Na manhã do dia 4 de maio, uma segunda-feira, quando eu me preparava para começar a escrever este perfil, recebi uma mensagem de Roberto Didio pelo WhatsApp: “Estava mandando pra você um áudio sobre a importância do Aldir na minha vida. Me perdoa. Hoje não consigo”.
Foi assim que fiquei sabendo da morte do compositor Aldir Blanc, que estava internado desde o dia 15 de abril no Hospital Pedro Ernesto, em Vila Isabel, Zona Norte do Rio de Janeiro. Com diagnóstico positivo para Covid-19, o autor de O Bêbado e a Equilibrista foi o primeiro grande nome da música brasileira a morrer em decorrência do coronavírus. O Brasil, até o fechamento desta reportagem, contabilizava mais de 20 mil mortes causadas pela doença.
Na noite desse mesmo dia 4, Didio publicou no Instagram um texto de sua autoria, escrito no olho do furacão, em que lamenta a morte de Aldir. Reproduzo os seguintes trechos:
“O manto da Santa é feito de pano de mesa de bilhar, marcado três vezes por cigarro aceso. E a Santa se desmanta pra cobrir a puta nua, tremendo de frio. A Santa sopra o grão de sujeira enterrado na unha do mendigo. (…) A Santa viu em você Homero, Ibsen, Mallarmé, Dostoiévski. A Santa riu de almas obesas despedaçando cadeiras e caindo de bunda no salão nobre da Academia Brasileira de Letras, riu do fardão manchado de molho de tomate de caixinha. (…) A Santa lhe protege, lhe agradece e beija sua mão fria. E beija de brisa netos, bisnetos, filhas, companheira. A Santa é por você. A Santa permite, no íntimo taciturno do confinamento, que cada um de nós se despeça à sua maneira. (…) A Santa é a Música. E eu já não sei mais escrever versos.“
Atribuo a frase final à emoção do acontecimento, certamente amplificada por doses generosas de boulevardier, seu drinque preferido. Roberto Didio sabe escrever versos muito bem e tem conseguido algo raro no meio musical: gozar das vantagens do anonimato — condição que cultiva como quem cuida de uma orquídea — e ao mesmo tempo ser elogiado e gravado por alguns de nossos melhores intérpretes.
Ele voltou a me escrever, dois dias depois, passada a ressaca da perda. Ainda abalado, confidenciou-me que o baque havia sido mais forte do que o esperado. Aldir Blanc era uma referência onipresente em sua escrita — sem, contudo, constituir nela qualquer sinal de pastiche. O que há em sua escrita, segundo Paulo César Pinheiro, maior letrista vivo do Brasil, é a continuidade de uma história que começa lá atrás e de tempos em tempos dá bons frutos.
No dia 23 de dezembro de 2010, o jornal Correio Popular, de Campinas (SP), publicou entrevista com Paulo César Pinheiro, feita por mim, onde o compositor cita pela primeira vez o nome de Roberto Didio, letrista que ouvira recentemente. Destaco os seguintes trechos da conversa:
BR — Você acha que os letristas estão acabando ou é o próprio formato da canção que está em desuso?
PCP — Olha, não sei o que aconteceu. Eu sinto muita falta de letristas novos. Na minha época, a leva de letrista era enorme. Os letristas que praticamente sustentaram a música brasileira vieram da década de 1960 — Sidney Miller, Torquato Neto, Capinam, Vitor Martins, Abel Silva, Aldir Blanc… Estou torcendo para que desça uma falange como essa.
BR — Não há ninguém no horizonte?
PCP — Tem uns meninos no CD de estreia do Gabriel Cavalcante (O Que Vai Ficar pelo Salão). Esse álbum me é muito familiar. As músicas são fortes, muito boas. Se não me engano, as letras são de um rapaz chamado Roberto Didio.”
Didio mostrou-se surpreso: “Nunca imaginei que Paulinho Pinheiro soubesse da minha existência”, disse naquela ocasião. Mal sabia ele que, quatro anos depois, viriam a ser muito próximos: em 2014, um ano depois de se mudar de São Paulo para o Rio de Janeiro, Roberto Didio se casa com Ana Rabello, filha de Paulo César com a cavaquinista Luciana Rabello
No mês passado liguei para Paulo César Pinheiro e falamos de sua relação com o genro. O poeta reiterou o que disse há dez anos: “Didio faz parte de uma raça quase extinta. O que se faz em versos hoje no Brasil está muito abaixo do que fazíamos antes, mas ele acompanha o nível dos grandes letristas — o que também o torna um cara bastante solitário, que não tem com quem discutir.” E completa: “No Brasil, a canção tem um peso grande. Eu sou um escritor e Didio é também. Para além da letra de música, quero que ele entre na literatura de poesia.”
Didio justifica o fato de até hoje não ter publicado os dois livros que tem engavetados, apesar dos ótimos poemas contidos neles: “Nunca me espantei com nada que eu tivesse escrito, pois sou muito crítico. Posso até gostar hoje, mas amanhã não quero nem ler o que escrevi.”
Esse traço casmurro de sua personalidade o acompanha desde a adolescência, quando o jovem começa a arriscar os primeiros versos em segredo, sem mostrar a ninguém. Um de seus poemas preferidos é Recordos, do livro Beberências, ainda inédito:
Quebrei-te a marteladas
Mármore do futuro
Metafórmico. És pó
Parede esfacelada.
Doutro lado do muro
Jiló, mamão maduro
Rede dependurada
Me balanço no escuro
Fecho os olhos, murmuro:
Ah, vontade danada!
Rosa branca, te juro
Não te sonho ou procuro
Tuas pétalas flambadas
-mel quente em seio duro-
Desfolhei num sussurro
Uma das discussões mais antigas e polêmicas da cultura no Brasil gira em torno da relação entre poesia e canção. Poderia uma letra de música ser considerada poesia? Muitos especialistas, entre poetas, compositores e críticos literários, têm posição quanto a isso. Nunca, porém, chegou-se a um consenso. O poema acima, por exemplo, não foi feito para ser musicado e difere, em estilo, do que Roberto Didio costuma produzir pensando em canção.
Para ele há diferença nas formas de utilização da palavra, mas a letra de música é poesia sim (embora não o seja necessariamente): “O fazer poético está nos dois ofícios. E o Brasil é demais. Pense na confluência estética — poesia publicada em livro e poesia musical registrada em disco — presente na obra do poeta Paulo César Pinheiro. Conhece algo semelhante em qualquer parte do mundo?”
Didio abomina comparações, mas seu trabalho demonstra ter a mesma potência presente na obra de letristas de música que também fizeram poesia de livro, ou vice-versa, como são os casos de Vinicius de Moraes, Hermínio Bello de Carvalho, Torquato Neto, Aldir Blanc e do próprio Paulo César Pinheiro.
