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Iniciativa “América Cresce”: América Latina para os Estados Unidos

Em meio à guerra comercial e geopolítica, Estados Unidos e China despejam dinheiro e disputam mercados e riquezas na América Latina e Caribe.

por Aníbal García Fernández | Celag – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera

No dia 16 de dezembro de 2019, a Agência de Comércio e Desenvolvimento dos Estados Unidos (USTDA) publicou uma convocatória para projetos de infraestrutura digital na América Latina e no Caribe, incluindo a instalação de cabos de fibra óptica, comunicação por satélite, conectividade e banda larga, automatização de serviços públicos, entre outros objetivos. Isso faz parte da “Iniciativa América Cresce”, que agrupa projetos de energia e infraestrutura com o selo da atual gestão republicana. Agora há também projetos em comunicações, cibersegurança, serviços digitais, modernização de portos, estradas, aeroportos e transportes, sobretudo de mercadorias. Esse impulso é parte da política America First de Donald Trump: a expansão da economia estadounidense no continente em disputa com outras potências, como China e Rússia, com destaque para a competição com a China em aspectos comerciais, telecomunicações e infraestrutura.

A Iniciativa América Cresce é responsabilidade de várias agências e departamentos do governo norte-americano, como o Departamento de Estado, de Tesouro, de Comércio e de Energia. Ademais, fazem parte a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), a USTDA, e a Corporação para Investimento Privado no Estrangeiro (OPIC), que mudou seu nome para Corporação Financeira Internacional para o Desenvolvimento dos Estados Unidos (DFC). Em 2018 se anunciou uma reestruturação da USAID e da OPIC com a Lei Build.

Um dos aspectos mais relevantes é o que se refere aos novos marcos regulatórios e estruturas de aquisições e compras governamentais abertas, transparentes e de fácil consulta via internet. O México é o melhor exemplo, já que lá a USAID financiou a adoção do Padrão de Dados de Contratação Abertos (OCDS, na sigla em inglês).

A criação e expansão desses marcos regulatórios fazem parte das estratégias do governo norte-americano para garantir a estabilidade e a certeza às suas principais empresas privadas que, se por um lado transcendem a atual administração, por outro se beneficiam de um giro importante dado pelo governo Trump. Desde sua chegada ao Executivo, Trump cortou o investimento de assistência para o desenvolvimento (especialmente aquele que ocorria de forma bilateral). A assistência é uma forma de investimento (ainda que não se apresente assim nos discursos oficiais) e, como tal, gera endividamento e aprisionamento a determinadas condições para que seja recebido.  Na gestão atual, o investimento é propiciado de forma mais direta pelo setor privado e corporações empresariais (como a OPIC), em concordância com os objetivos e retórica republicado, mas que de qualquer forma garante o acesso a mercados e o endividamento por parte dos países que o recebem.

América Cresce (ou expansão dos EUA na América Latina)

A Iniciativa America Cresce inclui a maioria dos países da América Latina e Caribe, exceto Venezuela, Cuba e Nicarágua, que estão fora por motivos políticos, geopolíticos e que, além disso, são alvos de sanções econômicas que têm o objetivo de depor os atuais governos.

O caso do México é de vital importância. O novo T-MEC (Acordo Estados Unidos-México-Canadá) incorpora novos aspectos em matéria trabalhista e energética, e abertura de setores estratégicos que começaram gradualmente desde a década de noventa (e que, devido às reformas estruturais de 2012, setores como telecomunicações e hidrocarbonetos, adquirirem maior relevância). Precisamente, um dos planos para o setor privado norte-americano se encontra no guia “Grandes Projetos de Infraestrutura no México“, publicado pela USTDA em 2014. Até 2019, vários projetos começaram a se materializar no setor energético, e faltam outros como o projeto do trem transpeninsular, projeto antigo que foi um dos principais objetivos dos Estados Unidos no México desde o século XIX (Tratado McLane-Ocampo). Por último, o Plano de Desenvolvimento para a América Central proposto pelo presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) contará com recursos dos Estados Unidos e também da União Europeia.

No Caribe, como informamos antes, uma das grandes apostas é na energia. Para 2020 está pensada a criação de um Terminal de Gás Natural Liquefeito (GNL) e da Planta de Energia na República Dominicana. Este é um dos temas em disputa com a China, país que também tem projetos de infraestrutura energética nessa região.

O único projeto subregional é para os países do Triângulo Norte da América Central, onde se planeja o desenvolvimento de infraestrutura de comunicações, transporte e energia. Em Honduras, um dos projetos energéticos já construídos foi a planta geotérmica de Platanares. Tal planta foi construída pela empresa estadounidense Ormat Technologies e pela hondurenha Electricidad Cortes (ELCOSA). Atualmente fornece energia a cem mil casas, e foi um dos projetos que contou com o apoio do BID/USTDA.

