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Ode ao lobista

No fundo, o lobista é o anti-herói do mundo moderno. Ele não luta por uma ideologia, mas por uma fatura

Frei Betto
O lobista é um tradutor profissional, capaz de transformar "ganância" em "progresso" com a facilidade de quem troca de gravata. (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)
O lobista é um tradutor profissional, capaz de transformar “ganância” em “progresso” com a facilidade de quem troca de gravata. (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)

“Em meio a negociações para alavancar a redução do uso de combustíveis fósseis durante a COP30, o número de lobistas do setor do petróleo em edições da conferência climática bateu recorde neste ano, em Belém. É o que aponta um relatório da coalizão “Kick Big Polluters Out”, a KBPO (Expulsem os grandes poluidores, em tradução livre), que identificou o credenciamento de 1.602 representantes desta indústria no evento. Uma planilha a qual o GLOBO teve acesso mostra que o montante é superior ao tamanho das delegações de quase todas as nações participantes — atrás apenas do Brasil (3.805).” – (Notícia de O Globo, 20/11/’2025)

Há uma criatura mítica que vagueia pelos corredores de poder, um ser de rara adaptabilidade e flexibilidade moral que faz um contorcionista parecer um poste de concreto. Este ser não é um político, não é um burocrata, mas sim o seu mais fiel (e bem pago) servo: o lobista político, figura discreta que se esgueira entre gabinetes como um sommelier de interesses.

Se um dia você se perguntou como uma lei aparentemente obscura que beneficia uma única empresa de fabricação de telhas de amianto consegue passar incólume pelo crivo democrático, saiba que não foi um milagre. Foi obra de um profissional.

O lobista é o mestre supremo da arte de manipular a opinião alheia. Sua espinha dorsal não é composta por vértebras, mas por um material muito mais maleável – o oportunismo estratégico. Sua convicção mais profunda é a de que o cliente tem sempre razão, desde que o cheque não falte. Um lobista que representa a indústria de ultraprocessados destinado ao mercado infantil é capaz, em um dia, de citar estudos complexos (encomendados pela própria indústria) sobre a importância dos produtos para o crescimento saudável. No dia seguinte, se o cliente mudar para uma empresa de produtos veganos, o mesmo lobista fará um discurso comovente sobre os malefícios do “veneno empacotado” e a conveniência dos produtos sem procedência animal.

A sua vida é um eterno “sim, senhor excelência”. Seu repertório inclui sorrisos para todas as ocasiões. Sorriso cúmplice para o aliado, sorriso compreensivo para o indeciso, sorriso de piedosa consternação quando ouve os argumentos de um opositor. Ele não discute, “esclarece”. Não pressiona, “faz uma sugestão”. Não compra votos, isso é ilegal e de mau gosto. Patrocina jantares em restaurantes sofisticados, oferece lugares em camarotes para eventos desportivos e, o mais importante, fornece ao político sobrecarregado algo inestimável: um powerpoint bem-feito.

Este powerpoint é a peça central do seu ofício. Nele, os interesses obscuros de uma multinacional transformam-se em “estímulo ao crescimento econômico nacional”. A regulação incômoda torna-se “um entrave burocrático que sufoca a inovação e o empreendedorismo”. E o lucro astronômico do cliente? Esse é discretamente traduzido para “geração de valor para acionistas e incremento à economia”. O lobista é um tradutor profissional, capaz de transformar “ganância” em “progresso” com a facilidade de quem troca de gravata.

Engana-se quem imagina que o lobista vive uma vida de glamour. Sua agenda é apertadíssima: café com deputado, almoço com assessor, reunião com secretário, jantar com um CEO e, claro, aquela conversa casual no corredor do parlamento sobre a importância de “modernizar o marco regulatório”.

Sua habilidade de camuflagem é lendária. Em almoço com um deputado ambientalista, o lobista de uma petroleira falará com lágrimas nos olhos sobre o seu amor pelos golfinhos e o investimento da empresa em tecnologias de captura de carbono (um projeto minúsculo, mas muito fotogênico). Na reunião seguinte, com um deputado do setor industrial, defenderá a “necessidade de flexibilizar o licenciamento ambiental para não estrangular a competitividade”. Ele não é hipócrita; é holográfico. Sua personalidade é projetada conforme a plateia. Cumpre a missão de harmonizar necessidades privadas com decisões públicas – uma alquimia sutil em que, como por milagre, o interesse coletivo frequentemente coincide com o de quem contratou seus serviços.

A pressão, sua ferramenta principal, é aplicada com a delicadeza de um ourives e a força de um trator. Começa com um e-mail educado, segue para um café, depois um jantar. Oferece-se para redigir um parecer técnico para a comissão parlamentar (que, por uma incrível coincidência, defenderá exatamente a posição do seu cliente). Mobiliza “especialistas independentes” (que, por outra coincidência, são pagos pelo mesmo cliente) para dar entrevistas. E, se tudo falhar, pode sempre lembrar sutilmente o deputado de quantos postos de trabalho a empresa do seu cliente gera na sua base eleitoral. Não é uma ameaça; é um “lembrete da importância do setor para a região”.

No fundo, o lobista é o anti-herói do mundo moderno. Ele não luta por uma ideologia, mas por uma fatura. Não corrompe, oferece presentes irresistíveis. Não busca mudar o mundo, mas sim mantê-lo suficientemente inclinado para que os dólares e os euros do seu cliente rolem na direção certa. É um ator que nunca recebe aplausos, um escritor-fantasma cujas palavras se tornam lei, e um psicólogo amador que trata das inseguranças de um CEO perante a possibilidade de lucrar menos.

Trata-se de um ofício ingrato, sem dúvida. Ter de concordar com todos, elogiar ideias medíocres e sorrir para pessoas que se despreza exige uma resistência sobre-humana. Mas, no final do mês, quando o salário cai na conta, o lobista pode deitar-se com a consciência tranquila. Ele não vendeu a sua alma; ele apenas a alugou, com opção de renovação, a quem pagar mais. E nesse mundo de convicções flexíveis e verdades mutáveis, ele é, sem sombra de dúvida, o mais flexível e adaptável de todos. Um verdadeiro camaleão de terno e gravata, cuja única cor verdadeira é a do dinheiro.

No fim, o lobista é uma espécie de super-herói institucional. Não voa, não solta laser pelos olhos, mas tem o poder de transformar um “não” firme em um “vamos conversar”. Em um país onde conversar é a base de tudo, especialmente de qualquer coisa que envolva orçamento, esse poder é praticamente divino.

(*) Frei Betto é escritor, autor do romance “Minha avó e seus mistérios” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

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