múcio foi ao Roda Viva dizer a que veio: argumentando que há um “fosso” entre as Forças Armadas e o mundo civil, diz que “se eu não tivesse tido a oportunidade que o presidente me deu de conhecer as Forças Armadas, eu seria absolutamente igual a todo mundo” – isto é, ignorante quanto ao mundo militar. Ele reconhece mesmo que se surpreendeu com o convite ao Ministério da Defesa, dizendo que “nunca na sua vida” imaginou tal cargo, mesmo que tenha imaginado muitos outros. Daí se podem tirar muitas conclusões e perguntas.
A primeira, mais óbvia: no momento mais tenso das relações civis-militares desde a redemocratização, temos um ministro da Defesa, apontado por um governo em tese de esquerda, que nada sabia sobre Forças Armadas.
A segunda, mais difícil: a que serve um ministro da Defesa todo-ignorante sobre a Defesa? É possível supor que o presidente tivesse em mente a experiência e as amplas conexões políticas de Múcio, e até que levasse em conta seus laços pessoais passados. Havia, no entanto, muitos outros possíveis nomes com todos estes atributos, e que no entanto tinham experiência com o mundo militar. É lícito imaginar, então, que fosse justamente a ignorância do atual ministro o atributo buscado por Lula; uma forma de distensionar as relações com as Forças Armadas por intermédio de um político reconhecido nem como um inimigo da caserna, nem como um amigo; um ignorante. Mas suscita-se, então, outra pergunta: por que as Forças Armadas tornaram-se tão ciosas deste ministro absolutamente ignorante, a ponto de exercerem pressão para sua manutenção no cargo? Há de se considerar a hipótese de que seja, igualmente, justamente por essa ignorância.
Múcio admite que não sabia nada sobre Forças Armadas, não que não sabe – mesmo que não conheça as patentes e os artigos constitucionais ainda hoje. Seguindo sua lógica, temos de supor que Múcio pensa que hoje sabe sobre Forças Armadas. Devemos, ainda por indução lógica, concluir que tudo o que o ministro sabe ou acha que sabe sobre o tema decorre dos últimos dois anos em que esteve à frente do Ministério da Defesa, em convívio estreito com os militares, e neste período particular (ou não tão particular assim) da República. Em resumo, de um ministro de que se esperaria um conhecimento amplo e aprofundado do tema, o presidente optou por um receptáculo vazio, e os militares gostaram tanto da criatura que, uma vez no cargo, ajudaram a formar, que passaram a defendê-la, fazendo ameaças, pela imprensa, dirigidas ao presidente.
Tudo isso poderia ser só teoria, florestas mais frondosas que o articulista ergue na sua busca pela folha, não fosse o fato de que o próprio Múcio admite estes fatos, ainda que lateralmente. Comentando a crise com o comandante da Marinha, Almirante Olsen, após o vídeo em que a força faz provocações ao Executivo no tocante aos privilégios previdenciários dos militares, Múcio afirma que nunca considerou demitir o comandante da Marinha: “Não seria sensato. Primeiro, ele é um homem competente. Aquele vídeo foi absolutamente… foi uma imprudência, foi inoportuno, foi num momento péssimo. Está aí a explicação pela qual o ministro da Defesa tem que ser um político, para fazer, vamos dizer assim, o meio de campo entre as Forças e o Executivo, porque não é a expertise deles fazerem política, e todas as vezes que eles começam a querer fazer política, acontece isso.” Mais à frente, o ministro deixa claro que tipo de relação estabelece entre militares “fazendo política” e o “meio de campo”: “Toda vez que militares querem fazer política [como Olsen com o vídeo], é ruim, pra isso tem que ter o ministro da Defesa, para fazer o meio de campo”.
Em resumo, o ministro considera que Olsen buscou fazer política por intermédio de um vídeo promocional da Marinha – isto é, com recursos públicos – e não achou prudente demiti-lo. Mais: considera que o seu papel é o de fazer o “meio de campo” para que os militares possam fazer, por seu intermédio, a política, digamos, “do jeito certo”, com “expertise”. Convém reconhecer: o desconhecimento do ministro sobre o tema e o abrupto conhecimento adquirido em dois anos de convívio com as fardas fez Múcio supor que seu papel como ministro é o de fazer política, em nome das Forças Armadas, junto ao governo; não de, em nome do governo, determinar a política das Forças.
Na realidade, é ainda mais grave, porque o ministro diz mesmo que essa sua disfunção funcional foi ordenada pelo presidente Lula: “[Quando falei com Olsen], eu cheguei a dizer a ele: ‘olha, quando o presidente me trouxe para aqui, eu não queria vir. Mas ele disse que precisava de uma pessoa para fazer o meio de campo entre vocês. Fazer a política das Forças e do Governo”.
