Pesquisar
,

Convencendo com coturnos: Guillermo Lasso e o estado de exceção no Equador

Enfrentando um impasse institucional e manifestações, Lasso acena com militares e estado de exceção para avançar neoliberalismo no Equador.

Enfrentando um impasse institucional e manifestações, Lasso acena com militares e estado de exceção para avançar neoliberalismo no Equador. Por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: Fernando Lagla / Asamblea Nacional)

Sob o mote “governo do encontro – juntos conseguimos”, o presidente Guillermo Lasso governa o Equador em um cenário curioso. Ele assumiu após vencer Andrés Arauz, do Movimento Revolução Cidadã, por uma margem de cinco pontos percentuais num segundo turno (52,3% a 47,6%). No entanto, seu apoio na Assembleia Nacional não é condizente com sua vitória: de 137 cadeiras, a Coalizão UNES, ligada ao Correísmo de Arauz, tem 48; o Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik (MUPP-18), ligado à Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), outras 24; e por fim os confusos social-democratas do Izquierda Democrática (ID) têm outras 15 cadeiras, mais que as 13 com as quais conta o Movimento Criando Oportunidades (CREO) de Lasso.

Em setembro passado, o presidente equatoriano completou 100 dias de sua gestão com um índice de aprovação de 73,5%, tornando-se, naquele momento, o segundo mandatário mais bem avaliado do mundo. Mas tudo indica que essa extraordinária avaliação positiva de setembro tenderá a se arruinar nos próximos meses. Primeiro, porque ela foi motivada em parte pela igualmente extraordinária desaprovação com a qual seu antecessor, Lenín Moreno, terminou o mandato: 82,1% de desaprovação contra 8,5% de aprovação. Segundo, porque ela é reflexo também do avanço da vacinação no país, que foi duramente atingido pela Covid-19 durante o mandato de Moreno (chegando a produzir as infames imagens de mortos nas ruas). Lasso de fato cumpriu sua promessa de vacinar nove milhões de equatorianos em 100 dias, o que aumentou a expectativa de uma “retomada” da vida econômica normal.

No entanto, os problemas logo começaram a aparecer: poucas semanas após cumprida a meta de vacinação, o país viveu o maior massacre prisional de sua história, quando 119 presos foram mortos e 80 ficaram feridos em uma rebelião no Centro de Privação de Liberdade Número 1 de Guayaquil  – foi a terceira rebelião seguida registrada em 2021. Esses motins motivaram Guillermo Lasso a decretar um estado de exceção nas prisões de todo o país.

Foi nesse contexto que o nome do presidente apareceu em meio aos Pandora Papers, investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos que revelou as redes de contas e empresas offshore de uma série de celebridades, políticos e militares de todo o mundo. O levantamento revelou que Lasso teve um total de 14 empresas offshore em paraísos fiscais; dez delas teriam sido desativadas pelo presidente antes de concorrer ao cargo e, quanto às outras quatro, Lasso afirmou não ter obtido qualquer benefício nem ter qualquer relação formal com elas – apesar de seus parentes imediatos terem. Sendo verdadeiro ou não que Lasso não “tenha se beneficiado”, o fato é que a revelação abala – ainda que de forma restrita – sua popularidade, e motivou a abertura de uma investigação na Comissão de Garantias Constitucionais do Congresso.

Por fim, a combinação de alta aprovação com baixo apoio na Assembleia Nacional, que fez Lasso governar via decreto (emitiu 180 decretos nos seus 100 primeiros dias, em comparação a 50 de seu antecessor no mesmo período), se orientou para um aspecto-chave do programa do ex-banqueiro: a sua política econômica submetida ao FMI, privatista, orientada à redução dos gastos públicos, e as reformas econômicas que ele planeja aprovar neste espírito. As principais reformas nesse sentido vieram na “Lei Criando Oportunidades”, um mega pacote de reformas fiscais, trabalhistas e de investimentos. Nos aspectos fiscal e tributário, a lei puniria especialmente a classe média, constituindo uma verdadeira reforma do regime tributário; no trabalhista, ela prevê a criação de um “regime laboral especial e alternativo” para desregular ainda mais as relações trabalhistas (ou “adaptar” elas ao “ambiente de negócios” imposto pelo “mercado”); no campo de investimentos, cria um regime especial e temporário para a repatriação de recursos do exterior, que na prática anistia aqueles que tenham enviado recursos para fora ilegalmente.

