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O grande jogo de destruir países

Mais de uma geração atrás, o Afeganistão conquistou sua liberdade, que os Estados Unidos, a Inglaterra e seus “aliados” destruíram.
Mais de uma geração atrás, o Afeganistão conquistou sua liberdade, que os Estados Unidos, a Inglaterra e seus “aliados” destruíram. Por John Pilger | ARENA – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
(Foto: David M. Votroubek / U.S. Army)

Enquanto um tsunami de lágrimas de crocodilo envolve os políticos ocidentais, a História é suprimida. Mais de uma geração atrás, o Afeganistão conquistou sua liberdade, que os Estados Unidos, a Inglaterra e seus “aliados” destruíram.

Em 1978, um movimento de libertação liderado pelo Partido Democrático do Povo do Afeganistão (PDPA) derrubou a ditadura de Mohammad Dawd, o primo do rei Zahir Shar. Foi uma revolução imensamente popular que surpreendeu os britânicos e os norte-americanos.

Jornalistas estrangeiros em Cabul, como reportou o New York Times, ficaram surpresos ao descobrir que “quase todo afegão entrevistado por eles se disse satisfeito com o golpe”. O Wall Street Journal reportou que “150 mil pessoas […] marcharam em homenagem à nova bandeira […] os participantes pareciam genuinamente entusiasmados”.

O Washington Post noticiou que “a lealdade afegã ao novo governo dificilmente poderia ser questionada”. O governo secular, modernista e, em um grau considerável, socialista, decretou um programa de reformas visionárias que incluíam direitos iguais para as mulheres e minorias. Prisioneiros políticos foram libertados e arquivos policiais foram queimados publicamente.

Sob a monarquia, a expectativa de vida era de 35 anos; uma em cada três crianças morria ainda na infância. 90% da população era analfabeta. O novo governo estabeleceu a saúde pública universal. Uma campanha de alfabetização em massa foi lançada.

Para as mulheres, os ganhos eram sem precedentes; até o final dos anos 80, metade dos estudantes universitários eram mulheres, e as mulheres constituíam 40% do corpo médico do país, 70% dos professores e 30% dos servidores públicos.

As mudanças foram tão radicais que elas continuaram vivas nas memórias daquelas que foram beneficiadas. Saira Noorani, uma cirurgiã que fugiu do Afeganistão em 2001, relembrou: “Toda garota podia ir à escola e à universidade. Nós podíamos ir onde quiséssemos e vestir o que gostássemos […] Nós costumávamos ir aos cafés e ao cinema às sextas para assistir aos últimos filmes indianos […] tudo começou a dar errado quando os mujahidin começaram a ganhar […] esses eram os homens que o ocidente apoiava.”

Para os Estados Unidos, o problema com o governo do PDPA era o fato deste ser apoiado pela União Soviética. No entanto, o governo nunca foi o “fantoche” ridicularizado no ocidente, nem o golpe contra a monarquia foi “auxiliado pelos soviéticos”, como a imprensa norte-americana e britânica afirmou à época.

O secretário de Estado do presidente Jimmy Carter, Cyrus Vance, depois escreveria em suas memórias: “Nós não tínhamos nenhuma evidência sobre a cumplicidade soviética no golpe”.

Na mesma administração estava Zbigniew Brzezinski, o Conselheiro de Segurança Nacional de Carter, um imigrante polonês, fanático anticomunista e extremista moral cuja contínua influência sobre presidentes norte-americanos só teve fim com sua morte, em 2017.

Em 3 de julho de 1979, sem o conhecimento do povo dos Estados Unidos e do Congresso, Carter autorizou a liberação de 500 milhões de dólares para um programa de “ação dissimulada” visando derrubar o primeiro governo secular e progressista do Afeganistão. Tratava-se de um programa apelidado como Operação Cyclone pela CIA.

Os 500 milhões compraram, subornaram e armaram um grupo de zelotas religiosos tribais conhecidos como mujahidin. Em sua obra histórica semioficial, o repórter do Washington Post Bob Woodward escreveu que a CIA gastou 70 milhões de dólares só em subornos. Ele descreve um encontro entre um agente da CIA conhecido como “Gary” e um senhor da guerra chamado Amniat-Melli: “Gary colocou um monte de dinheiro na mesa: 500 mil dólares, em pilhas de 30 centímetros, em notas de 100 dólares. Ele acreditava que isso seria mais impressionante que os costumeiros 200 mil dólares, a melhor forma de dizer ‘estamos aqui, estamos falando sério, aqui está o dinheiro, sabemos que vocês precisam dele’ […] Gary em breve pediria ao quartel-general da CIA – e receberia – 100 milhões de dólares em dinheiro vivo.”

Recrutado em todos os pontos do mundo muçulmano, o exército secreto dos Estados Unidos foi treinado em campos no Paquistão dirigidos pela inteligência paquistanesa, a CIA e o serviço secret britânico M16. Outros foram recrutados em uma universidade islâmica no Brooklyn, Nova York – visível a partir das condenadas Torres Gêmeas. Um dos recrutados era um engenheiro saudita chamado Osama bin Laden.

O objetivo era espalhar o fundamentalismo islâmico por toda a Ásia Central, desestabilizando para eventualmente destruir a União Soviética.

Em agosto de 1979, a embaixada norte-americana em Cabul reportou que “os interesses mais amplos dos Estados Unidos […] seriam alcançados pelo fim do governo do PDPA, não obstante quaisquer contratempos que isso possa significar para as futuras reformas econômicas e sociais no Afeganistão”.