Múcio revela mais ainda ao tratar da crise com a Marinha: diz que o presidente o chamou, “profundamente contrariado”, e perguntou como ele resolveria a questão. “Precisa mostrar a autoridade da Defesa”, teria dito Lula, ao que respondeu Múcio: “Olha, presidente, o mais simples para o senhor, do que mexer num comandante a essa altura, é o senhor tirar o ministro da Defesa. Não lhe traz prejuízo nenhum, nenhum. Sou seu amigo, não há prejuízo político, a sugestão está sendo dada por mim”. Dois dias depois, segundo o ministro, ele recebeu uma ligação do presidente: “‘Múcio, aquela nossa conversa… O momento é difícil, estou precisando de você, não vamos pensar nisso… Como vamos consertar?’ E eu disse, ‘ó, presidente, vou levar o Olsen para conversar com você’. […] E Olsen foi, disse a ele que o vídeo foi inoportuno, que foi muito bem recebido nas Forças, que ele tinha atingido o objetivo dele, mas evidentemente o que sobrou para o resto não foi uma coisa boa”.
Quando dissemos, em artigos anteriores, que o ministro, “desejoso de ser parte das Forças Armadas, parece confundir que sua missão é de ministro do governo para a Defesa, não de ministro das Forças Armadas para o governo”, e o classificamos como “lobista militar frente ao próprio governo” e “relações públicas dos fardados frente às câmeras”, não parece que íamos muito longe do retrato que o próprio ministro faz de si: afinal, na sua posição como meio-campista, o trabalho de Múcio é ser o substituto para vídeos produzidos pela Marinha que, além de detratar os civis, buscam pressionar o chefe do Executivo a quem, em tese, os militares e Múcio devem obediência – nas palavras do próprio ministro, “fazer política”. E esta posição é tão valorosa para os militares que – não deixemos de observar – o ministro põe seu cargo à disposição antes de demitir um comandante que faz política; e tal ação é tão eficaz, ao fim, junto ao Executivo, que – também não deixemos passar batido –, dois dias depois o presidente lhe chama para pedir que fique. Para ficar no tema da Marinha, Múcio parece ter se tornado, com toda sua ignorância, uma boa âncora para os militares – um apetrecho que mantém as coisas imóveis e que, pelo próprio peso, não pode ser retirado com facilidade. Conviria também adicionar a metáfora jornalística: é também um bom âncora quando se tratam das reivindicações fardadas.
Esse papel, agora reconhecido por Múcio, já havia aparecido nos últimos meses, com as notícias de que o ministro poderia deixar o governo: Múcio pede para sair; os militares, pelos cotovelos, ameaçam que as relações com o governo, caso isso ocorra, retrocederão; Lula pede para que Múcio fique. Múcio fica, do ponto de vista de Lula, para tranquilizar os militares; os militares se tranquilizam, porque têm no ministro da Defesa uma extensão de suas gargantas, se não de suas cabeças; Múcio tranquiliza os militares, mas também pressiona o governo com suas reivindicações, e a República com seus pronunciamentos – sempre seguindo o script: pequenas doses de sofisma, até que o argumento esteja bem acabado.
Sendo assim, do ponto de vista da política de defesa, o País fica em suspenso: não tem um ministro da Defesa, porque este é um representante das Forças Armadas junto ao governo, não um comandante dos comandantes; não tem Forças Armadas, porque estas não aceitam se submeter ao governo, representante legítimo do povo, a não ser que por meio de um ministro reconhecido como legítimo representante da caserna; e não tem um presidente, porque este não exerce sua função de direção na medida em que aceita as Forças Armadas como uma instituição com legitimidade em si e, portanto, com legitimidade para no mínimo influenciar as decisões que, numa democracia, só caberiam ao governo – incluindo a livre escolha do ministro da Defesa.
O 8 de janeiro e as punições para os golpistas
É no tocante ao 8 de janeiro, no entanto, que as declarações do ministro são mais graves. Embora aqui não haja muitas novidades – Múcio repetiu os sofismas que exercitou nos últimos dois anos –, o que chama a atenção é que, desta vez, falando longamente e de improviso, além de se contradizer várias vezes, chegou mesmo a defender a anistia para os golpistas do 8 de janeiro.
Perguntado sobre quão importante seria uma anistia para pacificar o País, Múcio responde: “eu acho que na hora que você solta um inocente ou uma pessoa que não teve um envolvimento muito grande, é uma forma de você pacificar. Esse País precisa ser pacificado. Ninguém aguenta mais esse radicalismo, a gente vive atrás de culpados, nós estamos precisando procurar quem resolva os problemas, quem ajude a resolver os problemas”. É o próprio ministro quem reconhece, nesta mesma entrevista, que a manutenção dos acampamentos golpistas em frente aos quartéis foi uma iniciativa militar – de fato, não faria sentido negá-lo, tendo em vista que os comandantes das Três Forças emitiram um pronunciamento neste sentido ainda em novembro de 2022, no qual não deixavam de reivindicar o papel de “moderadoras” para as Forças Armadas. Segundo Múcio, “quem estava [acampado nos quartéis]? Tem muito militar? Em Brasília tinha, muita família de militar. Quem eram os militares? Você tinha dois tipos: os legalistas e os que estavam indignados com o resultado da eleição. Mas que iam trabalhar, deixavam suas famílias lá, ninguém mexia, não havia nenhuma provocação, e era uma forma de legalistas e contrariados, vamos dizer assim, terem um bom convívio.”
