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O Caribe tem duas opções: juntar-se à tentativa dos EUA de intimidar a Venezuela ou construir sua soberania

Trinidad e Tobago rompe o consenso de paz do Caribe e expõe a região ao avanço militar dos EUA contra a Venezuela

Vijay Prashad
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. (Foto: Daniel Torok / White House)
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. (Foto: Daniel Torok / White House)

O presidente dos EUA, Donald Trump, autorizou o porta-aviões USS Gerald R. Ford a entrar no Caribe. O navio agora está ao norte de Porto Rico, juntando-se ao USS Iwo Jima e outros recursos da Marinha dos EUA para ameaçar a Venezuela com um ataque. As tensões estão altas no Caribe, com várias teorias circulando sobre a possibilidade do que parece ser um ataque inevitável dos EUA e sobre a catástrofe social que tal ataque causaria. A CARICOM, órgão regional dos países do Caribe, divulgou uma declaração afirmando sua visão de que a região deve ser uma “zona de paz” e que as disputas devem ser resolvidas pacificamente. Dez ex-chefes de governo de estados caribenhos publicaram uma carta exigindo que “nossa região nunca se torne um peão nas rivalidades dos outros”.

O ex-primeiro-ministro de Trinidad e Tobago, Stuart Young, declarou no dia 21 de agosto: “A CARICOM e nossa região são uma zona de paz reconhecida, e é fundamental que assim seja mantida”. Trinidad e Tobago, disse ele, “respeitou e defendeu os princípios de não-intervenção e não-interferência nos assuntos internos de outros países, e por um bom motivo”. À primeira vista, parece que ninguém no Caribe quer que os Estados Unidos ataquem a Venezuela.

No entanto, a atual primeira-ministra de Trinidad e Tobago, Kamla Persad-Bissessar (conhecida pelas iniciais KPB), disse abertamente que apoia as ações dos EUA no Caribe. Isso inclui o assassinato ilegal de 83 pessoas em 21 ataques aéreos desde o dia 2 de setembro de 2025. De fato, quando a CARICOM divulgou sua declaração sobre a região ser uma zona de paz, Trinidad e Tobago se retirou da declaração. Por que a primeira-ministra de Trinidad e Tobago se opôs a toda a liderança da CARICOM e apoiou a aventura militar do governo Trump no Caribe?

Quintal

Desde a Doutrina Monroe (1823), os Estados Unidos tratam toda a América Latina e o Caribe como seu “quintal”. Os Estados Unidos intervieram em pelo menos 30 dos 33 países da América Latina e do Caribe (ou seja, 90% dos países) – desde o ataque dos EUA às Ilhas Malvinas da Argentina (1831-32) até as atuais ameaças contra a Venezuela.

A ideia da “zona de paz” surgiu em 1971, quando a Assembleia Geral da ONU votou a favor do Oceano Índico como “zona de paz”. Nas duas décadas seguintes, quando a CARICOM debateu esse conceito para o Caribe, os Estados Unidos intervieram em, ao menos, República Dominicana (após 1965), Jamaica (1972-1976), Guiana (1974-1976), Barbados (1976-1978), Granada (1979-1983), Nicarágua (1981-1988), Suriname (1982-1988) e Haiti (1986).

 Leia também – O ataque à Venezuela é um ataque ao Brasil 

Em 1986, na cúpula da CARICOM na Guiana, o primeiro-ministro de Barbados, Errol Barrow, disse: “minha posição continua clara: o Caribe deve ser reconhecido e respeitado como uma zona de paz… Eu disse e repito que, enquanto for primeiro-ministro de Barbados, nosso território não será usado para intimidar nenhum de nossos vizinhos, seja Cuba ou os EUA”. Desde que Barrow fez esse comentário, os líderes caribenhos têm afirmado pontualmente, contra os Estados Unidos, que não são o quintal de ninguém e que suas águas são uma zona de paz. Em 2014, em Havana, todos os membros da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) aprovaram uma “proclamação de zona de paz” com o objetivo de “erradicar para sempre a ameaça ou o uso da força” na região.

Persad-Bissessar, ou KPB, rejeitou esse importante consenso entre as tradições políticas do Caribe. Por que isso?

Traições

Em 1989, o líder sindical Basdeo Panday formou o Congresso Nacional Unido (UNC), uma formação de centro-esquerda (cujo nome anterior era Caucus pelo Amor, Unidade e Irmandade). KPB se juntou ao partido de Panday e permaneceu no UNC desde então. Ao longo de sua carreira, até recentemente, KPB permaneceu no centro do UNC, defendendo políticas social-democratas e pró-bem-estar social, seja como líder da oposição ou em seu primeiro mandato como primeira-ministra (2010-2015). Entretanto, mesmo em seu primeiro mandato, KPB demonstrou que não permaneceria dentro dos limites da centro-esquerda, mas que se alinharia à extrema-direita em uma questão: a criminalidade.

