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Dois anos após a Aliança, o Sahel busca sua soberania

Durante décadas, o Sahel foi um caso paradigmático de saque neocolonial. Mas, após as revoltas militares no Mali, Níger e Burkina Faso, seus povos assumiram a sua rebelião

Milkaela Nhondo Erskog
A “independência formal” dos estados do Sahel da década de 1960 foi uma fachada para continuar a dominação francesa, mantida por meio do franco CFA e de uma rede de pactos de defesa. (Foto: Présidence du Faso / Facebook / Reprodução)
A “independência formal” dos estados do Sahel da década de 1960 foi uma fachada para continuar a dominação francesa, mantida por meio do franco CFA e de uma rede de pactos de defesa. (Foto: Présidence du Faso / Facebook / Reprodução)

Em 16 de setembro, os povos de Burkina Faso, Mali e Níger comemoram o segundo aniversário da Aliança dos Estados do Sahel (AES), estabelecida pela Carta de Liptako-Gourma em 2023. Não se trata simplesmente de uma data no calendário, mas da celebração de uma luta renovada pela soberania em uma região que há muito tempo é sufocada pelo neocolonialismo francês e pelas fracassadas estratégias de segurança ocidentais. Enquanto ações solidárias são planejadas em todo o Sahel, é essencial olhar além das narrativas dominantes sobre os “cinturões golpistas” e compreender as condições que levaram a este momento crucial.

Durante décadas, o Sahel foi um caso paradigmático de saque neocolonial. A “independência formal” da década de 1960 foi uma fachada para continuar a dominação francesa, mantida por meio do franco CFA e de uma rede de pactos de defesa. O acordo de 1961 com o Níger, por exemplo, concedia à França o controle sobre instalações militares e recursos estratégicos como o urânio, ao mesmo tempo em que proporcionava isenções fiscais às empresas francesas. Esse sistema destruiu a soberania fiscal da região, causando um subdesenvolvimento catastrófico, pobreza e uma crise de segurança exacerbada pelas mesmas potências que pretendiam resolvê-la.

Os números são desoladores. Em 2023, o PIB per capita do Níger era de apenas 560 dólares, com quase metade da população vivendo na pobreza, e seus vizinhos enfrentam realidades semelhantes. Esta é a consequência direta de um sistema concebido para a extração. As empresas mineiras francesas extraem há anos urânio e ouro da região, deixando pouco em troca. Em 2010, por exemplo, o Níger recebeu apenas 13% do valor total das exportações do seu próprio urânio.

Essa exploração econômica está indissoluvelmente ligada à crise de segurança. A intervenção da OTAN na Líbia em 2011 desencadeou uma avalanche de armas e extremistas em toda a região. As operações posteriores lideradas pela França, como a Barkhane, foram contraproducentes, já que a atividade terrorista disparou sob sua vigilância, com um aumento de 2860% nas mortes em quinze anos. Para a população do Sahel, a conclusão era inevitável: o raposa vigiava o galinheiro.

Deste caldeirão de Estados falidos, ingerência estrangeira e frustração popular nasceu a Aliança dos Estados do Sahel (AES). As intervenções militares no Mali (2020), Burkina Faso (2022) e Níger (2023) não foram as típicas tomadas de poder por uma elite egoísta. Foram, como as denominou Philippe Toyo Noudjnoume, da Organização dos Povos da África Ocidental, “intervenções militares pela soberania”. Liderados por uma nova geração de oficiais jovens e patriotas, como Ibrahim Traoré, de Burkina Faso, e Assimi Goïta, do Mali, esses movimentos foram impulsionados por mobilizações massivas de uma população cansada da antiga ordem, como mostra o recente dossiê publicado pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, O Sahel em busca da soberania.

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As cenas de manifestações massivas nas ruas de Bamako, Ouagadougou e Niamey após a derrubada dos governos apoiados pelo Ocidente foram um testemunho poderoso do profundo desejo de mudança. Além disso, as massas não saíram simplesmente para apoiar cegamente um novo regime. Tomemos o caso do Níger como exemplo: no momento em que os líderes militares se rebelaram – motivados principalmente pela falta de proteção e remuneração enquanto lutavam na linha de frente contra incursões terroristas, muitas vezes ligadas ao suposto apoio francês – foram as organizações de base que lideraram o apelo à expulsão das forças militares e diplomáticas francesas, sitiando as guarnições militares e a embaixada francesa. Não se tratavam simplesmente de manifestações antifrancesas, mas de uma profunda rejeição a um sistema que, por muito tempo, negou ao povo do Sahel sua dignidade e seu direito à autodeterminação. Portanto, a AES não é apenas uma aliança militar, mas um projeto político, uma tentativa ousada de forjar um novo caminho baseado no panafricanismo, no desenvolvimento endógeno e em uma dedicida postura anti-imperialista.