Os poemas e as letras de Didio têm estilos bastante diferentes, como foi dito. Mas são muitas as suas letras de música que resvalam nas altitudes da poesia. Um exemplo é Bicicleta Ruidosa, feita para melodia de Renato Martins e gravada por Anabela no CD Cidade das Noites.
Pra que rememorar?
Cartas mentem mais quando envelhecem
Retratos salvam os rostos da morte
Depois, de solidão amarelecem
Quem por prazer não esquece
De um jeito ou de outro padece
Nunca gostei de recordar.
Hoje meu corpo é um baú de garrafas vazias
Jogado nos fundos da casa
De um colecionador de boemia
Cinzeiro de sótão, sombra nos vitrais
Ou poeira arredia nos instrumentos musicais?
Vivendo esquecido
— quem sabe? —
Pra nunca lembrar
Que o passado surge de repente:
Garoto em bicicleta ruidosa
Atrás da gente.
Na definição do compositor Moacyr Luz, parceiro de Aldir Blanc, o bairro do Andaraí é “aquele Rio atrás dos morros onde o Rio é menos branco: Zona Norte. É a fila do autocarro e o comboio lotado, não tem nada que a Zona Sul saiba que quer; nem praia, nem lagoa, nem charme, nem floresta.” É nessa paisagem suburbana que encontraremos Roberto Didio, também parceiro de Moacyr em algumas composições.
No entanto, apesar de residir relativamente perto do Renascença Clube, fundado em 1951 como reação da comunidade negra aos intransponíveis clubes dançantes da Zona Sul carioca — e onde há 15 anos Moacyr Luz dava início ao Samba do Trabalhador, uma das rodas mais concorridas do Rio —, Didio leva uma rotina que dispensa agitações e lugares lotados. Desde que passou a encarar a composição como meta, tem saído pouco do apartamento que divide com Ana.
Mora há oito anos numa rua arborizada, vizinha ao Morro do Andaraí, onde quase não passam carros. Os sons que se escutam durante o dia vêm dos pássaros. Durante a noite ouve-se ao longe o ressoar dos tambores sagrados “nos quintais de sabedoria”, como ele define os terreiros. O letrista forjou um ambiente propício para a introspecção e a produção literária. Produção que classifica como “fruto de um processo nada glamoroso, mas angustiante e exaustivo”.
Segundo Didio é “preciso comer muita grama” para que um compositor possa “encontrar o seu selo, a sua marca”. O controle pleno da objetividade e da subjetividade é técnica indispensável neste processo — e isso se obtém por meio de dois fatores: o trabalho intelectual e o aguçamento da sensibilidade. Se o primeiro está condicionado à leitura e à escrita metódicas, o segundo varia de pessoa para pessoa.
“Nunca bebo compondo. Nunca. É disciplina total. Estudo, labuta.”, faz questão de frisar o compositor. No entanto, nas horas vagas, não abre mão da companhia de um destilado, sua categoria predileta entre as bebidas alcoólicas. Seria a sua forma de “aguçar a sensibilidade?”
Cuida de sua coleção de garrafas com o esmero dispensado aos livros: cachaças, runs, uísques, vodcas e licores, separadas por marcas e procedências, locupletam uma espécie de cristaleira na sala. É ali que ele costuma estudar, compor ou simplesmente devanear com um copo na mão, embalado por algum clássico do jazz (John Coltrane, Miles Davis, Chet Baker, Ella Fitzgerald e Thelonious Monk jogam no time titular).
Certa vez, comentando sobre a natureza etílica do compositor, a cantora Anabela Leandro, de Campinas, cunhou uma frase lapidar sobre Roberto Didio: “Um camarada que você convida para tomar sorvete e ele escolhe o de passas ao rum.” Foi dessa forma que ela me apresentou o letrista que acabara de conhecer numa roda de samba em São Paulo — e é claro que me identifiquei imediatamente com ele. Isso se deu por volta de 2004.
Na época, assim como seu pai antes dele, Didio era chofer de praça. Tão logo vendeu o táxi, começou a trabalhar numa empresa de recursos humanos e ir a Campinas uma vez por semana para reuniões de trabalho. Foi quando passamos a nos encontrar, após o expediente, num botequim pé-sujo na Avenida Francisco Glicério. Um período curto, mas intenso em troca de ideias. Conversávamos mais sobre política do que qualquer outro assunto. Descobrimos que nossas afinidades musicais e literárias estavam alinhavadas por uma teimosa esperança socialista na humanidade — hoje deveras abalada.
Anabela se recorda bem desse tempo. Sua casa (sede do Núcleo de Samba Cupinzeiro onde mora com o músico Edu de Maria, seu companheiro) era parada certa nas visitas semanais do compositor. “Um dia ele saiu do trabalho e passou em casa. Nem o reconheci quando chegou de terno e gravata. Entrou com uma cara triste, foi direto ao banheiro e saiu de bermuda, camiseta e chinelo, sorridente e pedindo uma cerveja. Assim passamos duas horas conversando na varanda — ou no caramanchão, como ele gosta de dizer. Depois colocou novamente o terno, a cara triste e partiu.”, diz.
“Me identifico com figuras solitárias, marginais, que passam pela vida sem realizar grandes feitos.”
Roberto Didio nasceu na maternidade da Vila Carrão, Zona Leste de São Paulo, em 15 de junho de 1975. Era um domingo e, com gols de Zé Roberto e Vaguinho, o Corinthians bateu o Palmeiras por 2 a 0, em partida válida pelo Campeonato Paulista. Pouco mais de 50 mil pessoas acompanharam a vitória do Timão nas arquibancadas do Pacaembu. Mas um motorista de táxi chamado Roberto Jesus Didio, corintiano de quatro costados, não estava em meio aos torcedores porque se encontrava no hospital, esperando a mulher, Elaine Reis, concluir o parto do filho.
O menino Roberto Didio, filho do taxista alvinegro, passou a infância toda no Tatuapé. Pelo menos até o fim da década de 1980, o bairro registrava pouca ocupação residencial, geralmente constituída por famílias de baixa renda que trabalhavam no setor industrial. O Tatuapé foi basicamente um bairro operário até que os galpões das fábricas começaram a ser desativados para dar lugar a condomínios de alto padrão.
A família de Didio morava na Rua Platina, nº 595, numa casa de classe média onde também vivia a avó materna, Rosa Gonçalves, que ajudou em sua criação e foi a primeira pessoa a despertar no menino o interesse pela música. Quando estava costurando ou cozinhando, Rosa costumava cantar sambas antigos da Mangueira e canções que não se ouvia no rádio.