Para defender a anistia, uma posição encampada pela oposição ao governo que em tese representa – um governo que foi empossado sob os gritos de “sem anistia” –, Múcio separa os golpistas entre “inocentes”, “pessoas que não tiveram um envolvimento muito grande” e aqueles que são realmente culpados. Mesmo que tais definições não caibam ao ministro, e sim aos tribunais – embora Múcio diga, sem corar, que a anistia é uma decisão que cabe ao Congresso! – o que nos interessa é saber, na classificação de Múcio entre “inocentes”, “levemente envolvidos” e “culpados”, qual papel o ministro atribui às Forças Armadas. Diz o ministro: “[no 8 de janeiro] os civis foram, os militares não; não havia, e as Três Forças não tinham nada a ver com isso”. Em outro trecho, diz que “na realidade, nós devemos a eles [os militares] não ter havido golpe do dia 8”.
Recapitulemos: o ministro diz que é necessário procurar quem “resolva os problemas”. É de se supor que a invasão e quebra das sedes dos Três Poderes seja um problema. O ministro reconhece que a manutenção dos acampamentos golpistas, base a partir da qual o problema da invasão e quebra das sedes foi lançado, foi uma forma de “manter o convívio” entre militares “legalistas” e “indignados” (como se fosse lícito que membros ativos das Forças se mantivessem “indignados” com resultados eleitorais). E, no entanto, diz que as Forças Armadas “não tinham nada a ver com isso” e que, “na realidade, devemos a eles não ter havido golpe”.
É de se supor que, para um legalista, a manutenção de acampamentos que não reconhecem os resultados eleitorais e pedem, de frente aos quartéis, por uma intervenção militar, sejam de todo ilegítimos e ilegais. No entanto, as Forças Armadas, como instituições e, como já notei, como classe militar (na medida em que as Três se pronunciarem conjuntamente), acabaram por defender não a posição dos legalistas, mas a dos “indignados”. Isto é: no espírito do “bom convívio”, na perspectiva de manter a coesão entre golpistas e legalistas dentro das Forças, o resultado concreto foi a defesa da posição dos golpistas, ao menos no que tange aos acampamentos. De alguma forma, o ministro conclui, no entanto, que o fato de não ter havido golpe no 8 de janeiro é algo “devido aos militares”, ao passo que exime as Forças Armadas como um todo (“não tinham nada a ver com isso”) pela intentona do 8 de janeiro.
Múcio é uma criatura ciosa das separações conceituais. Separa “CPFs” (militares individuais) e “CNPJ” (Forças Armadas). Separa “legalistas” e “indignados”. Separa “inocentes”, “pessoas com envolvimento leve” e “culpados”. Em meio a tantas cisões, parece ignorar que as Forças Armadas falaram como instituições e classe quando defenderam os acampamentos; e que esta posição, ao fim e ao cabo, não foi uma média ponderada entre o “legalismo” e o “golpismo” (coisa que tampouco poderia ser aceita), mas sim a defesa intransigente, belicosa e ameaçadora de uma situação de fato ilegal: a manutenção dos acampamentos. Mesmo com tantas separações, ao fim a balança pende para um lado; e o ministro, ao invés de buscar “soluções”, busca dar desculpas, envolvendo o País no seu labirinto sofístico: como ao fim não houve golpe, devemos agradecer aos militares, tal qual um estúpido, chegando seguro em casa, agradeceria a assaltantes que não o mataram no trajeto.
A Múcio o que interessa é repetir que, ao fim, não houve golpe. Deveria interessar ao ministro, que procura tanto quem “resolva os problemas”, questionar se o problema específico do dia 8 de janeiro não teria sido evitado se as Forças Armadas – compostas por legalistas e indignados –, e ele mesmo, não tivessem defendido a manutenção dos acampamentos. Que bem faria ao ministro, procurando quem “resolva os problemas”, olhar no espelho e avaliar se sua atuação vai neste sentido; se o exame fosse sóbrio, não restaria dúvidas de que, muito além da esfera penal e da punição, são nas esferas da política e da reforma que algo haveria de mudar nas Forças Armadas.
