UOL - O melhor conteúdo
Pesquisar
, ,

Liberais e anticomunistas: ninguém solta a mão de ninguém

Do passado ao presente, da Europa ao Brasil, a falsificação histórica e o anticomunismo avançam pelas mãos de liberais e ditos progressistas.
por Pedro Marin | Revista Opera
(Imagem: Estúdio Gauche)

Agulhas debaixo das unhas, costelas quebradas, tortura. A descrição caberia a incontáveis casos de brasileiros nas décadas de 60 e 70; mas este é mais recente. Em fevereiro de 2014, Rostislav Vasilko, líder comunista em Lviv, na Ucrânia, sofreu por algum tempo o amargor desses métodos. Pego por uma multidão no parque Mariinsky, em frente ao Parlamento ucraniano em Kiev, ele foi acusado de ser um atirador que alvejou manifestantes, e teve sua sentença paralela aplicada ali mesmo, na hora.

Seria só um caso de uma longa lista no país; dezenas de escritórios de organizações comunistas seriam ainda saqueados, militantes seriam presos e assassinados e, por fim, em 15 de maio de 2015, era aprovada a lei da “descomunização”. O uso e propagação de simbologia comunista virava crime, com sentenças que poderiam levar organizações de mídia a serem banidas ou militantes e organizações a cinco anos de prisão. Mais de 50 mil ruas tiveram seus nomes trocados, 987 cidades e vilarejos foram rebatizados, e algo em torno de 2 mil monumentos e estátuas foram derrubadas. O ovo havia sido aberto: em julho, o Partido Comunista da Ucrânia, o Partido Comunista dos Trabalhadores e Camponeses e o Partido Comunista Renovado da Ucrânia foram proibidos de participar das eleições. Em dezembro, por fim, os partidos comunistas foram banidos e colocados na ilegalidade.

O Euromaidan, movimento que derrubara o presidente Viktor Yanukovich no segundo mês de 2014, e o governo que dele nasceu, procedendo com uma guerra de “palestinização” contra as populações do leste com o apoio de grupos abertamente fascistas e ultranacionalistas, sob motes plenamente racistas e xenófobos, ainda assim teve o favor dos liberais e “liberais-progressistas” ao redor do mundo.

O movimento golpista, diziam eles, era a resposta de um povo que se revoltava contra o autoritarismo russo e sua corrupção, em busca de um futuro liberal, democrático e europeu. No leste, quando rebeldes se levantaram em armas contra o governo golpista, a imprensa dos países centrais tratou-os todos como “agentes russos”, alinhando-se ao discurso oficial de Kiev. Mas esta mesma imprensa, pisando sobre seu juramento como guardiã da verdade, não tratou dos óbvios interesses norte-americanos no Euromaidan – ainda que o apoio de organizações ocidentais ao movimento fosse documentado -, nem apresentou dois lados de um conflito de dimensão geopolítica. O leste vivia uma “ocupação russa”, o oeste, uma verdadeira libertação, puramente nacional, democrática e liberal.

Quando essa narrativa foi corroída pelos fatos, o nível de sandice foi tal que Alexander Motyl chegou a fazer comparações no progressista Huffpost entre o líder do partido Svoboda, Oleh Tyahnybok, e Malcolm X, e entre o neonazista Batalhão Azov e o Partido dos Panteras Negras.

Anticomunismo global

A Ucrânia apenas se juntava a um crescente grupo de países no mundo que fizeram da propaganda ou da militância comunista um crime. Na Estônia, desde 2007, o uso e propaganda de símbolos comunistas é criminalizado. Na Lituânia, manifestações com símbolos comunistas também estão fora da lei. O mesmo é válido na Letônia e Bulgária. Na Romênia, “iniciar, organizar, cometer ou apoiar” qualquer ato comunista é considerado um perigo à unidade e integridade territorial. Na Polônia, onde já há leis anticomunistas, houve uma tentativa recente de expandir seu escopo, proibindo por completo o Partido Comunista do país. As leis anticomunistas de todos estes países têm algo em comum: a equiparação do comunismo ao nazismo, sob a alegação de que ambos são “regimes totalitários”.