Didio descreve poeticamente a casa sob a perspectiva de quem entra: “O portão era vazado, sacolejado diariamente por boladas, de dentro pra fora e de fora pra dentro. A portinha de alumínio do registro d’água era a guardiã das latas de cola de madeira — ingrediente do cortante usado na linha da pipa — e da mangueira azul, serpenteada na torneira e no encanamento. Pendurado em uma das vigas de madeira havia um saco de pancadas bem robusto. Boxe era uma das paixões de meu pai e também fui vidrado por muito tempo nesse esporte.”
O pai de Roberto Didio entendia tudo da “nobre arte” e com ele aprendeu os primeiros fundamentos. Lembra-se de terem visto lutas históricas de Mike Tyson na TV. No entanto, o primeiro pugilista que o garoto viu pessoalmente foi Erotildes Ferreira do Carmo, conhecido como Mestre Baltazar. Longe dos ringues há muitos anos, dedicava-se a dar aulas de boxe no Centro Esportivo Tatuapé.
Didio frequentava o clube do bairro e o viu treinar algumas vezes. Diziam que Baltazar nunca havia sido nocauteado — hipótese que conferia ares proféticos ao velho pugilista. Mas a verdade é que Baltazar nunca foi campeão de coisa alguma, embora tenha treinado vários atletas que viriam a fazer carreira no boxe profissional. Ele era um tipo que não gostava de disputar títulos. Seu negócio mesmo era desafiar os campeões do Brasil e da América do Sul para lutas que não valiam nada e para as quais quase não havia testemunhas. Era uma forma de adular o próprio ego.
Seu primeiro e mais importante treinador foi Waldemar Zumbano, tio de Éder Jofre e comunista ferrenho, dono de uma academia na Avenida São João. Zumbano acreditava que um bom pugilista, além de técnica apurada, tinha de ter sólidos princípios de solidariedade, dentro e fora dos ringues. Quando Baltazar morreu veio à tona a informação de que durante anos dera aulas de boxe para centenas de jovens, incluindo meninos de rua, num local sem água corrente e sem iluminação. E sem ganhar um centavo por isso.
O último gongo soou para Mestre Baltazar no dia 23 de março de 2009, após parada cardíaca resultante de um AVC. Ele tinha 78 anos segundo a certidão de nascimento, embora dissesse ser pelo menos dez anos mais velho. Segundo a Liga Paulista de Boxe Profissional, em nota de pesar, o lendário pugilista teria morrido nas dependências do próprio Centro Esportivo Tatuapé, sozinho no pequeno quarto onde vivia em condições precárias. As informações quanto a isso, no entanto, são conflitantes. Em respeito à lenda, tão somente, cabe dizer que Erotildes morreu invicto, sem jamais ter beijado a lona.
Contar a história de Baltazar é importante, uma vez que personagens populares como ele povoam o imaginário de Roberto Didio desde a infância e estão presentes em sua poesia. “Me identifico com figuras solitárias, marginais, que passam pela vida sem realizar grandes feitos, mas que vivem de modo original e de alguma forma deixam a sua marca.”, diz.
Zelão é um desses personagens que habitam a memória do letrista. Aos 13 anos, em 1988, Didio se junta à torcida do Corinthians e passa a frequentar os estádios sem a supervisão paterna. José Ourelhano Laurindo, o Zelão, era dono de uma barraca que vendia pernil e biritas suspeitas para a rapaziada tomar no “esquenta” do jogo. Ele é citado na letra de Hino do Futebol Moderno, faixa presente no álbum Gerais.
“Zelão era santista, mas gostava da gente. Um cara que torcia para o Santos, mas preferia andar com a Gaviões da Fiel! Isso só poderia acontecer dentro da realidade corintiana.”, afirma o compositor, para quem as arquibancadas do Pacaembu foram bancos de escola. “O futebol há trinta anos era diferente — e não se trata de saudosismo. É indescritível a emoção que sente uma criança ao entrar no estádio de mãos dadas com seu pai e ver o vendedor de amendoim pulando o muro para escapar do fiscal, aquele mar de bandeiras, os rojões de fita, a batucada da torcida… Nada disso existe mais. Mas dentro de mim essas lembranças ainda vivem e me impulsionam.”, diz.
Como membro da torcida organizada, o jovem aprendeu a conviver com códigos de amizade exclusivos daquele universo. “Na Gaviões havia uma convivência democrática muito interessante. Transitei por toda a periferia de São Paulo: Vila Sabrina, Capão Redondo, São Miguel Paulista, bairros onde os amigos de torcida moravam.” E completa: “Não foi através do código oficial de aprendizado que adquiri bagagem intelectual. Sempre detestei o colégio, não suportava aquela molecada malufista. Fui um péssimo aluno.”, revela o letrista.
Ao jovem Roberto Didio não faltavam amigos. Mas, ao mesmo tempo em que tinha uma vida social intensa, era também bastante solitário. “Algo sempre me incomodava. Eu me sentia terrivelmente sozinho em várias situações, sem saber a razão”, diz. Essa fase coincide com a época em que começa a trabalhar e a ler compulsoriamente os livros que comprava nos sebos do centro da cidade com o salário do Banco Bradesco, onde era contínuo.
Dos 14 aos 18 anos constrói seu universo literário sem a ajuda de ninguém. Em casa a leitura era prática inexistente, mas ele compensava lendo por toda a família. A exceção era a tia Regina, irmã de seu pai, que de algum modo foi um espelho. “Ela havia estudado Letras, falava francês, tinha um papo interessante. Lembro-me dela com uma edição de A Náusea, do Jean-Paul Sartre, nas mãos.”, conta. Até hoje Regina é uma das poucas pessoas a quem Didio mostra seus escritos.
Junto ao futebol, a leitura lhe abriu as portas para um mundo novo. O poeta chileno Pablo Neruda foi o primeiro autor a despertar no jovem um sentimento indecifrável, diferente de tudo o que havia sentido até então. Neruda leva o rapaz aos poetas de língua espanhola, como Jorge Luís Borges e Garcia Lorca. E, depois deles, aos brasileiros.
Didio passa a atribuir a João Cabral de Melo Neto o mesmo peso de um Sócrates, ídolo maior no futebol, a quem viu jogar quando criança. “João Cabral me faz sentir na pele o bisturi contornando a palavra”, diz. Em uma de nossas antigas conversas de botequim, ouvi de sua boca descrição parecida de como Dr. Sócrates fazia passes e lançamentos com “precisão cirúrgica”.