Leia também – Equador: o governo do desacerto, seus offshores e a urgência de uma oposição democrática

O projeto teve dura oposição na Assembleia Nacional, e foi devolvido à presidência pelo Conselho de Administração Legislativa no final do mês passado. Para resolver esse impasse, que se somou ao tensionamento já de meses entre Executivo e Legislativo, Lasso poderia convocar um referendo para conquistar apoio a suas reformas – o que dificilmente conseguiria – ou apelar para a “morte cruzada”, um mecanismo constitucional pelo qual o presidente dissolve a Assembleia e convoca novas eleições, na esperança de se reeleger com uma bancada maior. “Se voltarem a bloquear as leis, devemos ir para a ‘morte cruzada’. O decreto já está pronto”, ameaçou o Lasso, que acusa o ex-presidente Rafael Correa, o líder da democracia cristã, Jaime Nebot, e o presidente da Conaie, Leonidas Iza, de formarem um “triunvirato de gângsteres” que busca derrubá-lo. “Golpes de Estado já não se dão por meio de tanques e das ruas, mas por meio das Assembleias”, disse Lasso.

Enfim, chegamos ao 18 de outubro, quando o mandatário equatoriano decretou um estado de exceção e trocou o ministro da Defesa, o ex-comandante da Marinha Fernando Donoso, pelo general aposentado Luis Hernández. A medida, adotada por “grave comoção interna” e justificada pelo aumento da criminalidade e violência no país, constitui uma adocicada ironia para um presidente que falou em “golpes de Estado” que “já não se dão por meio de tanques”. Ela tem validade de 60 dias, blinda os militares por sua atuação durante o estado de exceção e os leva às ruas de nove das 24 províncias do país em um momento em que Lasso passava a enfrentar protestos pelo aumento dos preços dos combustíveis. Para o dia 26 de outubro, estavam previstas manifestações unificadas da Conaie e sindicatos de trabalhadores e camponeses contra a política econômica de Lasso. “É preocupante porque o governo não está resolvendo os problemas econômicos e sociais pelos quais o povo está se mobilizando, mas sim pretendendo aplacar a reação da população equatoriana instalando uma visão mais militar”, disse Leonidas Iza.

Além de servir como ameaça e preparação contra os atos do dia 26, o estado de exceção permite a Lasso forçar a Assembleia Nacional a votar seu projeto de reformas econômicas, além de pressioná-la, com o balançar de alguns militares, a aprová-lo. Foi precisamente o que fez, dividindo o mega pacote em três projetos de caráter urgente e obrigando a Assembleia a tramitá-los em até 30 dias.

Ato contínuo, um dia depois da decretação da exceção, o Secretário de Estado norte-americano Antony Blinken chegou ao Equador, onde, ao lado do ministro de Relações Exteriores do país, Mauricio Montalvo, declarou que “em momentos extraordinários, as democracias requerem medidas extraordinárias”. Falando especificamente sobre o estado de exceção, disse que “como discuti com o presidente Lasso, nós entendemos isso, apoiamos isso, mas sabemos que todas essas medidas, é claro, precisam ser tomadas de acordo com a Constituição”. Blinken disse ainda que o governo norte-americano “admira a voz forte pela democracia que você [Lasso] partilha com o povo equatoriano, mas também com o povo de todo o hemisfério”, antes de partir para a Colômbia, onde se reuniu com embaixadores da região (incluindo do Brasil) e com o presidente colombiano, Iván Duque, pedindo para que ele, “um amigo muito valoroso dos Estados Unidos”, “previna abusos aos direitos” – Duque não só é responsável pela dura repressão à greve nacional iniciada no país em maio, que, também lançando mão de militares, deixou um saldo de 3,2 mil presos e 83 mortos, como também pela continuidade do extermínio de camponeses, militantes e ex-guerrilheiros desmobilizados pelos acordos de paz entre as FARC e governo há cinco anos.