Continua após o anúncio

As mais duras leis anticomunistas, no entanto, são as da Indonésia. No país, propagar intencionalmente ideias comunistas ou marxistas-leninistas é um crime que pode ser punido com até 20 anos de prisão. Em 2017, um turista malaio foi detido no país por usar uma camiseta com a foice e o martelo estampados. As leis são fruto direto dos acontecimentos de 1965, quando, em resposta a um levante de oficiais militares, um grupo de generais derrubou o governo de Sukarno e, culpando o Partido Comunista da Indonésia – à época o terceiro maior do mundo -, levou a cabo o extermínio de ao menos 500 mil supostos comunistas.

Na Croácia, a criminalização do uso de simbologia está em discussão. Outras medidas nesse sentido foram tentadas na Georgia, República Tcheca e Albânia.

Na Alemanha, o uso da bandeira da República Democrática da Alemanha (RDA) ficou proibido até o final dos anos 1960, e nos Estados Unidos, durante os anos 20, diversos estados proibiram o uso público de bandeiras vermelhas. A proibição só acabou em 1931, mas a perseguição anticomunista voltou com força durante o Macartismo dos anos 1950.

No Brasil, o Projeto de Lei (PL) 5358/2016, de autoria de Eduardo Bolsonaro, busca “criminalizar a apologia ao comunismo”.

Anticomunismo avança na Europa

No passado 19 de setembro, foi aprovado no Parlamento Europeu a resolução “Sobre a importância da memória europeia para o futuro da Europa.” A resolução, seguindo a tradição dos países com leis anticomunistas, equipara o comunismo ao nazismo, chegando a dizer que o pacto de não-agressão entre URSS e Alemanha, de 1939, “preparou o caminho para o início da Segunda Guerra Mundial.”

O texto sugere ainda um tribunal anticomunista, ao dizer que “apesar de os crimes do regime nazi terem sido julgados e punidos nos julgamentos de Nuremberga, continua a ser urgente reforçar a sensibilização para os crimes cometidos pelo estalinismo e por outras ditaduras”. Além disso, sugere em diversos trechos a proibição de simbologia comunista, à luz dos países que já o fizeram.

Continua após o anúncio

O Partido Comunista Português (PCP) emitiu uma nota em que declara que a resolução aprovada “pela direita e pela social-democracia”, promove “as mais reacionárias concepções e falsificações da História contemporânea, numa deplorável tentativa de equiparar fascismo e comunismo, minimizando e justificando os crimes do nazi-fascismo.” De acordo com o partido, “esta resolução omite importantes comportamentos de tolerância, cumplicidade e alinhamento das principais potências capitalistas com o ascenso do fascismo em vários países europeus, motivados pelo combate ao ideal comunista.”

Para o Partido Comunista da Grécia (KKE), a resolução “assinada por grupos políticos do Partido Popular, dos Social-Democratas, dos Liberais, dos Verdes e dos Reformistas Conservadores” tem como propósito “legalizar o banimento de partidos comunistas e símbolos imposto em uma série de países-membro da União Europeia […] e generalizar a criminalização e perseguição da ideologia comunista e a ação das forças populares que lutam ao lado dos comunistas para resistir à barbárie anti-popular.”

O Partido Comunista da Espanha (PCE) lembra que, ao contrário do que diz a resolução, “foram as grandes potências capitalistas da França e do Reino Unido […] que pactuaram em Munique com o regime nazista o desmembramento de um estado soberano como a Checoslováquia” com o fim de fazer avançar a Alemanha nazista contra a União Soviética.

Em um texto publicado no site do italiano Partido Comunista da Refundação, o ex-membro do Parlamento Europeu Roberto Musacchio compara uma resolução aprovada em 2005, que marcou os 60 anos da Segunda Guerra Mundial, à resolução aprovada neste ano. “O texto de 2005 é aberto com um agradecimento aos países que pararam o nazi-fascismo com sua luta e suas vítimas. Entre eles, explicitamente, a União Soviética. O ‘novo’ texto coloca as coisas ao contrário, e atribui o pacto Molotov-Ribbentrop como causa do nascimento do conflito.”