Sócrates Brasileiro morre em 4 de dezembro de 2011, em decorrência de uma cirrose hepática. Três anos depois, em plena Copa do Mundo no Brasil, Renato Martins e Roberto Didio entram em estúdio para gravar Gerais. Não era a primeira vez que faziam isso: a dupla havia registrado composições nos discos de Anabela (Cidade das Noites, 2009) e Gabriel Cavalcante (O Que Vai Ficar Pelo Salão, 2010). Era, porém, a primeira vez que gravavam um álbum voltado a um tema específico: o futebol. Uma das faixas — Samba pro Magro — é dedicada a Sócrates.
A ideia foi de Didio. Seu objetivo era homenagear o pai, com direito à dedicatória no encarte e canções que evocassem memórias da infância ao seu lado. Assim como o ídolo corintiano, Roberto Jesus morrera muito cedo, aos 45 anos, de complicações no fígado, também por conta da vida desregrada. Era um tipo alto e forte, cuja paixão irracional pelo Corinthians o metia em constantes brigas. Não obstante, foi um bom pai. “Era meu grande amigo. Me levou para ver Sócrates jogar e me fez corintiano.”, diz o compositor.
Roberto Didio brinca que Gerais foi “pensado para ser um fracasso”. Era tão somente uma ação entre amigos, produzida com recursos próprios e sem qualquer ambição comercial. O texto de apresentação do encarte, assinado por ele, não deixa margem para dúvidas: “Não esperem músicas para se cantar nas multidões. Indiferentes às modas e determinismos de gênero musical são meus versos.”
No entanto, ao contar a história de sua infância a partir das recordações de um futebol utópico, Didio criaria uma obra universal. Gerais repercutiu além do esperado e mereceu elogios rasgados de compositores como Douglas Germano, que escreveria em seu blog a resenha definitiva do álbum. Há trechos dignos de nota, como estes:
“O novo disco de Renato Martins e Roberto Didio será referência pétrea para quem quiser entender o futebol no universo da cultura brasileira daqui pra diante. É Corinthians. Já não é pouco, mas não é só isso. É futebol, mas também não é só isso. É a cabeça brasileira do torcedor de futebol de gerações passadas até a mais recente. Sim, e isso é muito. (…) É cinema. É cinema requintado pois permite a você montar tua cena com seus próprios retalhos de memória, posto que não direciona, mas dá pistas insinuantes, sensíveis e precisas. (…) Fiquei sem apoio. A gente procura se apoiar quando toma essas pancadas e, nesse esforço, me lembrei do filme ‘O Fabuloso destino de Amélie Poulain’. A personagem encontra, acidentalmente, em um vão de uma das paredes de sua casa, uma caixa de metal envelhecida pelo tempo. Abre a caixa e encontra figurinhas, soldadinhos de chumbo, carrinhos. Entre as delicadezas todas que a personagem comete no filme, ela se esforça para encontrar o dono da caixa e devolvê-la. O dono agora é homem feito nos 50 anos, aparenta certa sisudez, certa amargura. Ela consegue fazer a caixa chegar ao dono. A reação do homem reencontrando sua caixa de brinquedos foi a minha na primeira audição de ‘Gerais’. (…) As letras contêm pérolas aos montes. Tanto tempo é necessário para surgirem as pérolas. Roberto Didio é um craque em não dizer o que ele quer que você entenda. E você entende.”
A segunda faixa do disco é Saudade do Meu Avô, homenagem a seu avô paterno, Didio Nikola, que era iugoslavo. Nascido em Putinci, vila situada na província de Vojvodina, ele chega ao Brasil junto com os pais, aos 4 anos de idade, em 1929 — mesmo ano em que sua terra natal passa a se chamar Iugoslávia (antes era o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, estado-nação formado pelo Tratado de Versalhes ao fim da Primeira Guerra Mundial).
Como nunca se naturalizou brasileiro, Nikola Didio passou a vida toda sendo chamado pelo nome que constava no passaporte: Didio Nikola (na Europa é comum que o sobrenome esteja à frente nos documentos). Na mocidade se casa com a brasileira Isaura Gargarelli e juntos mantém por anos uma barraca na feira da Rua Tuiuti, onde vendiam chapéus feitos à mão pela mulher. Além da atividade de feirante, que funcionava mais como um complemento de renda, Nikola fazia bicos na equipe de segurança do deputado Wadih Helu, presidente do Corinthians de 1961 a 1971.
Helu foi tido, até a sua morte, persona non grata pela Gaviões da Fiel. No site da torcida consta a informação de que, durante os anos em que esteve na presidência do clube, o dirigente fez de tudo para impedir a criação da organizada. Dentre os expedientes utilizados por seus capangas estavam represálias, intimidações e “outros atos característicos do tempo da ditadura.”
De nada adiantou. No dia 1º de julho de 1969, a Gaviões surgia do esforço coletivo de um grupo de amigos que tinham corações revolucionários e enxergaram na paixão pelo Corinthians um canal para o engajamento político da massa. O principal objetivo da rapaziada era derrubar Wadih Helu. Logo passou a ser a luta contra a ditadura.
O avô de Roberto Didio, apesar de corintiano, odiava a Gaviões. “Era natural que fosse assim. O velho era guarda-costas do Wadih Helu”, argumenta Didio. De certa forma, aqueles torcedores politizados e encrenqueiros representavam uma ameaça ao seu emprego. “Imagine a indignação do iugoslavo quando soube da minha filiação à torcida organizada”, diz o compositor.
Mas ele conta que houve um instante de trégua entre Nikola e os gaviões. Uma reconciliação que durou duas horas, mas que parece ter simbolizado a redenção definitiva do avô, na visão do letrista. E ele se deu no velório de Roberto Jesus Didio, no dia 8 de julho de 2000: “Num gesto comovente de solidariedade, a Gaviões da Fiel apareceu para se despedir do meu pai. Acho que havia umas setenta pessoas no cortejo. O pessoal uniformizado, carregando bandeiras, tudo muito respeitoso. Lembro de olhar para o meu avô nessa hora e ver os seus olhos marejados. Uma cena da qual nunca me esqueci.”
Em Saudade do Meu Avô, Didio cita o quadro que o velho guardava no armário com a foto do Corinthians campeão de 1951 e sua mítica linha de frente — que levou o time a marcar mais de cem gols no Campeonato Paulista daquele ano. No quadro, o jogador Cláudio aparecia com o rosto desbotado pela ação do tempo, quase invisível. Por esse motivo — em respeito à precisão da memória infantil — ele não é citado na letra da canção, ao contrário dos demais companheiros de ataque. Quem a interpreta em Gerais é Amélia Rabello. Didio Nikola morre em 2014, aos 87 anos, pouco antes da gravação do disco.
Domingo era meu dia de futebol
Eu era rei nos ombros seus
Pensando que podia até tocar o sol
Beijando a camisa que você me deu
Domingo ainda é dia de futebol
Olhando pro céu outra tarde morreu
Aquelas estrelas pequenos faróis
Será que são seus olhos nos meus?