Na Guatemala os projetos já anunciados foram a construção de habitação social e de um parque industrial; um plano de interconexão elétrica e a construção de um trecho de estradas que seria privado. O projeto de interconexão não é novo, vem já há anos como parte do projeto Mesoamérica.

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No Panamá, um dos acordos entre a USTDA e o governo é para a capacitação de altos funcionários para a análise de custos na aquisição de infraestrutura. A iniciativa é encontrada em mais onze países. Entre os projetos de infraestrutura mais importantes que se encontram atualmente no Panamá e que poderiam entrar na iniciativa de fomento a investimentos está o metrô do Panamá, o Porto de Containers de Colón e o Porto de Transferência de Corozal.

No caso do Peru, como no Panamá, estão para serem assinados acordos energéticos. Um Memorando de Entendimento está sendo avaliado. Com o Panamá se avançou também um projeto energético para que o país se converta em um ponto de conexão energética e gere mais eletricidade com gás natural liquefeito proveniente dos EUA. Em ambos os casos se desconhece ainda o tipo de acordo e as condições para financiar estes projetos que, no passado, foram via de endividamento e modificações de leis para permitir a entrada de capital estadounidense.

No Brasil, os projetos são em energia e infraestrutura de transporte de mercadorias, sobretudo em estradas, aeroportos, portos e infraestrutura ferroviária. Desde 2016, depois do golpe contra Dilma Rousseff, o processo de privatizações e liberalização de licitações a empresas privadas nacionais e estrangeiras é parte de um processo ansiado pelo setor privado norte-americano e que forma parte da Iniciativa América Cresce. Neste caso, se incluiu também o setor financeiro e há planos para a reestruturação do Banco de Nacional de Desenvolvimento (BNDES).

China na América Latina e Caribe (ou o freio para o America First)

Nos últimos anos, vários países da América Latina e Caribe se associaram comercialmente de forma mais sólida com a China, que já é o principal parceiro comercial da Argentina, Brasil, Chile, Peru e Uruguai. Além disso, é o segundo parceiro comercial do México e da Colômbia (aliada incondicional dos EUA), que já começou a estreitar relações com a China. Os principais investimentos chineses são em infraestrutura, energia, manufatura, inovação tecnológica, agricultura e tecnologia da informação. No total, o comércio de janeiro a novembro de 2019 da região com o país asiático foi de 286,8 bilhões de dólares.

Esta expansão da presença comercial e do investimento chinês pode ser lida em um contexto de guerra com os EUA, que vai mais longe do aspecto econômico, chegando a aspectos geopolíticos. É evidente a disputa por recursos estratégicos e espaços para o capital em áreas como energia e infraestrutura de portos, estradas e aeroportos, três formas mediante as quais se pode fazer o transporte de mercadorias. Menos visível é a importância das chamadas “terras raras” nesta disputa. Neste caso os EUA têm uma alta dependência na China (80%).

Perspectiva e prospecto de 2020

A presença chinesa na região aumentou acentuadamente desde o início do século XXI através de empréstimos a governos latino-americanos, investimentos e empresas. Isso implica a criação de empregos e valor. Esse é um dos itens fundamentais, uma vez que a transferência de valor da América Latina e Caribe não parou de fluir, agora, com maior importância para a China, aspecto que os EUA pretende modificar a seu favor.

A criação da Iniciativa América Cresce inclui acordos de livre comércio com vários países (o mais importante é o T-MEC) articulados com estratégias militares, como a Iniciativa Mérida, o Plano “Paz Colômbia”, a Iniciativa Regional de Segurança para a América Central (CARSI), a Aliança do Pacífico e a Iniciativa de Segurança do Caribe.

Por fim, a Iniciativa América Cresce visa colocar as exportações de gás na região. A reforma energética de 2012 no México abriu caminho para a exportação e conexão de gás com a América Central. Por sua vez, Colômbia, Equador, Peru e Chile entram nessa estratégia por meio da infraestrutura de energia elétrica. O golpe de estado na Bolívia pode se inscrever nessa disputa por recursos (reservas de gás e lítio) e será necessário ver que espaço terá nessa iniciativa.

O depósito petrolífero de Vaca Muerta na Patagônia argentina, bem como o controle das reservas de hidrocarbonetos do pré-sal no Brasil, terminam completando um mapa conhecido pelos interesses públicos e privados dos EUA de longa data no continente e que são exacerbados na luta com outros poderes. A Venezuela continua sendo o espaço em disputa nesse cenário (com alianças cada vez mais estreitas com a China e a Rússia).

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