O totalitarismo do anti-totalitarismo: liberais e anticomunistas dão as mãos

Tudo isso não é muito diferente do que liberais e liberais progressistas fazem agora no Brasil. No final do ano passado, escrevi sobre comparações esdrúxulas entre Bolsonaro e líderes comunistas que começavam a surgir. A primeira foi feita pela intelectual Rosana Pinheiro-Machado, que no The Intercept escrevia que “O bolsonarismo repete a Revolução Cultural da China“. Depois, o comediante Gregório Duvivier estendeu a comparação a Lênin. A Revista Fórum, por sua vez, tentava associar Bolsonaro à República Popular Democrática da Coreia, ou Coreia do Norte.

Agora, o The Intercept mais uma vez solta a mão da corrente humanista dos liberais-progressistas para desferir socos contra os vermelhos. Lucas Berti escreve em “A pior direita: Bolsonaro quer ser Piñera, mas é um Hugo Chávez de sinal trocado“:

Continua após o anúncio

“Governos liberais de direita estão na moda na América Latina. Mesmo com a onda conservadora, Jair Bolsonaro ocupa uma posição singular. O fator de espanto é o radicalismo do governo Bolsonaro, único polo de extrema direita da região desde o final do ciclo de ditaduras militares, na década de 1980. […] Hoje […] a maioria dos governos se encaixa no espaço que ocupa o novo PSDB – bem mais para João Doria do que para Fernando Henrique Cardoso. No entanto, o partido do atual presidente, o PSL, não tem nada dessa centro-direita, que até virou exemplo de moderação no Brasil diante dos meses de barbárie em 2019. […] Mas, ainda que jamais vá admitir, Bolsonaro é uma cópia desajeitada, liberalesca e à direita de uma figura de esquerda: Hugo Chávez. São militares, ex-paraquedistas, anti-imprensa, anticiência, autoritários, homofóbicos, misóginos, populistas, nacionalistas. Apresentaram-se como alternativas antissistema, são contra o multilateralismo, devotos de causas religiosas, pautados por conspirações, apelam a um “perigo estrangeiro”, invocam pautas ideológicas e referem-se aos EUA o tempo todo.

Que bela peça nos dá Lucas Berti. Primeiro, demonstra que nossos liberais-progressistas nada sabem de América Latina – é que estão com a cabeça na França. O governo Bolsonaro é o “único polo de extrema direita” na região desde 1980? Então o Uribismo colombiano é, como Dória, “exemplo de moderação”? O mesmo vale para o Fujimorismo peruano?

Segundo, demonstra claramente como pensam os liberais-progressistas inspirados em Hannah Arendt: moralizam a estratégia e a forma, estrategizam a moral, para, por fim, defender a continuidade liberal-democrática como a única experiência viável e balanceada. Afinal, aqueles que “se apresentam como alternativas antissistema” no fim serão comparados a Bolsonaro – assim como a URSS, que efetivamente deu 50 milhões de vidas contra a besta nazista é, no fim, igual à fera que buscou combater.

Se algum religioso passar à política, ou se algum político evocar sua religiosidade – talvez como o padre guerrilheiro Camilo Torres – também poderá ser comparado a Bolsonaro. Os que tratam de “perigos estrangeiros” e fazem do debate ideológico algo público também serão, na verdade, um “Bolsonaro com sinal trocado” – Cuba, a qual o bolsonarismo sempre se volta como possível campo de refugiados de “esquerdistas” brasileiros, é um exemplo. As acusações caberiam até ao ex-presidente Lula: seria ele também um “populista”, como nossa direita “moderada” acusava pelos programas sociais? Talvez fosse ainda “anti-imprensa”, por tanto denunciar as perseguições contra si e seu partido nas manchetes.

Essas interpretações absurdas, da Ucrânia ao Brasil, sobre a Segunda Guerra ou sobre política latino-americana hoje, têm muito em comum:

1 – Elas rejeitam a moral como fator do poder; os objetivos são só um detalhe, de forma que o Império Romano, com sua agressividade, é comparável ao Jesus que espanca mercadores.*

Continua após o anúncio

2 – Elas também rejeitam as bases como fator do poder; não bastando as razões pelas quais se movem, as forças que buscam as razões são também todas iguais, não importando sua classe, sua cor ou sua história.