Sua fotografia o tempo pintou de amarelo
Não tem mais varanda, quintal e portão
Cachaça, canteiro, chapéu e chinelo
Saudade do cheiro da madeira do seu violão
Olho praquela cadeira que não balança mais não
Procuro depressa uma recordação
O quadro bem guardado em meu armário:
Luizinho, Baltazar, Carbone e Mário.
“O ser sambista está ligado à vivência; não só à ancestralidade, mas ao modo como se vive.”
Renato Martins, 36 anos, é o autor da melodia de Saudade do Meu Avô. Músico autodidata, aprendeu a tocar violão na noite, observando e ouvindo os mais velhos. Aos 14 anos já frequentava rodas de samba em São Paulo. Dentre os parceiros constantes de Roberto Didio, ele é o mais antigo.
“Encontrar Renato foi como encontrar comigo mesmo.”, define Didio. Antes dele, o letrista havia cometido parcerias com alguns amigos, mas diz que ainda estava “muito verde”. Prefere considerar o período anterior como “uma fase experimental” da carreira. A chegada de Renato Martins dá início à construção de uma verdadeira obra.
O violonista tem a mesma opinião a respeito do parceiro. “Quando conheci o Roberto, ele já era um letrista e se via dessa forma. Eu nunca havia feito nada, mas ele prestou atenção no meu violão e me deu vários toques importantes. Foi com ele que virei compositor”, afirma.
Renato e Roberto se conheceram no Grêmio Recreativo de Tradição e Pesquisa Morro das Pedras, agremiação sócio-cultural fundada em 2001 e sediada no Jardim Rodolfo Pirani, em São Mateus, Zona Leste da capital paulista. Didio estava entre os fundadores e lembra que o coletivo tinha como ideal “defender, cultuar e pesquisar o samba e suas tradições.”
Além do trabalho social que prestava à comunidade por meio de cursos e oficinas, a reverência aos sambistas do passado era o diferencial do grupo. Suas rodas, como cravou certa vez a cantora Cristina Buarque, poderiam durar até oito horas sem repetir o repertório. É bem possível que os integrantes do projeto, naquela época, fossem os únicos em São Paulo a cantar músicas de compositores esquecidos, como Paulo da Portela, Carlos Cachaça e Aniceto do Império, entre outros.
Em 2007, Cristina foi convidada a se apresentar no Teatro Fecap, em show produzido por Homero Ferreira. Como condição pediu para ser acompanhada pelos batuqueiros do Morro das Pedras. Dois anos antes ela estivera na roda do grêmio participando de uma homenagem ao portelense Alvaiade — e foi amor à primeira vista. Como, porém, o projeto havia encerrado as atividades no final de 2006, era preciso criar um nome para o grupo que iria acompanhar a cantora. Didio sugeriu que fosse Terreiro Grande, baseado no samba de Wilson Moreira e Paulo César Pinheiro.
A dobradinha com Cristina deu tão certo que o show ficou em cartaz por duas semanas e acabou virando CD — algo que não estava nos planos. O disco Cristina Buarque e Terreiro Grande Ao Vivo, contendo 37 músicas divididas em quatro blocos, foi finalista do Prêmio Tim de Música Brasileira e considerado pela crítica um dos melhores álbuns de samba da primeira década do século XXI. Cantora e grupo voltariam ao Teatro Fecap para um show em homenagem a Candeia — que também viraria disco, em 2010.
Na ocasião do primeiro show, em 31 de agosto de 2007, a Folha de S. Paulo publicou uma matéria, assinada por Luiz Fernando Vianna, que abordava questões relacionadas à ideologia do grupo. O texto começava com uma pergunta seguida de resposta: “Como explicar que 15 amantes radicais de samba não gostem de Zeca Pagodinho? É porque eles são radicais, e aí estão a peculiaridade e a qualidade desse grupo.”
Além de frisar que a “opção não é capricho de jovens de classe média” e de ressaltar que o grupo era “formado por músicos amadores, moradores de bairros de classe média baixa de São Paulo, nenhum com curso superior (um porteiro, um metalúrgico, dois vendedores, um auxiliar administrativo, cinco desempregados…), e o que eles dizem menos querer é sucesso.”, Vianna classifica Roberto Didio, um dos líderes do grupo, como “socialista e xiita”. Era isso, mas não era bem assim.
É o próprio Didio quem explica a postura da turma do Morro das Pedras: “Não dá pra analisar nosso projeto fora do contexto da época. Havia uma hegemonia musical nas rádios e nos espaços de samba; um padrão calcado na sonoridade da década de 1980 que havia banido alguns instrumentos tradicionais e deixado de lado um repertório histórico muito importante. A nossa posição radical visava quebrar uma hegemonia e abrir espaços. Mas fora da roda a gente ouvia de tudo, inclusive Zeca Pagodinho. Aliás, gosto muito do Zeca”, diz.
Didio não era um paraquedista no samba. Ainda na juventude, bem antes do Morro das Pedras, chegou a integrar a bateria da Gaviões da Fiel — a agremiação carnavalesca, extensão cultural da torcida — e a desfilar tocando caixa e depois surdo de terceira. Mesmo assim não se considera sambista: “O ser sambista está ligado à vivência; não só à ancestralidade, mas ao modo como se vive. Eu respeito muito isso. Posso compor samba, mas não me apresento como sambista”, argumenta.
Opinião diferente sobre ele tem Eliseu do Rio, cantor e compositor carioca com passagens por várias escolas de samba. “Ele (Didio) é um senhor sambista e posso provar”, diz. Conta Eliseu que, em 1998, Roberto Didio está no Bar do Chicão, na Praça Tobias Barreto, em Vila Isabel, à espera de uma costela no bafo junto ao amigo Tuco Pellegrino, cantor e cavaquinista do Morro das Pedras. Munido de cavaco e muita sede, Eliseu chega logo depois.
Arma-se uma roda, todos se reconhecem de imediato e a tarde promete. Até que pinta na área Cláudio Camunguelo, flautista, compositor e exímio partideiro. O partido-alto é uma modalidade de samba calcada nos versos de improviso, feitos dentro da métrica da música e geralmente cantados em desafio a um “oponente”, gerando por vezes acaloradas disputas. É o samba dos verdadeiros malandros, por exigir muita criatividade, técnica e rapidez de raciocínio.