Ocorre que esta posição de fato golpista não foi manifestada pelas Forças somente antes da invasão e da quebradeira; foi ampliada depois, o que Múcio reconhece. Quando confrontado com o fato de que o Exército impediu a entrada da polícia no Quartel General em Brasília, para prender os manifestantes que ali se encontravam, diz Múcio: “Foi todo mundo preso… Eu estava lá. Não permitiram que a Polícia Federal entrasse na casa deles, na casa deles, do Exército. Eles também tem… Olhe, vêm na minha casa… Quem está aqui vocês vêm buscar amanhã às 6h da manhã […] Tinha gente ali que estava passeando, dando adeus, tirando foto com o celular na hora de se despedir, às 6h da manhã. […] Ali tinha gente de todo tipo, tinha os inocentes, tinha os baderneiros, tinha os baderneiros profissionais que foram só para quebrar. Mas quebrar derrubava o governo? Quebrar? Havia algum movimento? Se você dissesse: ‘aquele movimento veio na frente, e os militares vieram atrás’, eu tô calado…”.
Nas concepções jurídicas muito próprias do ministro – que inclui culpados, meio culpados, culpados inteiros, baderneiros, baderneiros profissionais, profissionais baderneiros, indignados legalistas e legalistas indignados. –, Múcio parece admitir que haja espaços no País em que a lei nacional simplesmente não tem aplicação. Não basta recordar que se este articulista abrigasse um homicida em fuga na sua casa, se tornaria um cúmplice; convém lembrar ademais que a “casa” que Múcio atribui ao Exército pertence à Nação e a seu povo – é este quem paga as contas, aliás – e, como tal, não poderia servir nem de refúgio e fortaleza a criminosos, nem de acampamento de golpistas, ainda que estes sejam parentes de militares “indignados”. A “casa” das Forças Armadas serviu de abrigo aos golpistas antes e depois de seus crimes; mas Múcio, mais do que fazer supor que não há nada demais nisso, diz que devemos agradecer a essas mesmas Forças pelo fato de não ter havido golpe!
Aqui está o estratagema sofístico do ministro: para que ele não tenha que “encontrar soluções” e propor mudanças nas Forças Armadas, encobre o crime menor com a inexistência de um crime maior. Há os “culpados” e os “muito culpados”, afinal; há a ilegal defesa dos acampamentos e, depois, a proteção aos criminosos. Mas, como os militares, manu militari, não efetivaram o golpe, ele conclui: as Forças “não tinham nada a ver com isso” e, “na realidade, nós devemos a eles não ter havido golpe do dia 8”, ainda que o PGR Paulo Gonet ao fim tenha denunciado pelas tramas golpistas na última terça-feira (18), de 34 pessoas, 23 militares, dentre os quais seis generais, um almirante (comandante da Marinha Almir Garnier) e cinco coronéis.
O golpe de 64
Embora frequentes, as alusões de José Múcio ao golpe de 1964 são sempre pontuais e laterais. O ministro reforça a ideia de 1964 como paradigma do golpismo militar no Brasil, o que ignora ao menos 14 tentativas golpistas desde 1889, das quais quatro foram vencedoras. Semear a ignorância quanto à longa trajetória do golpismo-militar na história brasileira, no entanto, é somente um efeito menor das referências do ministro a 1964.
O que verdadeiramente interessa é o paralelo que o ministro estabelece entre o golpismo passado e o golpismo presente. “Tudo bem que nós façamos as correções necessárias ao passado, mas a gente precisa olhar para a frente, precisa tocar as coisas”, diz o ministro, se referindo não a 1964, mas ao 8 de janeiro. Vem então a referência a 1964: “Quando houve o golpe de 64, esses militares, os comandantes, tinham 3, 4, 5 anos. A gente vai ficar nisso? Até quando a gente vai ficar nisso? Eu acho que nós temos casos que precisamos rever, para pacificarmos esse país, mas nós só pacificaremos o país quando nós colocarmos de lado esse revanchismo político, esse ódio que a gente tem…”.
É notável que a posição do ministro quanto a 1964 seja, ao mesmo tempo, uma inversão e uma alusão à posição de Lula no aniversário de 60 anos do golpe. Neste caso, o presidente declarou: “Eu estou mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 64. Eu tinha 17 anos de idade, estava dentro da metalúrgica Independência quando aconteceu o golpe de 64. Isso já faz parte da história. Já causou o sofrimento que causou. […] Os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo. Alguns acho que não tinham nem nascido ainda naquele tempo. […] O que eu não posso é não saber tocar a história para frente, ficar remoendo sempre, remoendo sempre […] eu não vou ficar remoendo e vou tentar tocar esse país para a frente”.
