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Frei Betto: a natureza de Trump

Quem acreditou na humanização do capitalismo talvez se convença agora de que serrar os dentes e as garras do tigre não anula sua natural ferocidade
Frei Betto
O presidente dos EUA, Donald Trump, fala ao telefone durante um vôo no Air Force One. (Foto: Shealah Craighead / White House )

Quem planta limoeiro espera colher limão. No entanto, nossa sociedade, movida pela ótica analítica, e não pela dialética, se acostumou a examinar os fatos por seus efeitos e não por suas causas.

O próprio sistema ideológico no qual vivemos cuida de encobrir as verdadeiras causas. Assim, há países pobres porque seu povo não é empreendedor; muçulmanos são potenciais terroristas; presos comuns irrecuperáveis; homossexuais, pervertidos; negros, inaptos às carreiras científicas etc.

Trump surpreende muitos. Sobretudo seus aliados. Ninguém esperava que o seu primeiro soco fosse no Canal do Panamá, visando atingir a China – o que já conseguiu, com o rompimento do acordo da Nova Rota da Seda –, o México e o Canadá. Se fosse na cara do governo da Venezuela, não teria surpreendido.

Trump deu uma rasteira em seus mais fiéis aliados, como agora faz com os governos europeus, ao abandonar sua retórica agressiva frente à Coreia do Norte e estender a mão a Kim Jong-un.

Trump é louco? Porá fogo no mundo, como Hitler fez na Europa e Nero em Roma? De modo algum. Louco rasga dinheiro, e Trump sabe como multiplicá-lo. Ele é fruto genuíno do sistema cujo valor primordial é a competitividade e não a solidariedade. E aparelha sua administração para consolidar os mais caros “valores” de quem pratica a idolatria do dinheiro: supremacia dos brancos; fortalecimento dos privilégios dos ricos; anulação de direitos sociais, como saúde; liberação da CIA para sequestrar suspeitos em qualquer ponto do planeta, torturar e manter cárceres clandestinos etc. Agora, deporta imigrantes para a base naval de Guantánamo, em Cuba. Faz uma limpeza étnica nos EUA assim como propôs em Gaza. 

Se quem planta limoeiro colhe limões, quem planta essa perversa noção de que é direito natural ser rico em um mundo majoritariamente pobre (a renda de 1% da população mundial supera a de 99%), legitima a desigualdade e a violência. 

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A propaganda é avassaladora. Tirânica, como analisou Hannah Arendt. Incute-nos a ideia de que só os ricos são felizes, pois têm acesso ao luxuoso e requintado mercado de bens supérfluos. Ou vemos com frequência a TV exaltar quem partilha seus bens ou defende os direitos dos negros e homossexuais?

O sistema não tem o menor interesse nas pessoas, exceto se potencialmente consumidoras. O que importa é o lucro e a acumulação de riquezas. Se um país é pobre, isso resulta de sua falta de cultura e criatividade. Assim, jogam-se para debaixo do tapete as verdadeiras causas: séculos de colonialismo, de tirania a serviço dos países metropolitanos, de extorsão de recursos naturais e exploração da mão de obra.

Exemplo disso é o Brasil, no qual os portugueses tudo fizeram para evitar uma nação de letrados. A primeira impressora desembarcou aqui em 1808, com Dom João VI, mais de três séculos após o início da colonização. E a primeira universidade foi inaugurada em 1913.

Trump é um imperador que se acredita revestido de cabelos de ouro. Seu país viola impunemente a soberania de inúmeros outros através de suas empresas e bases militares. Quantas bases militares estrangeiras existem nos EUA? O dólar é a moeda padrão internacional. Se os EUA tossem, a economia global se gripa.

O bom de Trump é que, agora, ele exibe as garras afiadas de Tio Sam. Este já não faz questão de esconder sua verdadeira natureza sob a fachada de bom velhinho. Clark Kent se despe, afinal, de sua cara de boa gente. Quem acreditou na humanização do capitalismo talvez se convença de que serrar os dentes e as garras do tigre não anula sua natural ferocidade.

(*) Frei Betto é escritor, autor de “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

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