Em 2011, KPB declarou estado de emergência para uma “guerra contra o crime”. De sua casa em San Fernando, KPB disse à imprensa: “A nação não deve ser refém de grupos de bandidos empenhados em causar estragos em nossa sociedade […] Temos que tomar medidas muito fortes”, disse ela, “medidas muito decisivas”. O governo prendeu sete mil pessoas, a maioria delas libertada por falta de provas, e a Lei Antigangues do governo não pôde ser aprovada: essa era uma política que imitava as campanhas antipobres do Norte Global. Já nesse estado de emergência, KPB traiu o legado da UNC, que ela arrastou ainda mais para a direita.

Quando KPB voltou ao poder em 2025, ela começou a imitar Trump com a retórica “Trinidad e Tobago em primeiro lugar” e com uma linguagem ainda mais dura contra suspeitos de tráfico de drogas. Após o primeiro ataque dos EUA a um pequeno barco, KPB fez uma forte declaração em apoio a ele: “Não tenho simpatia por traficantes, os militares dos EUA deveriam matá-los todos violentamente”. Pennelope Beckles, líder da oposição em Trinidad e Tobago, disse que, embora seu partido (o Movimento Nacional Popular) apoie ações enérgicas contra o tráfico de drogas, tais ações devem ser “legais” e que a “declaração imprudente” de KPB deve ser retratada. Em vez disso, KPB reforçou seu apoio à militarização do Caribe pelos EUA.

Problemas

Certamente, Trinidad e Tobago enfrenta um emaranhado de vulnerabilidades econômicas (dependência do petróleo e do gás, escassez de divisas, diversificação lenta) e crises sociais (crime, desigualdade, migração, exclusão dos jovens). Tudo isso é agravado pela fraqueza das instituições estatais para superar esses desafios. A fraqueza do regionalismo isola ainda mais os países pequenos, como Trinidad e Tobago, que são vulneráveis à pressão dos países poderosos. Mas KPB não está agindo apenas por pressão de Trump; ela tomou uma decisão política de usar a força dos EUA para tentar resolver os problemas de seu país.

Qual poderia ser sua estratégia? Primeiro, fazer com que os Estados Unidos bombardeiem pequenos barcos que talvez estejam envolvidos nas operações de contrabando caribenhas que duram séculos. Se os EUA bombardearem um número suficiente desses pequenos barcos, os pequenos contrabandistas repensarão o transporte de drogas, armas e commodities básicas de consumo. Segundo, usar a boa vontade gerada com Trump para incentivar investimentos na essencial, mas estagnada, indústria petrolífera de Trinidad e Tobago. Pode haver ganhos de curto prazo para KPB. Trinidad e Tobago precisa de pelo menos 300 milhões de dólares, senão 700 milhões de dólares por ano, para manutenção e modernização de suas fábricas petroquímicas e de gás natural liquefeito (e, além disso, precisa de 5 bilhões de dólares para o desenvolvimento de campos offshore e a construção de novas infraestruturas). O investimento maciço da ExxonMobil na Guiana (que, segundo rumores, ultrapassa 10 bilhões de dólares) atraiu a atenção de todo o Caribe, onde outros países gostariam de receber esse tipo de investimento. Empresas como a ExxonMobil investiriam em Trinidad e Tobago? Se Trump quisesse recompensar a KPB por sua untuosidade, ele diria ao CEO da ExxonMobil, Darren Woods, para expandir o investimento em blocos de águas profundas que sua empresa já fez em Trinidad e Tobago. Talvez o cálculo da KPB de deixar de lado as ideias de zona de paz lhe renda mais dinheiro das gigantes do petróleo.

Mas o que essa traição rompe? Certamente atrapalha ainda mais qualquer tentativa de construir a unidade caribenha e isola Trinidad e Tobago da sensibilidade mais ampla do Caribe contra o uso de suas águas para confrontos militares dos EUA. Existem problemas reais em Trinidad e Tobago: aumento da violência relacionada a armas, tráfico transnacional e migração irregular através do Golfo de Paria. Esses problemas exigem soluções reais, não fantasias de intervenção militar dos EUA. As intervenções militares dos EUA não resolvem os problemas, mas aprofundam a dependência, aumentam as tensões e corroem a soberania de todos os países. Um ataque à Venezuela não vai resolver os problemas de Trinidad e Tobago, mas pode de fato ampliá-los.

O Caribe tem uma escolha entre dois futuros. Um caminho leva a uma militarização mais profunda, dependência e incorporação ao aparato de segurança dos EUA. O outro leva à revitalização da autonomia regional, à cooperação Sul-Sul e às tradições anti-imperialistas que há muito tempo sustentam a imaginação política do Caribe.

(*) Tradução de Raul Chiliani

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