É chamativo ainda que, fundamentalmente idênticas, as elucubrações de Lula e Múcio tenham espíritos tão contrários. Para Lula, o que importava era o golpe de 8 de janeiro – “Em nenhum momento da história os militares foram punidos como estão sendo punidos agora. […] Quando o cidadão lá pede anistia, ele tá dizendo: ‘Não, perdoe os golpistas’. Tá confessando o crime.”, disse o presidente. Para Múcio, no entanto, a memória sobre 1964 e a denúncia do 8 de janeiro são partes de um mesmo todo; seriam ambas uma insistência no tema do golpismo, um revanchismo, um ódio que impede que o País seja pacificado hoje. Mais uma vez, o crime maior – 1964 – é tomado como referência para esconder o crime menor – 8 de janeiro. Para ambos os casos, a anistia seria a pacificação, no lugar do revanchismo – uma palavra reveladora, tendo em vista que sempre foi usada pelos grupos de extrema direita militar para se contrapor a tentativas de passar 1964 a limpo; foi o caso, por exemplo, com a Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Por fim, chama a atenção que, em um e no outro caso, se faça presente a referência à idade dos atuais generais no momento do golpe de 1964. No afã de “deixar a história para trás” (no caso de Lula, a de 1964; no caso de Múcio, também a de 2023) e “superar o revanchismo”, tanto o ministro quanto o presidente fazem parecer que as Forças Armadas não são organizações que promovem, avaliam e refazem uma certa leitura sobre o passado a partir da qual decorre sua posição presente, leitura que buscam tornar hegemônica nos dias de hoje, intra e extramuros. Ao fim, querem fazer parecer que não se trata de uma organização centenária, mas sim de um grupamento qualquer de indivíduos sem ligação uns com os outros, sem história comum.
Se 1964 é um problema do passado, no entanto, por que o ministro teve de atuar para que não houvesse comemorações do golpe nos quartéis? Não parece que a insistência em silenciar sobre o passado, sob a desculpa de que “faz muito tempo”, ignora justamente que, até recentemente, os militares faziam questão de falar abertamente sobre o tema, tendo-o como uma importante referência histórica, portanto formadora e constituidora também das novas gerações de militares?
Mais: se o tema é a idade que os comandantes e militares tinham em 1964, convém perguntar: que idade tinham quando vieram Bolsonaro lançar sua campanha junto aos cadetes da AMAN, dentro da instituição? Daqui a trinta anos, em que patente estes cadetes se encontrarão? Quantos terão comando? Que idade tinha o atual comandante do Exército então, quando chefiava esta mesma instituição em que Bolsonaro foi fazer política? Quantos anos tinha Tomás Paiva quando, atuando como braço direito de Villas Bôas, participou da escrita do infame tuíte do então comandante na véspera do julgamento de habeas corpus de Lula? Quantos anos tinha o atual comandante quando assinou documento dizendo que as ameaças golpistas do então general da ativa Hamilton Mourão durante evento em uma loja maçônica em Brasília “em nenhum momento destoaram do posicionamento institucional do Exército”? Ora, o general Tomás não estava a dias de se tornar comandante do Exército quando, em reunião privada, deixou claro que seu objetivo à frente da força seria impedir reformas nas Forças Armadas? E se o passado não importa, por que a insistência do almirante da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, em impedir que João Cândido, o almirante negro, tenha seu lugar merecido como Herói da Pátria? Cabe ressaltar, aliás, que Olsen, ao contrário de Lula e Múcio, não é do tipo que faz separações duras entre passado e presente. Afinal, escreveu que uma homenagem a João Cândido “seria o mesmo que transmitir à sociedade e, em particular, aos militares de hoje a mensagem de que é lícito recorrer às armas que lhes foram confiadas para reivindicar suposto direito individual ou de classe”. Para Múcio e Lula, 1964 teria ficado “para a História”; para Olsen, 1910 ainda diz muito sobre os dias de hoje.
Mudanças nas Forças Armadas
É no que diz respeito às mudanças nas Forças Armadas que talvez encontremos o núcleo da ação do ministro. Se nos temas anteriores Múcio se restringe a proteger as Forças Armadas delas mesmas, com a manobra retórica de que seus crimes foram pequenos em relação aos crimes possíveis, é neste tema que o ministro faz avançar suas reivindicações.
Questionado sobre a proposta de mudanças no artigo 142 da Constituição, que trata das Forças Armadas, Múcio da uma resposta curiosa: “O problema é que tudo que se refere a militar, é tentativa de golpe. O pessoal fala ‘vamos colocar GLO’, nunca houve ameaça de golpe com GLO, sabe por quê? Golpista não precisa de Constituição, de regra, de manual; não tem livro do golpista.” Aqui se revela mais uma vez sua mania de tomar a exceção máxima como medida de normalidade: já que as Forças Armadas podem, em última instância, bombardear o Palácio do Planalto, deve-se tomar como normal tudo o que não seja a última instância, ignorando que cada passo na escada da exceção corresponde a um ganho político também excepcional para as Forças, mesmo que isso não se traduza num golpe. O ministro ignora que a situação da normalidade é, por definição, o cenário em que Lei e Ordem estão garantidas, e vice-versa. Daí resulta que, quando convocado a garanti-las – porque não estão garantidas, afinal – o garantidor fique numa situação de facto excepcional, da qual decorre um poder político que também há de ser excepcional. É dizer: mesmo que a GLO não implique num golpe, implica num ganho de poder político às Forças Armadas, que passam às mesas de negociação não mais como forças de reserva em relação à Lei e à Ordem, mas sim como suas garantidoras de facto. Se GLOs fossem coisas normais, não se chamariam “Garantia da Lei e da Ordem”; porque o normal é que estas estejam garantidas.