Em seus dois anos de existência, a AES alcançou avanços significativos. A expulsão das tropas francesas dos três Estados-membros representou um golpe histórico para o neocolonialismo francês na África. A formação da Confederação dos Estados do Sahel em 6 de julho de 2024 consolidou ainda mais a aliança, com uma força militar conjunta que já realiza manobras e cujos líderes aprofundam os laços de segurança, como se viu nas reuniões militares realizadas na Rússia em julho e agosto de 2025. Avançam os planos para criar um passaporte único, um novo fundo de investimento financiado com impostos nacionais e, finalmente, uma moeda comum. Na frente econômica, a AES está tomando medidas concretas para recuperar o controle de seu destino. Foram apresentadas propostas para reunir recursos para projetos-chave de mineração, energia e infraestrutura. Em um passo significativo em direção à soberania energética, a empresa russa Rosatom (empresa estatal responsável por sua indústria nuclear e energética) assinou acordos-quadro com os três membros em junho-julho de 2025 sobre o uso pacífico da energia nuclear para desenvolver um “ciclo regional de combustível nuclear integrado verticalmente, desde as minas do Níger até os reatores de Burkina Faso e Mali”. Isso complementa os esforços nacionais de toda a aliança, que incluem uma série de acordos bilaterais com novos parceiros e novas iniciativas de desenvolvimento nacional, abrangendo uma ampla gama de setores econômicos, políticos e sociais. O Mali e Burkina Faso aprovaram novos códigos de mineração em 2023 para aumentar a participação do Estado e eliminar as isenções fiscais da era neocolonial, enquanto o Níger iniciou uma auditoria exaustiva dos contratos de mineração existentes com o objetivo de renegociá-los em termos mais equitativos.

Essas políticas concretas são acompanhadas por um impulso à renovação ideológica. Burkina Faso, por exemplo, está revivendo o espírito de Thomas Sankara com um importante impulso à autossuficiência alimentar, mobilizando programas nacionais de voluntariado para construir barragens de irrigação, iniciando a construção da primeira fábrica de processamento de tomates do país para reduzir a dependência das importações e a campanha nacional de restauração florestal (que viu 5 milhões de árvores serem plantadas em uma hora em 21 de junho de 2025). Mali, em seu novo plano nacional de desenvolvimento, está promovendo o conceito de Maliden kura ou o “novo malinês”, um cidadão patriota, responsável e trabalhador dedicado à soberania nacional. Esses esforços paralelos, tanto materiais quanto ideológicos, estão tecendo uma nova bandeira para a região, simbolizada na bandeira da AES. Com um mapa das três nações unidas em uma só, com as cores pan-africanas vermelho, dourado e verde, e a antiga árvore baobá no centro, os povos do Sahel hastearam a bandeira da soberania e, a cada dia, por meio da luta diária para construir um projeto regional coerente, recuperam sua dignidade.

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Os desafios que se avizinham continuam a ser imensos. As economias dos países da AES continuam a depender em grande medida da exportação de matérias-primas, o que as tornam vulneráveis aos caprichos do mercado mundial. A situação de segurança, embora esteja melhor em algumas zonas, continua a ser precária. E as forças do imperialismo não têm estado ociosas. Mas concentrar-se apenas nestes desafios é perder de vista o panorama geral. Os povos do Sahel não estão à espera de um salvador. Estão tomando as rédeas do seu próprio destino. Este aniversário da AES é um momento para elogiar sua coragem e sua visão. É um lembrete do que disse certa vez Thomas Sankara, o grande revolucionário burquinês, numa frase que Ibrahim Traoré costuma citar: “Um escravo que não é capaz de assumir sua própria rebelião não tem direito à compaixão”. Os povos do Sahel assumiram a sua rebelião.

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