3 – Elas ignoram a “violência cotidiana”, imbecil e sem sentido, à qual estão submetidos os povos que vivem sob o liberalismo democrático; uma República que hoje faz fuzis policiais a extensão da chibata contra a pele escravizada de ontem é no máximo uma República “com falhas”. As mortes no campo são “violações”. A superlotação do sistema prisional é “um problema”. Quando se regride nos direitos trabalhistas conquistados com sangue, ou quando a corrupção movida por grandes empresas e políticos se revela endêmica, são questões de “retrocessos” e “desvios”. Ainda que todos essas questões sejam seculares, nossos liberais-progressistas vêem nelas apenas erros, vírgulas, detalhes, crases. Não percebem: isso é o alicerce do sistema que hoje defendem; e a depender de como está o sol ou as nuvens, a estrutura odienta se revela mais moderada, alegre, brilhante, ou mais sombria, opaca, fúnebre.

4 – Elas são, na verdade, absolutamente totalitárias; ao medir o mundo, a moral, a estratégia, os povos e a política pela régua democrático-liberal ideal, estabelecem logo que tudo o que não se adequar às medidas é igualmente funesto. Não podem haver alternativas antissistema: só o sistema, com toda a sua violência aceitável, que, enquanto mantém a carapuça, não escandaliza a Vila Madalena e a Praça São Salvador.

[rev_slider alias=”livros”][/rev_slider]

Notas:

* – Falei de Jesus e, assim, tornei-me também Bolsonaro.

Continue lendo

Cardeais deixam a Missa Pro Engleindo, logo antes de iniciarem a votação para eleger o novo papa, em março de 2013. (Foto: Jeffrey Bruno / Flickr)
Frei Betto: quem será o novo papa?
O primeiro-ministro israelense e o presidente dos EUA, Donald Trump, durante visita do mandatário norte-americano a Israel, em maio de 2017. (Foto: Amos Ben Gershom / GPO / Flickr)
Trump retomará o acordo nuclear entre o Irã e os EUA?
"Pressinto que o conclave responsável pela eleição do sucessor de Francisco não será tão rápido quanto os que elegeram Ratzinger e Bergoglio, que não ultrapassaram 48 horas." (Foto: Mazur/cbcew.org.uk / Catholic Church [England and Wales])
Frei Betto: sobre conclaves

Leia também

São Paulo (SP), 11/09/2024 - 27ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo no Anhembi. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Ser pobre e leitor no Brasil: um manual prático para o livro barato
Brasília (DF), 12/02/2025 - O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, durante cerimônia que celebra um ano do programa Nova Indústria Brasil e do lançamento da Missão 6: Tecnologias de Interesse para a Soberania e Defesa Nacionais, no Palácio do Planalto. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
O bestiário de José Múcio
O CEO da SpaceX, Elon Musk, durante reunião sobre exploração especial com oficiais da Força Aérea do Canadá, em 2019. (Foto: Defense Visual Information Distribution Service)
Fascista, futurista ou vigarista? As origens de Elon Musk
Três crianças empregadas como coolies em regime de escravidão moderna em Hong Kong, no final dos anos 1880. (Foto: Lai Afong / Wikimedia Commons)
Ratzel e o embrião da geopolítica: a “verdadeira China” e o futuro do mundo
Robert F. Williams recebe uma cópia do Livro Vermelho autografada por Mao Zedong, em 1 de outubro de 1966. (Foto: Meng Zhaorui / People's Literature Publishing House)
Ao centenário de Robert F. Williams, o negro armado
trump
O Brasil no labirinto de Trump
O presidente dos EUA, Donald Trump, com o ex-Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado Henry Kissinger, em maio de 2017. (Foto: White House / Shealah Craighead)
Donald Trump e a inversão da estratégia de Kissinger
pera-5
O fantástico mundo de Jessé Souza: notas sobre uma caricatura do marxismo
Uma mulher rema no lago Erhai, na cidade de Dali, província de Yunnan, China, em novembro de 2004. (Foto: Greg / Flickr)
O lago Erhai: uma história da transformação ecológica da China
palestina_al_aqsa
Guerra e religião: a influência das profecias judaicas e islâmicas no conflito Israel-Palestina