Ocorre, no entanto, que mesmo para o golpe concorrem as dimensões da legalidade e da legitimidade. Será difícil a qualquer historiador encontrar em tempos passados algum golpe que não tenha buscado se legitimar pela lei. Mesmo o golpe de 1964 o buscou, não só pela declaração de vacância da Presidência do Brasil pelo Congresso Nacional, mas mesmo nas suas medidas mais excepcionais: o AI-1 decretava que “a revolução vitoriosa, [….] forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte [….] como Poder Constituinte, se legitima por si mesma”, num ato em si excepcional; mas o fazia, afinal, por um instrumento jurídico, que em si legitimava a exceção do qual decorria. Lei e força não são contrários; são dependentes. De tal forma que a recente denúncia do PGR Paulo Gonet sobre os golpistas serve, mesmo, para desmentir a interpretação de Múcio: segundo a denúncia, a decretação de um Estado de Defesa e de uma Garantia da Lei e da Ordem por parte de Bolsonaro seria um passo fundamental na intentona golpista, inclusive reivindicado por parte dos comandantes como critério para que pudessem efetivar o golpe.
Múcio prossegue: “Esse 142 fala de poder moderador das Forças Armadas, não é? Eu quando converso com os comandantes, digo que nós temos que nos debruçar muito sobre as coisas que são inevitáveis e que haverão de vir um dia. Então eu acho que a gente tem margem para conversar; sem açodamento, sem viés eleitoral, sem viés partidário, tirando dessa polarização.” É chamativo que, mesmo trabalhando com o cenário irreal e sinistro em que o artigo 142 trate de um “poder moderador” para as Forças Armadas, Múcio considere fundamental “conversar sem açodamento, sem viés eleitoral, sem viés partidário”.
Mas Múcio não se contém aí no que tange à GLO. Diz que as Forças Armadas “poderiam ajudar muito mais, muito mais. Poderia ajudar, quando foi pro Rio [sob GLO], deu certo; aprenderam 280 toneladas de cocaína nos portos e aeroportos de Rio e São Paulo.” Ou seja, a GLO há de ser defendida para que as Forças Armadas “ajudem muito mais”, tornando-se, assim, forças policiais de exceção. Prossegue, no entanto: “Aí as Forças Armadas vão embora, você acha que os traficantes param? Continuam! Toda a droga da América do Sul passa por aqui.” Ou seja, mais do que tornar as Forças Armadas forças policiais de exceção, o ministro parece sugerir que sejam tornadas forças policiais permanentes de exceção, já que, quando vão embora, os traficantes não param. “Acho que poderia ser usado mais pra isso, poderia ajudar mais, era uma forma da sociedade compreender o papel das Forças, que elas estão aí para zelar pela sociedade, zelar pelo País, para ajudar a construir esse País que nós conhecemos.” Ainda mais, a conversão das Forças Armadas em forças policiais permanentes de exceção teriam o dote de fazer a sociedade “compreender o papel das Forças”. Isto é; a completa subversão do papel das Forças seria capaz de fazer a sociedade melhor compreender o seu papel. É realmente revelador.
Mas o ministro há de avançar ainda mais neste terreno. Perguntado sobre a questão da responsabilização judicial em caso de mortes durante GLOs – se os militares devem ser julgados na Justiça Militar ou na Justiça Civil neste cenário – o ministro dispara: “Olha, quando você vai para uma guerra, não se faz a relação de quem você matou. Eles estão ali para defender o País. Quando vocês botam ele para a rua, ele precisa de garantias, porque quando um bandido lhe mata, ele não responde processo; quando você mata o bandido, responde o processo.” No intricado sofisma, se antes Múcio tentava normalizar a GLO, agora fala em “guerra”. Revela que, uma vez em guerra, o militar precisa de garantias excepcionais – antes, não havia nada de excepcional nem mesmo na GLO. Chega ao absurdo de dizer que um bandido que mate um militar “não responde processo” (talvez não mesmo; é provável tenha um certo julgamento sumário muito comum no Brasil mesmo para quem não é bandido). “O que eles querem é a proteção que ele tem como militar; para que tenha as mesmas proteções que ele tem no quartel, exercendo as funções para as quais foram constituídos pela Constituição brasileira”. Isto é, no cenário excepcional em que o militar atua como polícia de exceção permanente, o militar precisa de garantias excepcionais, típicas de quem está no quartel – e, no entanto, não há nada de excepcional na GLO. É curioso, por fim, que o ministro fale em “proteções”. Seria lícito, embora ingênuo, imaginar que a reinvindicação de que o militar fosse julgado pela Justiça Militar mesmo em casos de crimes contra civis se tratasse de “justiça”, de “direito” ou até de “defesa”. Mas, revelando muito, Múcio diz que se trata de “proteção”. Seria interessante conhecer o que o Superior Tribunal Militar (STM) pensa de tal definição.
