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Héctor Germán Oesterheld: a prática de um herói coletivo

Roteirista de histórias em quadrinhos sobre Che Guevara e a ação do imperialismo na América Latina, Oesterheld encarnou na sua militância montonera os princípios do “herói coletivo”.
Roteirista de histórias em quadrinhos sobre Che Guevara e a ação do imperialismo na América Latina, Oesterheld encarnou na sua militância montonera os princípios do “herói coletivo”. Por María Villalba | CLAE – Tradução de Victor Klauck para a Revista Opera
Ilustração realizada por Felix Saborido para a revista Feriado Nacional em outubro de 1983.

Héctor Germán Oesterheld é um dos 30 mil detidos-desaparecidos da Argentina. Foi, e é, o maior roteirista do país; grande autor de histórias em quadrinhos que hoje pertencem ao mundo, decidiu ser militante montonero. É provável que em janeiro de 1978 tenha sido visto com vida pela última vez, em um campo de concentração.

Testemunhos distintos o localizam em Campo de Maio como prisioneiro ilegal; em centros clandestinos em Buenos Aires, como o “Vesubio” em Camino de Cintura e na Rodovia Riccheri; no “Sheraton” na “Villa Insuperable” [Vila Insuperável], em La Matanza; ou no Regimento do Monte Chingolo, em La Tablada. Existe a possibilidade de que tenha sido assassinado em Mercedes em 1978. Germán, preso e desaparecido, supostamente morto, sem túmulo… Um corte sem sutura na vida, como outras dezenas de milhares.

A desaparição, depois da detenção ilegal, constituiu um mecanismo perverso utilizado de forma indiscriminada pela última ditadura cívico-militar, que impõs às suas vítimas – perante suas famílias, amizades e seus companheiros e companheiras – uma situação complexa, angustiante, na qual não estavam presentes nem vivas, já que não era possível abraçá-las nem celebrar suas vidas; mas que também não estavam mortas, e sim “desaparecidas”, no lugar daquele ou daquela que “não aparece” e a quem não é possível velar nem homenagear.

Escolhemos esta data para homenagear o autor de “O Eternauta”, para poder trazer flores de palavras em sua memória e em memória dos “30 mil” [1]. Poderíamos escolher qualquer outra data que ele converteu em um marco, como a publicação do seu Eternauta, do seu Che ou do seu “Guerra contra o Imperialismo”, entre outras.

Oesterheld nasceu em 23 de junho de 1919. Era filho de imigrantes: Fernando, seu pai, era alemão e sua mãe, Elvira Ana Puyol, era do País Basco. Estudou e se graduou em geologia na Faculdade de Ciências Exatas e Naturais da Universidade de Buenos Aires. Se casou com Elsa Sánchez e teve quatro filhas: Estela, Diana, Martina e Beatriz. Todas elas foram sequestradas e desaparecidas pela última ditadura militar argentina – duas delas estavam grávidas no momento de seu sequestro. Também foram sequestrados, assassinados e desaparecidos três de seus genros: Raúl Araldi, Alberto Oscar Seindus e “O Basco” Mórtola.

Elsa, sua esposa, conta que o chamavam de “Sócrates” pelo tanto que sabia.

Se dedicou a escrever histórias em quadrinhos. A mais conhecida e mais consolidada foi O Eternauta, cuja primeira versão foi escrita em 1957 e a segunda em 1969. A história se desenvolve a partir de uma nevasca mortal seguida de uma invasão extraterrestre que obriga os seus habitantes a se isolarem e se auto-abastecerem – quase como a quarentena contra a Covid. À medida que o relato avança, desenvolve-se a “resistência”, as pessoas se agrupam e se organizam e surge o “herói coletivo” sobre o individualismo e o imobilismo proposto pela ideologia capitalista.

Em sua juventude, Oesterheld simpatizou com o Partido Comunista até que compreendeu que este havia se afastado dos trabalhadores e do povo e, “paradoxalmente”, havia se aliado a setores da oligarquia, do imperialismo e da intelligentsia liberal e positivista. A partir destas decisões da direção do partido, se aproximou aos setores mais combativos do peronismo e integrou a organização político-militar Montoneros. 

Dedicou o ano de 1968 a criar a história em quadrinhos sobre Che Guevara e em 1973, no diário Notícias, conduzido pelos Montoneros, publicou a tirinha “A Guerra dos Antares”. Na revista semanal “El Descamisado”, orientada pelo mesmo setor e dirigido por Dardo Cabo, publicou “450 Anos de Guerra contra o Imperialismo”, ilustrada por Leopoldo Durañona. Germán também a publicou na revista Evita Montonera, expressão partidária dos Montoneros. 

No dia 27 de abril de 1977, foi sequestrado e desaparecido pela ditadura cívico-militar comandada pelo general Jorge Rafael Videla, pelo almirante Emilio Massera, pelo brigadeiro Orlando Agosti e pelo chefe civil José Alfredo Martínez de Hoz. Em homenagem à sua memória, um dos prédios da universidade de Lanús leva seu nome; estas linhas, nesta data, buscam preencher sua memória de conteúdo. 

Três história e uma concepção

Vamos analisar as três histórias em quadrinhos mais importantes escritas por Oesterheld e que foram ilustradas por Solano López (“O Eternauta”, primeira versão), Enrique e Alberto Breccia (“Che”) e Leopoldo Durañona (“América Latina e o Imperialismo: 450 anos de guerra”).