Leia mais uma vez as palavras que deixei em itálico. Não é comum que uma intenção tão cínica seja expressa com tanta clareza. Os EUA estavam dizendo que um governo afegão genuinamente progressista, bem como os direitos das mulheres afegãs, poderiam ir pro inferno.

Seis meses depois, os soviéticos fizeram seu movimento fatal para o Afeganistão em resposta à ameaça jihadista criada pelos americanos à sua porta. Armados com mísseis Stinger fornecidos pela CIA e celebrados como “combatentes da liberdade” por Margaret Thatcher, os mujahidin acabaram por expulsar o Exército Vermelho do Afeganistão.

Os mujahidin eram dominados por senhores da guerra que controlavam o comércio de heroína e aterrorizavam as mulheres nas zonas rurais. O Talibã era uma facção ultra-puritana, cujos mulás vestiam preto, puniam o banditismo, os estupros e assassinatos, mas que baniram as mulheres da vida pública.

Nos anos 80, eu estabeleci contato com a Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão, conhecida pela sigla RAWA, que tentava alertar o mundo sobre o sofrimento das mulheres afegãs. Durante os tempos do Talibã, elas escondiam câmeras debaixo de suas burcas para filmar evidências de atrocidades, e fizeram o mesmo para expôr a brutalidade dos mujahidin apoiados pelo ocidente. “Marina”, da RAWA, me disse à época: “Nós levamos as fitas de vídeo para todos os principais grupos de mídia, mas eles não queriam saber […]”.

Em 1996, o esclarecido governo do PDPA foi derrubado. O primeiro-ministro, Mohammad Najibullah, tinha ido às Nações Unidas apelar por ajuda. Na sua volta, ele foi pendurado em um poste de luz.

“Eu confesso que [os países] são peças de um tabuleiro de xadrez”, disse o Marquês Curzon em 1898, “sobre o qual é jogado um grande jogo pela dominação do mundo.”

O vice-rei da Índia se referia particularmente ao Afeganistão. Um século depois, o primeiro-ministro Tony Blair usou palavras ligeiramente diferentes. “Esse é um momento para aproveitar”, ele disse depois do 11 de setembro. “O caleidoscópio foi abalado. As peças estão em fluxo. Logo elas se acomodarão novamente. Antes que isso aconteça, reordenemos o mundo ao nosso redor.”

Sobre o Afeganistão, ele disse ainda:““Não iremos embora [mas garantiremos] alguma forma de sair da pobreza de sua existência miserável.”

Blair repetia seu mentor, o presidente George W. Bush, que disse às vítimas de suas bombas no Salão Oval: “O povo oprimido do Afeganistão conhecerá a generosidade da América. À medida que atingimos os alvos, também vamos jogar comida, remédios e suprimentos para os que sofrem e têm fome […]”.

Quase todas as palavras eram falsas. Suas declarações preocupadas eram cruéis ilusões para uma selvageria imperial que “nós” no ocidente raramente reconhecemos como tal.

Em 2001, o Afeganistão foi atingido e dependia de comboios de socorro de emergência do Paquistão. Como relatou o jornalista Jonathan Steele, a invasão causou indiretamente a morte de cerca de 20.000 pessoas, à medida que os suprimentos para as vítimas da seca parou e as pessoas fugiram de suas casas.

Dezoito meses depois, encontrei bombas de fragmentação americanas não detonadas nos escombros de Cabul, que muitas vezes eram confundidas com pacotes de ajuda amarelos lançados do ar. Elas desmembravam crianças em busca de comida.

Na aldeia de Bibi Maru, vi uma mulher chamada Orifa se ajoelhar perto do túmulo de seu marido, Gul Ahmed, um tecelão de tapetes, e de sete outros membros de sua família, incluindo seis filhos, além de duas crianças que foram mortas na casa ao lado.

Uma aeronave F-16 americana saiu de um céu azul claro e lançou uma bomba Mk82 de 220 quilos na casa de lama, pedra e palha de Orifa. Ela estava ausente no momento. Quando voltou, Orifa recolheu as partes dos corpos.

Meses depois, um grupo de americanos veio de Cabul e deu a ela um envelope com quinze notas: um total de 15 dólares. “Dois dólares para cada um de minha família morto”, disse ela.

A invasão do Afeganistão foi uma fraude. Na esteira do 11 de setembro, o Talibã procurou se distanciar de Osama bin Laden. Eles eram, em muitos aspectos, clientes dos norte-americanos, com quem a administração de Bill Clinton tinha feito uma série de acordos secretos para permitir a construção de um gasoduto de 3 bilhões de dólares por um consórcio de uma empresa petroleira norte-americana.

Em grande sigilo, os líderes do Talibã foram convidados para os Estados Unidos e recebidos pelo CEO da empresa Unocal em sua mansão no Texas e pela CIA em sua sede na Virgínia. Um dos negociadores foi Dick Cheney, mais tarde vice-presidente de George W. Bush.

Em 2010, eu estava em Washington e consegui uma entrevista com a mente por trás da era moderna de sofrimento do Afeganistão, Zbigniew Brzezinski. Eu li para ele um trecho de sua autobiografia, no qual ele admitia que seu grande esquema para arrastar os soviéticos ao Afeganistão tinha criado “alguns muçulmanos raivosos”.

“Você tem algum arrependimento?” eu perguntei.

“Arrependimentos! Arrependimentos! Que arrependimentos?”.

Quando assistimos às recentes cenas de pânico no aeroporto de Cabul, e ouvimos jornalistas e generais em distantes estúdios de TV lamentando a retirada de “nossa proteção”, não é hora de dar atenção à verdade do passado para que todo esse sofrimento nunca mais se repita?

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