Camunguelo, estivador por profissão e legítimo representante dos grandes sambistas da zona portuária do Rio de Janeiro, chegou versando. Recorda Eliseu: “Camunguelo, malandro do cais do porto, começou a mandar uma letra, e Roberto, garoto novo, entrou no verso com ele. Aí o couro comeu: era uma pernada de um lado e uma pernada do outro, um mandava e o outro respondia. Aquilo levou horas. Mas Roberto, na sua inferioridade etária, foi até o fim. Quem perdeu foi Camunguelo, que ficou pê da vida e não aceitou muito bem a derrota”, diz.
Didio se diverte ao relembrar este dia, mas diplomaticamente se nega a reconhecer a vitória. “Modestamente digo que deu empate”, afirma. Aos que hoje perguntam sobre sua ausência nas rodas, explica: “Eu nunca me afastei do samba, mas o cansaço foi batendo e desacelerei. Pouco saio de casa. Faz uma década que estou na caverna e só me dedico ao processo de composição.”
Renato Martins acompanhou de perto as duas fases do parceiro: a da “esbórnia” e a da “reclusão”. E destaca que a chama do poeta sempre esteve acesa dentro dele: “O que vejo, ontem e hoje, é lealdade ao texto, respeito à música do parceiro e preocupação em se comunicar bem, além de ser um grande criador de imagens.” Está no álbum Cidade das Noites aquela que ambos consideram a primeira canção da dupla, feita na transição de fases do letrista: Cais.
“A gente a considera a primeira por ser a mais bem acabada. Tudo o que fizemos antes eram músicas que estávamos apurando, aprendendo a fazer juntos, não eram satisfatórias. Foi a partir do Cais que a gente se entendeu como parceiros e não paramos mais”, avalia Renato. Roberto Didio encara Cais como “a primeira canção que escrevi consciente do meu caminho como compositor.”
O lenço de aceno
Vai se distanciando
Cais
Vendavais de frieza
Nevoeiros profanos
Moças nas águas do olhar
Moços nas águas do mar
Pedaços do peito da gente
Perpassando as correntes
Nas espumas ficando
Muitas vezes é pra nunca mais
Despedida demais
É adeus pra si mesmo
Cais
Quando o sal acalmar
O sangue desfervilhar
Beberemos a esmo:
O segredo dos corais azuis
Ou a marca de cruz
Sobre os mapas perdidos
O que não se soube jamais
Dos mistérios rivais
Aos navios esquecidos
Cais
Lamparinas douradas
Contrabando de amores
Quantos braços cansados
Paz
Só precisam de paz
Pra sorver e pousar
Feito um brando alcatraz
Noites aflitas
Vozes escuras
Almas surgindo das águas
Entre os fantasmas do cais
Mágoa de amor
Assombra mais
Cidade das Noites é uma espécie de cartão de visita da dupla Renato-Roberto. Edu de Maria também aparece como compositor e arranjador em algumas faixas. As canções, na voz de Anabela (que também é autora das fotografias de Paquetá que compõem o belo encarte do álbum), chamam a atenção pelo refinamento e cuidado nos detalhes.
Em 17 de fevereiro de 2009, o músico Aquiles Rique Reis publicou na imprensa uma crítica deste trabalho intitulada “Quatro jovens criadores musicais que chegam para ficar.” Nela, o vocalista do MPB4 comenta: “Os versos criados por Roberto Didio são belos, como ardorosas são suas emoções afloradas em rimas bem expressas em palavras que fogem da mesmice. Os arranjos, plenos de violões de seis e sete cordas, flugelhorn, clarone, flautas, cavaquinho, clarinete, violinos, viola, cello, tamborim, surdo, pandeiro, piano, sanfona e bandolim, criam atmosfera que brinda o futuro tirando o chapéu ao passado.”
A última faixa é uma das mais impactantes do álbum: Nome, Sobrenome e Codinome, que Aquiles Reis considera ser uma “homenagem a Carlos Marighella” — poeta e guerrilheiro baiano, fundador da Aliança Libertadora Nacional (ALN) —, é na verdade um canto em memória aos mortos e desaparecidos do regime militar. O samba, com sete minutos de duração, cita o nome de mais de trezentas vítimas da ditadura e se torna um hino de resistência ao esquecimento. No dia 1º de abril de 2012, a canção foi entoada pelo Cordão da Mentira em ato de repúdio ao golpe de 1964.
Segundo Renato Martins, a composição começa a ser feita em Vila Velha, durante breve período em que o letrista morou no Espírito Santo. Na praia, tendo o mar à sua frente, Didio comenta com o parceiro sobre a ideia de homenagear brasileiros que tombaram na luta contra a ditadura. “Parceirinho, penso em colocar apenas nomes e nada mais”, disse. “Mas como isso?”, perguntou o músico. “Nome seguido de nome. Mas tem uma coisa: muitos fizeram parte de mais de uma organização e usavam diversos apelidos. O lance é não repeti-los. Vai ser difícil.”
A pesquisa consumiu todo o fim de semana. “Música pronta, me lembro de ouvir a versão caseira uma centena de vezes, ainda sem acreditar no que tínhamos feito. Para gravar, amigos queridos emprestaram as vozes pra dizer os nomes dos nossos companheiros caídos na luta pela liberdade”, descreve Renato. Além dos compositores, cantam na faixa Gabriel Cavalcante, Marcelo Menezes, Cristina Buarque, Edu de Maria e Anabela Leandro.
Grande parte de Cidade das Noites foi pensado e criado no caramanchão da casa de Anabela e Edu, em Campinas. “Eu já havia gravado algumas músicas no CD do Cupinzeiro, mas não me considerava intérprete. Didio disse pra mim: vamos gravar um disco com você cantando. E eu pensei que devia ser mais uma piada pra gente rir. Não tínhamos grana, mas decidimos gravar música por música.”, diz Anabela.
Nas palavras da cantora, Roberto Didio “nunca se conforma” com uma letra que tenha acabado de fazer. “Eu me apegava, não queria que ele mudasse nada, mas ele sempre mexia em algo e conseguia deixar a canção mais incrível. Mudava palavras por sinônimos que davam outro brilho. Uma pequena alteração deixava a sonoridade ainda mais atraente com a melodia”, comenta a cantora.
Uma das canções do álbum foi totalmente modificada pouco antes da gravação: Fox Trotsky, cujo título original era O Poeta e a Bailarina. “Eu já havia decorado a música toda e dias antes de entrar em estúdio ele me ligou: ‘Mudei tudo. Fiz uma homenagem a Rosa Luxemburgo. Nosso disquinho é vermelho, ficou bem melhor'”, diverte-se ao Anabela ao recordar.
“Nada me tira do lugar de aprendiz. Detesto bajulação.”