O tema do “revanchismo” por fim volta quando questionado sobre a Previdência dos militares. “Eu sou a favor de mexer [na Previdência], mas isso tem que ser uma coisa conversada… Porque tudo soa nos quartéis como um gesto de revanchismo, um gesto de ‘chega pra lá’, um gesto de afastar o militar da sociedade. Eu acho que essas coisas precisam ser muito discutidas, mas com calma.” Que os quartéis vejam a discussão de seu sistema previdenciário como um gesto de revanchismo é revelador, na verdade, de como veem sua posição em relação à sociedade: são servidores ou reis? Que o ministro diga com tanta naturalidade que “tudo soa nos quartéis” como revanchismo revela que ele não saberia responder.
É certo que o ofício militar impõe determinadas excepcionalidades quando se trata de proteção social: o ofício militar, afinal, supõe a morte em trabalho não como um desvio possível, uma falha trágica, como é o caso do trabalho do civil, mas como um dos meios possíveis para a realização do próprio ofício. O que convém inquirir é se, num País relativamente estável do ponto de vista da guerra, e que tem longa tradição diplomática associada à paz, faz sentido manter um tal nível de diferenciação entre a previdência militar e a civil que se traduza num déficit per capita 16 vezes maior dos fardados do que o do INSS. Faria sentido ao militar que eventualmente vê revanchismo em tal proposta, ou vê nela uma medida para afastá-lo da sociedade, refletir sobre se diferenciação da previdência militar não é um dos fatores, justamente, a afastá-lo do civil. É verdade, como Múcio disse em outros trechos, que há um “fosso” entre o militar e o civil; e tal fosso em nada contribui para o País, nem para o civil. Mas há de se reconhecer que, em muitos aspectos, contribui para o militar, ao menos no que tange à sua posição social.
O militar vive uma terrível solidão: vive e reproduz-se entre os seus, e os raros contatos que tem com o mundo civil – ao menos quando o contato é motivado pelo tema da Defesa – são no geral com uma parcela bastante restrita desse mundo. Ele, no entanto, procura neste civil, que é no geral também parte de uma casta, a medida do mundo que não conhece, e a partir dela busca estabelecer a medida do que é justo para o seu próprio mundo; é inevitável que chegue à conclusão de que o civil é inepto, mesquinho e bajulador, e que busque para si, que vê em tons tão melhores, também a posição de casta. A gigantesca maioria dos civis, no entanto, não é nem inepta, nem bajuladora, nem mesquinha, nem membro de castas; o retrato militar do civil é que está distorcido pela sua própria posição. O caso do vídeo da Marinha, que tratava, afinal, do ajuste do governo para a previdência militar, é demonstrativo da distorção: ao contrário do que muitos consideraram, aquele mundo civil projetado pela Força não é um mundo de fantasia – só é um mundo real restrito a pouquíssimos civis. São estes pouquíssimos, no entanto, os conhecidos do militar, ao menos no alto-oficialato. Fará bem ao militar indagar se, medindo-se pelas castas, rejeitando uma posição mais equânime em relação às maiorias do mundo civil, ele não estará, ao fim e ao cabo, contratando uma guerra com estas maiorias, em perfeito alinhamento com a casta de bajuladores que ele tanto rejeita.
O parlamentarismo
A resposta de José Múcio em relação ao parlamentarismo, tema que tem ganhado proeminência no Congresso, embora completamente desconexo do restante dos tópicos deste texto, merece comentários. O chamativo na posição do ministro não é que defenda tão abertamente uma posição contrária à de seu governo, mas sim por meio de quais argumentos o faz: “A gente fica sempre com essa preocupação, troca presidente, troca presidente, eu acho que a gente precisava dar serenidade, ter um gestor; a Margaret Thatcher foi primeira-ministra de quantos governos, né? [Konrad] Adenauer, de quantos governos? Eu acho que o parlamentarismo seria uma boa experiência para o Brasil. […] Nossos problemas são as profundas diferenças, sociais, culturais. O voto é muito justo quando nivela quem tem com quem não tem, mas é profundamente injusto quando nivela o bem informado com o mau informado, o honesto com o desonesto; nos iguala em todos os patamares.”
Embora cite o peso gigantesco conquistado pelo Congresso na política nacional a partir das emendas “sem responsabilidade”, que confronta um Executivo “com responsabilidade demais e poder de menos”, o fundamental para Múcio não parece estar aí, mas sim da necessidade de uma certa estabilidade (“serenidade”), que só poderia ser estabelecida de forma mais ou menos censitária, já que o voto seria injusto ao nivelar “o bem informado com o mau informado, o honesto com o desonesto”. No fundo, o ministro parece reivindicar uma democracia de esclarecidos – que se concentrariam, certamente, no Congresso, responsável pela eleição do primeiro-ministro –, e cujo fim é criar estabilidade (para quem?), não produzir, justamente, uma menor diferença social e mediar a diferença cultural. É uma raridade que algum defensor do parlamentarismo ou do semipresidencialismo exponha tão abertamente seus fins.