“Muitos no Equador creem que, tendo assinado os acordos de paz com o Peru, o Equador não tem inimigos. E quero dizer-lhes que o Equador tem sim inimigos, e as coisas se revolucionam e, em matéria de defesa nacional, temos que ter claro que há um inimigo a enfrentar”, declarou o Guillermo Lasso quando da posse de seu novo ministro, Luis Hernández. “Em Cenepa [em referência ao conflito entre Equador e Peru em 1995] estávamos respondendo a um inimigo que vinha de fora. Agora as ameaças estão dentro, agora o povo necessita de suas Forças Armadas aqui dentro, na sua casa, porque não pode circular tranquilo, porque sempre a ameaça da delinquência, da insegurança e do narcotráfico está a um passo de distância”, respondeu Hernández no mesmo evento. Formalmente, o general-ministro e o presidente se referiam ao narcotráfico e ao tráfico de pessoas. Mas as “ameaças que estão dentro”, ao que parece, são outras.

Continue lendo

Mural anti-imperialista pintado na Embaixada dos EUA em Teerã após a crise dos reféns. (Foto: Phillip Maiwald (Nikopol) / Wikimedia Commons)
Sanções como guerra civilizacional: o custo humanitário da pressão econômica dos EUA
Em diferentes contextos, líderes de extrema direita promovem um modelo de governança que algema o Estado de suas funções redistributivas, enquanto abre caminho para que o cripto-corporativismo baseado em IA opere livremente – às vezes até promovendo seu uso como política oficial do Estado. (Foto: Santiago Sito ON/OFF / Flickr)
Por que a extrema direita precisa da violência
Entre 1954 e 1975, as forças armadas dos Estados Unidos lançaram 7,5 milhões de toneladas de bombas sobre o Vietnã, o Laos e o Camboja, mais do que as 2 milhões de toneladas de bombas lançadas durante a Segunda Guerra Mundial em todos os campos de batalha. No Vietnã, os EUA lançaram 4,6 milhões de toneladas de bombas, inclusive durante campanhas de bombardeios indiscriminados e violentos, como a Operação Rolling Thunder (1965-1968) e a Operação Linebacker (1972). (Foto: Thuan Pham / Pexels)
O Vietnã comemora 50 anos do fim do período colonial

Leia também

São Paulo (SP), 11/09/2024 - 27ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo no Anhembi. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Ser pobre e leitor no Brasil: um manual prático para o livro barato
Brasília (DF), 12/02/2025 - O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, durante cerimônia que celebra um ano do programa Nova Indústria Brasil e do lançamento da Missão 6: Tecnologias de Interesse para a Soberania e Defesa Nacionais, no Palácio do Planalto. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
O bestiário de José Múcio
O CEO da SpaceX, Elon Musk, durante reunião sobre exploração especial com oficiais da Força Aérea do Canadá, em 2019. (Foto: Defense Visual Information Distribution Service)
Fascista, futurista ou vigarista? As origens de Elon Musk
Três crianças empregadas como coolies em regime de escravidão moderna em Hong Kong, no final dos anos 1880. (Foto: Lai Afong / Wikimedia Commons)
Ratzel e o embrião da geopolítica: a “verdadeira China” e o futuro do mundo
Robert F. Williams recebe uma cópia do Livro Vermelho autografada por Mao Zedong, em 1 de outubro de 1966. (Foto: Meng Zhaorui / People's Literature Publishing House)
Ao centenário de Robert F. Williams, o negro armado
trump
O Brasil no labirinto de Trump
O presidente dos EUA, Donald Trump, com o ex-Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado Henry Kissinger, em maio de 2017. (Foto: White House / Shealah Craighead)
Donald Trump e a inversão da estratégia de Kissinger
pera-5
O fantástico mundo de Jessé Souza: notas sobre uma caricatura do marxismo
Uma mulher rema no lago Erhai, na cidade de Dali, província de Yunnan, China, em novembro de 2004. (Foto: Greg / Flickr)
O lago Erhai: uma história da transformação ecológica da China
palestina_al_aqsa
Guerra e religião: a influência das profecias judaicas e islâmicas no conflito Israel-Palestina