Três anos depois, em 2012, Anabela Leandro grava o CD Pé de Vento. Aquiles Reis define a cantora como uma “estrela que sobe”. O disco traz canções de Renato Martins e Roberto Didio, mas dessa vez o letrista aparece também como parceiro de Edu de Maria, Delcio Carvalho e Moacyr Luz em algumas faixas. Com este último escreve Casa do Coração, um dos pontos altos do álbum.
Na casa do coração
Tem um viveiro aberto no quintal
Limoeiro, cedro e bambuzal
Colmeia se formando no beiral
Cadeira de balanço, desenho de remanso
Nas águas de pranto do meu litoral
No quarto do coração
Perto da cama um maleiro marrom
Que guarda meu acordeom
Moedas e uma caixa de bombons
O presente que eu tanto queria
“Alguma Poesia” – o primeiro livro do Drummond
Seguindo o corredor do coração
O antigo aparador
Um cinzeiro incolor, cinzas no chão
A flor da idade se escondendo no porão
É a casa do coração
Sabe arejar no verão
Abro as janelas
Pra tarde passar devagar
E a gente se debruçar
Saboreando a solidão.
“Meu parceiro Roberto Didio é um poeta, um letrista que o tempo vai consagrar como um dos maiores do Brasil. Talvez ele tenha preferido ficar escondido esse tempo todo, mas agora com a obra sendo exposta da maneira que está, sendo reconhecida, vai ter que mostrar pra gente o rosto também, porque a poesia já é definitiva”, cutuca Moacyr Luz, com quem Didio já havia composto anteriormente Quando o Samba Veio Me Buscar, gravado no CD O Que Vai Ficar Pelo Salão, de Gabriel Cavalcante.
“Meu próximo disco terá muitas letras dele também. Ele será o produtor artístico. Virou uma referência”, diz Gabriel, cantor e integrante da roda do Samba do Trabalhador. “Me chama a atenção o refinamento tanto nas músicas mais rebuscadas quanto nas com linguagem mais popular; Roberto consegue ser fino de todas as formas, sem ser pretensioso. E ele se comunica bem em todas as vertentes musicais: samba, bolero, valsa, xote, o que for. Isso é bem difícil”, acredita.
O cantor Renato Braz tem a mesma opinião. “Ele transita entre gêneros com muita naturalidade. É admirável como mantém a sua marca própria com todos os parceiros. Eu o comparo ao Volpi, pintor que adoro. Volpi podia vender ou não seus quadros que continuaria fazendo a mesma coisa. Didio é igual: faz por necessidade”, declara. E emenda: “Quando o conheci me vi diante de um grande. É um privilégio ver de perto o nascimento de um letrista do porte dele na minha geração. Não é sempre que isso acontece”, afirma.
A admiração pelo trabalho do letrista fez com que o intérprete o convidasse para ser um dos artistas a ter canções incluídas em show apresentado por ele no Auditório Ibirapuera. O espetáculo Renato Braz — Autores, acontecido em São Paulo no dia 9 de junho de 2019, reuniu compositores de idades diferentes, mas com caminhos musicais em comum: Breno Ruiz, Cristovão Bastos, Mario Gil, Marcelo Menezes, Miguel Rabello e Roberto Didio. Subir no palco era algo impensado para alguém que nunca gostou de aparecer.
Braz se diverte ao recordar a noite do show: “Roberto não queria subir de jeito nenhum; tive que pedir para os amigos dele convencê-lo. Por fim, subiu e tocou surdo. Foi inesquecível vê-lo se reencontrar com seu instrumento de origem, fico emocionado só de lembrar desta cena. A alegria de reconhecer um irmão de ofício é indescritível. Parecíamos um bando de crianças brincando no chão de terra”, relata o intérprete.
Marcelo Menezes, um dos artistas convidados, lembra-se de como Didio foi “convencido” a participar: “Ele já chegou tenso para a passagem de som, com uma garrafa de cachaça na mão, dizendo que não iria cantar, apesar da nossa insistência. Tomou a cachaça praticamente sozinho, com a produtora pegando no pé dele. Só depois que matou a garrafa resolveu subir no palco. Quando ele entrou em cena foi como se não tivesse bebido. Tocou comigo, dividiu uma canção com Miguel Rabello e recitou um poema. Estava iluminado”, diz.
Renato Braz, que incluiu no espetáculo cinco canções de Roberto Didio, diz ter um carinho especial por Acalanto pros Avós, em parceria com Cristóvão Bastos. A faixa foi gravada por ele no CD Espelho, lançado pelo Selo Sesc em 2019, que reúne canções de Cristóvão e Maury Buchala.
A história da composição tem uma particularidade e quem conta é o parceiro de Didio nesta obra: “Roberto tinha uma admiração profunda por uma música minha, com letra de Aldir Blanc, chamada Acalanto pros Netos. Um dia, por intermédio do meu filho (Miguel Rabello), recebi uma letra dele chamada Acalanto pros Avós, em resposta à minha. Musiquei na hora. Desde então passei a mandar melodias para ele letrar e viramos parceiros”, revela Cristóvão Bastos.
Quem me chamava pra brincar no chão
E viajava pela imensidão
Num cavalo alado de madeira
Me rodeava querendo atenção
Pousava o rosto no meu coração
Era noite azul com giz de cera
Quem escalava o time de botão
Também ganhava o céu no seu balão
Eu nem levantava da cadeira
Então corria em minha direção
Pegando a velha alma pela mão
Pra subir na jabuticabeira
Do meu pijama não largava, não
Adormecia noutra contação
Fábulas, no fundo, verdadeiras
O sol passava o braço no portão
Sanhaço vindo pela contramão
Minha rua amanheceu na feira
A luz sumindo, eu me sentindo mal
Sabendo que não estaremos sós
O grande amor partiu igual cristal
Consigo ouvir a voz dos meus avós
Cruzando o mesmo rio, sem avisar.
“Didio é um compositor muito culto, que traz uma carga de informações grande, mas nunca perdeu o olhar puro da infância. Ele tem a pureza do poeta quando escreve — e isso faz muita diferença”, diz Cristóvão. Para ele, Roberto Didio é o responsável por aproximá-lo, como parceiro, do filho Miguel Rabello. Rumo Zonal Sul, quarto movimento de Suíte Brasil, feita a seis mãos pelo trio, nasce com esse valor simbólico agregado.
Miguel é sobrinho de Raphael Rabello — gênio do violão brasileiro que morreu precocemente aos 32 anos de idade. Raphael teve um papel decisivo na formação musical de Didio. “Era ouvir algo dele para sentir minha atenção sendo sugada para o som que ele tirava do instrumento, verdadeiro buraco negro”, define.