A natureza da criatura
Convém, enfim, encarar a criatura; o que é José Múcio?
Nas suas revelações, um ignorante do tema militar; nos seus gestos e retórica, um político astuto e bem experimentado; na sua relação com o presidente, um confidente. Mas e a criatura-ministro?
A razão de ser da criatura não é aprimorar a Defesa do País – ele, afinal, é um ignorante no tema –, nem formular melhoramentos e reformas para as Forças Armadas – afinal, todas as suas propostas vão no sentido simplesmente de aumentar sua presença na sociedade, tal como são, de forma excepcional –, nem mesmo a de ser a voz do governo para as Forças – ele reconhece, afinal, que é melhor demitir-se (perder sua voz) do que demitir um comandante que reivindicou espaço de voz onde não lhe cabe, buscando, como ele reconhece, “fazer política pelos meios errados”.
A razão de ser da criatura é tão somente manter estável a situação em que, por meio do medo, as reivindicações militares avançam; suas ameaças não podem ser quebradas; e o governo, buscando a própria estabilidade, concede o comando das Forças Armadas às próprias Forças Armadas.
A fórmula do “meio de campo”, que o próprio ministro reivindica não só como seu papel, mas também como a missão dada pelo presidente, já seria, em si, problemática, no que reconhece que o tensionamento entre as Forças Armadas e o governo é uma forma legítima de reivindicação dos militares.
Um ministro da Defesa não serve para fazer “meio de campo”; serve, como já escrito, para ser a voz de comando do presidente frente às Forças. Uma vez que Múcio assim se reconhece e descreve, dá legitimidade à tutela, que nada mais é, justamente, que o uso excepcional das Forças como organizações Armadas para fazer reivindicações frente ao governo.
Uma vez que dá legitimidade à tutela, o ministro não pode ser comandante, é certo; mas, acima de tudo, não pode sequer ser meio-campista, já que sua posição já decorre de uma situação, mais do que ilegítima, desequilibrada: o ministro o é pela legitimidade de um Poder irreconhecido pela Força com a qual ele busca fazer mediações. Isso significa dizer, em outras palavras, que quase como num passe de mágica, o ministro, querendo ser meio-campista, acaba por reconhecer sua legitimidade não a partir do governo que deveria representar, mas das Forças que, em última instância, poderiam derrubá-lo, obliterando assim toda legitimidade; por isso acaba por representar as Forças, e não o governo.
O “em última instância” tem especial importância precisamente porque o estratagema retórico preferido do ministro é estabelecer essa medida como régua, abaixo da qual toda ação ilegítima das Forças se legitima. É quase como se aceitasse: enquanto não houver ação oblitiva das Forças Armadas, poderei ser ministro. O ministro não o é, portanto, pelos votos que elegeram o presidente que o apontou; o é pela capacidade em impedir uma tal ação das Forças Armadas, e da contenção destas mesmas Forças neste mesmo sentido.
Daí que, sob a fórmula florestal do “meio de campo”, o ministro esconda tão bem sua folha: que a razão de ser deste homem em tudo ignorante no campo que chefia é a manutenção da tutela, vista não como uma ação ilegítima das Forças Armadas, mas como fonte de legitimidade de qualquer governo civil, na medida em que o poder estaria, afinal, em última instância, acessível à mão armada, se esta assim desejasse. Daí as complicadas separações e classificações do ministro, daí o “temos de agradecer às Forças por não ter havido golpe”, daí sua infinita vontade de descrever as falhas fardadas nos tons mais eufemísticos ao passo que dá vazão total às suas petições. O ministro assim age, há de se notar, enquanto sempre afasta a ameaça: os militares “não tiveram nada a ver” com a intentona golpista; 1964 era um tempo em que os comandantes eram crianças; não se pode sempre associar o militar ao golpe (mesmo que tratemos de instrumentos excepcionais como a GLO).
Ao fim, o ministro Múcio, querendo “mediar” relações entre uma organização que não tem legitimidade própria e o Executivo, do qual decorre a legitimidade da primeira, torna-se um aríete da primeira em relação ao segundo, e percebe que é somente sendo aríete que ele pode ser ministro; e que somente por meio deste aríete é que o governo pode ser governo. O que significa dizer, ao fim, que não há ministro da Defesa nem governo: há um poder tutelado e um mecanismo da tutela. E o presidente, no entanto, segue firme: Múcio fica.
(*) Pedro Marin é fundador e editor-chefe da Revista Opera. É editor de Opinião de Opera Mundi, autor de “Aproximações sucessivas – O Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III”, “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, e co-autor de “Carta no Coturno – a volta do Partido Fardado no Brasil”.