Pesquisar
,

O genocídio prossegue

O Ministério da Saúde de Gaza afirma que, desde o início do genocídio, os israelenses mataram pelo menos 45 mil palestinos. Destes, ao menos 17 mil eram crianças
Vijay Prashad
Gaza/Palestina – 07/11/2024 -Israel continua os seus ataques em diversas áreas da Faixa de Gaza, particularmente no campo de Nur Shams em Tulkarm e nos bairros oriental e ocidental da Cidade de Gaza. (Foto: Iria)

Já se tornou quase que um som ambiente. Sabemos que está acontecendo, mas praticamente nos esquecemos de que prossegue a um ritmo bárbaro. O coordenador especial adjunto das Nações Unidas para a Palestina, Muhannad Hadi, divulgou uma declaração em 13 de dezembro de 2024 que simplesmente não faz sentido: “Estou muito preocupado com a rápida deterioração da segurança e da situação humanitária em Gaza.” Como algo pode se deteriorar em Gaza? A situação não é a pior possível, com a guerra genocida dos israelenses se prolongando?

Se estiver prestando atenção, você verá que todos os dias há mais e mais relatos de bombardeios no norte de Gaza. Esses bombardeios pulverizam prédios inteiros e massacram famílias inteiras. No dia 17 de dezembro, o comissário-geral da Agência Palestina das Nações Unidas (UNRWA), Philippe Lazzarini, deixou a situação mais clara: “Não temos palavras para descrever a situação em Gaza…. Meus colegas, quando voltam, descrevem basicamente um ambiente pós-apocalíptico, e as pessoas estão apenas vivendo entre [lixo], água de esgoto, nos escombros e com dificuldades porque são confrontadas diariamente com a morte, a fome e as doenças.”

Corpos mortos

Um dia antes de Hadi fazer sua declaração, um ataque aéreo israelense atingiu um conjunto habitacional no campo de refugiados de Nuseirat e matou um grande número de pessoas da família al-Sheikh Ali. A contagem do número de mortos passou a fazer parte do registro da extinção de famílias inteiras através de bombas israelenses. Um relatório do Euro-Med Human Rights Monitor de outubro de 2024 mostrou que 3.500 famílias palestinas em Gaza “sofreram várias perdas desde outubro de 2023. Dessas, 365 famílias perderam mais de dez membros, enquanto mais de 2.750 famílias perderam pelo menos três membros”. Esses números precisarão ser atualizados. O relatório da Euro-Med é intitulado “De-Gaza: A Year of Israel’s Genocide and the Collapse of World Order” (Um ano de genocídio israelense e o colapso da ordem mundial).

No dia 11 de dezembro de 2024, antes dessa rodada de bombardeios e assassinatos, Mounir al-Bursh (diretor geral do Ministério da Saúde palestino) e Mahmoud Basal (porta-voz da Agência de Defesa Civil palestina) deram uma surpreendente coletiva de imprensa. Al-Bursh disse que as tropas israelenses dispararam contra as ambulâncias e impediram que as equipes de resgate chegassem aos prédios para recuperar feridos e os corpos dos mortos. Como resultado, disse ele, “os corpos são deixados nas ruas e acabam sendo comidos por cães”. Basal, por sua vez, disse que muitos dos feridos estavam morrendo sob os escombros porque as equipes de resgate não tinham mais acesso aos prédios bombardeados e não tinham o equipamento necessário para salvar as pessoas. Isso significa que os israelenses não estão apenas bombardeando áreas residenciais e matando civis desarmados, mas também estão impedindo que os feridos sejam resgatados e que os mortos tenham um enterro honroso. O jornalista Hossam Shabat, reportando do norte de Gaza, escreveu: “Devido aos crescentes bombardeios e assassinatos israelenses no norte de Gaza, ficamos sem sacos para cadáveres para enterrar os mortos e agora recorremos ao uso de qualquer peça de roupa ou cobertor para o enterro”.

Relatórios

Nos últimos meses, foram publicados dois relatórios cuja honestidade permite que o leitor sinta as atrocidades que estão sendo cometidas contra os palestinos em Gaza.

Primeiro, em outubro de 2024, a notável relatora especial da ONU sobre a Palestina, Francesca Albanese, publicou seu relatório de 32 páginas para a Assembleia Geral da ONU. Sua conclusão é clara: “O genocídio atual faz parte de um projeto de um século de colonialismo eliminatório na Palestina, uma mancha no sistema internacional e na humanidade, que deve ser encerrado, investigado e processado”. O argumento jurídico para o fim não apenas do genocídio, mas também de sua base, a ocupação, é muito forte. Qualquer pessoa que leia o relatório de Albanese com a mente aberta chegará a essa conclusão.