Miguel Rabello lembra Raphael na aparência e nas harmonias modernas que cria para linguagens musicais tradicionais. Acrescente-se o fato de que também é um bom intérprete e entenderemos a razão de seu perfeito entrosamento com o letrista. As melodias que saem do violão de Miguel, de certa forma, são ecos de Raphael Rabello que encontram, nas palavras de Roberto Didio, ecos de Paulo César Pinheiro. E tudo isso com referências atuais.
Miguel confirma a impressão: “O que mais gosto no Roberto é que conquistou uma escrita original sem forçar a busca por novos padrões. Ele segue a tradição da canção brasileira, mas vem construindo imagens únicas”, diz. Da lavra recente da dupla, Quimera de São Jorge deve entrar no repertório do próximo disco solo de Miguel Rabello.
São Jorge chamava por nós
Seu grito de guerra feroz
Foi ilusão ou foi real?
Eu vi São Jorge descer do céu
Se soltar do anel
Se tornar mortal
Fora do seu cavalo
Anda na multidão
A capa relava no chão
A lança brilhava na mão
Foi ilusão ou foi real?
Eu vi São Jorge marchar na frente
Chamar mais gente
Pra festejar
São Jorge se libertou do altar
São Jorge passava por nós
Cantando, ficava sem voz
Foi ilusão ou foi real?
Eu vi São Jorge dançar ciranda
Tocar na banda
Se transformar
Brinca fantasiado
Marcha sem batalhão
Escudo de prata-fumê
Espada, colar, paetê
Foi ilusão ou foi real?
Eu vi São Jorge chorar de canto
Pedir pro santo
Trazer seu par
São Jorge cambaleou no bar
Canta, São Jorge
Vai, meu irmão
Luta, São Jorge
Mata o dragão
Todos no seu baticum
Não vai ter rival
Não vai ter nenhum
São tantos Jorges
Pelo salão
Tantos são Jorges
Sem proteção
Era, talvez, só mais um
Era carnaval
E não era Ogum.
A parceria de Miguel e Roberto ganha corpo quando o letrista inicia seu relacionamento com a musicista Ana Rabello, que é prima do violonista e tocou em grande parte dos discos de Didio. Além disso, Ana é afilhada de Dori Caymmi. Por conseguinte, depois de muitos encontros e copos familiares, Dori mencionou a possibilidade de uma parceria com Didio. “Eu desconversava, é claro. Esse cara é uma entidade, pô!”, comenta. Certa vez, Paulinho Pinheiro estava por perto; olhou pra mim e disse: ‘Tá escutando?’”.
A primeira parceria de Dori Caymmi e Roberto Didio ficou pronta num quarto de hotel, na véspera do show de 70 anos de Paulo César Pinheiro em São Paulo. O tema, possivelmente, foi inspirado em uma passagem vivida pelo próprio Dori, que Roberto Didio resgata em texto de sua autoria sobre o disco Canto Guerreiro, de Renato Braz.
Segundo relata o letrista, Dori Caymmi teria tido seu primeiro contato com o canto de Mercedes Sosa numa casa de espetáculos simplória em Buenos Aires, com plateia de poucos assentos, dessas que hoje só existem nas fotografias. “Quando a ‘La Negra’ pisou no palco e abriu a boca, os Andes desceram numa só avalanche”, teria dito Dori. Didio jamais se esqueceu da imagem contida nesta frase.
Canto para Mercedes Sosa, de Dori Caymmi e Roberto Didio, é uma homenagem à voz ancestral da cantora argentina, potência capaz de representar todo um continente. “Sou grato ao Dori por ter me dado essa colher de chá”, diz o letrista. A canção está inédita, mas em vias de gravação.
Quando a voz foi ecoando
Me levou na corredeira
Avalanche anunciando
O arrastão da cordilheira
Era voz incandescente
Um vulcão cuspindo rosas
Rosas negras flamejantes
Céu de flechas luminosas
Quando a voz se recolhia
A tristeza era tamanha
Que a geada sacudia
Seda branca nas montanhas
Voz de vento assoviando
Avisando o guerrilheiro:
“Olha a morte ali rondando
Perto do desfiladeiro”
Era voz de sangue quente
Era voz que só queria
Libertar o continente
Ser a voz de quem sofria.
Prestes a completar 45 anos, Roberto Didio é um letrista sui generis na história da música brasileira: além dos nomes já citados, ele compõe com craques de gerações distintas, como Ivor Lancellotti, Maurício Carrilho e Douglas Germano; tem sido cantado ou gravado por vozes como as de Renato Braz, Amélia Rabello, Mônica Salmaso, Leila Pinheiro, Áurea Martins, Adriana Moreira, Alice Passos… E ainda assim continua sendo um completo desconhecido fora deste círculo de privilegiados. A culpa, porém, não é de seu temperamento discreto, mas da pouca visibilidade dada ao que se faz de melhor em termos de música neste país.
Longe de fazer tipo, Didio se mantém avesso à badalações. “Este deve ser o primeiro e último texto que escrevem sobre mim”, diz, com seu característico senso de humor. Na surdina se debruça sobre projetos sem previsão de lançamento: um CD de inéditas com Marcelo Menezes, outro com Renato Martins, canções avulsas com quase todos os parceiros e um livro em que reunirá suas cem melhores letras, entre outros.
Na mesa da sala do apartamento, onde trabalha por pelo menos quatro horas diárias, estão alguns dos pilares de seu pensamento: Memórias do Subsolo, de Dostoiévski, e Chão de Ferro, de Pedro Nava, por exemplo. Obras sempre à mão atrás da pilha de livros, cadernos e discos que sobe em direção ao teto conforme o ritmo ditado por sua vontade de escrever (vontade que nada tem a ver com a escolha pela reclusão, pois o escritor já estava presente no menino que subia a rampa do Pacaembu, de mãos dadas com o pai, envolto pelo fumo dos rojões).
Didio considera um privilégio poder “conviver, aprender ou trabalhar com pessoas que estruturaram a música do meu país” — e que serviram de base para a sua escrita quando ele nem sonhava em ter um parceiro, quanto mais uma canção gravada. Gosta de frisar, porém, que há uma questão de “lugar” que lhe é muito cara. “Referências são referências e nada me tira do lugar de aprendiz. Detesto bajulação.”
Cita uma frase que sintetiza a sua obra por meio dos laços de coerência que a mantém atada à infância em São Paulo: “A forja da minha poesia contempla meninez, arquibancada, espelunca, calçada e o semblante triste daqueles que miram o chão.”
Num tempo em que o obscurantismo tem conseguido impor ao país um reinado de trevas, onde o sistema de saúde está prestes a entrar em colapso e corpos são empilhados em valas comuns enquanto o presidente anda de jet ski, a poesia de Roberto Didio — para usar uma expressão criada por ele — é a “escassa lamparina da utopia” a indicar caminhos que nos levam de volta ao Brasil.