Depois, em dezembro, a Anistia Internacional divulgou um documento de 296 páginas chamado You Feel Like You Are Subhuman: Israel’s Genocide Against Palestinians in Gaza (Você se sente como se fosse subhumano: o genocídio de Israel contra os palestinos em Gaza). A seção mais dolorosa de se ler é a evidência apresentada clinicamente pela Anistia sobre as palavras genocidas das autoridades israelenses que, em seguida, são colocadas em prática por seus soldados. Vale a pena ler algumas frases do relatório da Anistia:

“A Anistia Internacional analisou 102 declarações feitas por autoridades do governo israelense, oficiais militares de alto escalão e membros do Knesset feitas entre [7 de outubro de 2023 e 30 de junho de 2024] que desumanizavam os palestinos, ou pediam ou justificavam atos genocidas ou outros crimes sob o direito internacional contra eles. Dessas, foram identificadas 22 declarações que foram feitas especificamente por membros dos gabinetes de guerra e segurança de Israel, incluindo o primeiro-ministro Netanyahu, o então ministro da Defesa Gallant e outros ministros do governo, por oficiais militares [de alto escalão] e pelo presidente de Israel entre [7 de outubro de 2023 e 30 de junho de 2024]. Essas declarações pareciam pedir ou justificar atos genocidas.

Além disso, a linguagem usada pelas autoridades israelenses foi repetida com frequência, inclusive por soldados em Gaza, aparentemente explicando a lógica de seu [comportamento]. Isso é evidenciado pela análise da Anistia Internacional de 62 vídeos, gravações de áudio e fotografias postadas on-line mostrando soldados israelenses fazendo apelos à destruição de Gaza ou à negação de serviços essenciais à população de Gaza, ou celebrando a destruição de casas, mesquitas, escolas e universidades palestinas.

Por exemplo, antes da ofensiva israelense em Rafah, o ministro israelense das finanças, Bezalel Smotrich, disse em um evento público: ‘Não há trabalhos feitos pela metade. Rafah, Deir al-Balah, Nuseirat, destruição! Apaguem a memória [do povo de] Amaleque debaixo dos céus’”. Essa linguagem genocida foi então reproduzida no terreno. O relatório da Anistia afirma com veemência que não há outra maneira de entender a campanha israelense contra os palestinos em Gaza senão como um genocídio.

Crianças travessas

O Ministério da Saúde de Gaza afirma que, desde o início do genocídio, os israelenses mataram pelo menos 45.059 palestinos. Destes, pelo menos 17 mil eram crianças. Israel e seus aliados ocidentais gastaram fundos consideráveis para negar esses números. A Henry Jackson Society, uma organização de direita com sede no Reino Unido, publicou um relatório de 40 páginas que deveria estar em um debate juvenil. Reclamar deste ou daquele caso individual e não enxergar a extensão do bombardeio e da destruição, conforme revelado por organizações de direitos humanos de renome, é uma desonestidade. Eles gostariam de justificar a matança de crianças com sua polêmica sobre estatísticas.

Em 2014, durante um terrível bombardeio anterior de Gaza pelos israelenses, o poeta palestino Khaled Juma escreveu sobre as crianças que estavam sendo mortas naquela época. Naquela ocasião, os israelenses mataram 551 crianças, conforme registrado pelo inquérito oficial da ONU. Desta vez, o número é 30 vezes maior, e segue subindo. Nenhum debate sobre a exatidão dos números mudará isso.

“Oh, crianças travessas de Gaza,
Vocês que me perturbam constantemente com seus gritos debaixo da minha janela,
Vocês que preenchiam todas as manhãs com pressa e caos,
Vocês que quebraram meu vaso e roubaram a flor solitária em minha varanda,
Voltem,
E gritem o quanto quiser,
E quebrem todos os vasos,
Roubem todas as flores,
Voltem,
Apenas voltem…”

(*) Tradução de Raul Chiliani

Globetrotter O Globetrotter é um serviço independente de notícias e análises internacionais voltado aos povos do Sul Global.

Continue lendo

guerra
Sem chance para a paz: adeus a um 2024 cheio de guerras e morte
america latina
A América Latina como reserva ideológica
siria (3)
Os bastidores da invasão oportunista de Israel na Síria

Leia também

sao paulo
Eleições em São Paulo: o xadrez e o carteado
rsz_pablo-marcal
Pablo Marçal: não se deve subestimar o candidato coach
1-CAPA
Dando de comer: como a China venceu a miséria e eleva o padrão de vida dos pobres
rsz_escrita
No papel: o futuro da escrita à mão na educação
bolivia
Bolívia e o golpismo como espetáculo
rsz_1jodi_dean
Jodi Dean: “a Palestina é o cerne da luta contra o imperialismo em todo o mundo”
forcas armadas
As Forças Armadas contra o Brasil negro [parte 1]
PT
O esforço de Lula é inútil: o sonho das classes dominantes é destruir o PT
ratzel_geopolitica
Ratzel e o embrião da geopolítica: os anos iniciais
almir guineto
78 anos de Almir Guineto, rei e herói do pagode popular