A primeira delas é a mais relevante, tendo conquistado alcance mundial e transcendência histórica. A história trata de uma invasão de extraterrestres, integrada por “besouros”, “gurbos”, “manos”, “homens robôs” e “Eles”. Controlam a Terra a partir de uma arma mortal para a humanidade: uma nevasca que produzem a partir de suas naves. O Eternauta e muitos outros homens e mulheres se organizam para enfrentar a “ocupação”.

Deste modo, Oesterheld refletiu sobre a realidade e também se adiantou a eventos futuros. Sua criação recria de certa forma as invasões imperialistas dos Estados Unidos na América Latina. Cabe apontar que, nas décadas de 1960 e 1970, se produz na região a Operação Condor, ação coordenada por Washington juntamente com os militares latino-americanos para derrubar as autoridade constitucionais e instalar regimes ditatoriais que os obedecessem, bem como eliminar as pessoas com ideias revolucionárias e contrárias ao imperialismo. A operação deixou um saldo de 400 mil mortos latino-americanos e caribenhos (Stella Calloni, 2007). Elas e eles queriam pôr fim nas desigualdades e injustiças vividas nestes países e substituí-las por formas de sociedade mais igualitárias e dignas. O próprio escritor foi uma das vítimas destas manobras de terrorismo de Estado.

O Eternauta, de Oesterheld e Breccia. Versão brasileira publicada pela editora ComixZone.

Surpreende a terminologia e os elementos que o autor utiliza e desenvolve, os mesmos que caracterizaram a linguagem da época: “companheiros”, “irmandade”, “solidariedade”, “guerra”, “sobreviventes”… Faltou apenas o termo “detidos-desaparecidos”, uma das atrocidades cometidas pelos regimes. Contudo, a história em quadrinhos apresenta distintas situações que merecem ser analisadas neste trabalho.  Por exemplo, as que fazem referência ao que depois seria vivido pela família Oesterheld e muitíssimos militantes na vida real. 

Antes de tudo, a contradição que se apresenta ao protagonista após um dos enfrentamentos entre extraterrestres e humanos, quando este reflete sobre a possibilidade de voltar a sua casa e encontrar com sua mulher e sua filha ou continuar a luta até o triunfo final. Frente a este dilema, o roteirista, de maneira retórica, se questiona: “como voltar assim, dizendo-lhes que fomos vencidos, que não nos resta outra esperança a não ser viver escondidos como vermes?” (pág. 289).

O questionamento na realidade afirma que, apesar da derrota frente ao inimigo invasor, as alternativas estavam ao alcance das mãos; que o mundo poderia realmente ser transformado por outro que melhoraria a vida dos mais humildes; que a propriedade privada poderia se transformar perfeitamente em propriedade coletiva; que os recursos, os bens e as riquezas poderiam deixar de estar nas mãos de transnacionais para serem distribuídos entre todos e todas.

Outra situação da ficção que reflete a realidade da época é a que se apresenta quando o Eternauta dialoga com um dos “manos”, que afirma: “Logo me entederás, Juan Salvo… Assim como há entre os homens, acima dos sentimentos de família e de pátria, um sentimento de solidariedade com todos os demais seres humanos, descubrirás que também existem entre todos os seres inteligentes do universo, por mais diferentes que sejam, sentimentos de solidariedade, um apego a tudo que é espírito […]” (p. 421).

Com este parágrafo, o autor ressalta o valor de um dos princípios que reivindica, o da solidariedade: o mesmo que fluía entre os militantes da Resistência Peronista para enfrentar os militares que, desde 1955, não deixavam de atacá-los e bani-los das eleições. Novamente, uma alusão ao “herói coletivo”.

Che e a Revolução

A outra história que nos interessa trabalhar é “Che”. Foi publicada no ano de 1969 e a ideia original era realizar histórias em quadrinhos de grandes figuras tais como Sandino, Tupac Amaru, Bolívar, entre outros. Oesterheld escolheu Che para inaugurar sua coleção. Não escolheu qualquer homem: optou por um dos mais solidários, alguém que entregou a sua vida considerando que outro mundo era possível, que outro Homem ou Mulher eram possíveis.

O autor se move entre o caminho revolucionário que escolheu Ernesto Guevara e sua biografia. Destaca que, podendo ter sido matemático, engenheiro ou contador, escolheu ser médico porque os pobres, além da miséria e da fome, sofrem de piolhos, lepra, mal de Chagas, etc (p. 23). E aponta que não termina sua graduação porque, na realidade, as enfermidades que na verdade gostaria de curar não se chamam febre tifoide, malária ou lepra, mas sim fome, exploração e injustiça (p. 25). Finalmente, termina o curso de Medicina em tempo recorde.

Che recorre a América e a pobreza, as injustiças e a miséria aprofundam sua dor quilômetro a quilômetro. Em sua viagem chega à Guatemala, atraído pelas políticas transformadoras e anti-imperialistas de Jacobo Arbenz, que promove a reforma agrária, toca nos interesses da United Fruit Company e impõe ações de protecionismo econômico, entre outras medidas populares e a favor da nação. Ao fim, os Estados Unidos, a United Fruit Company e a CIA realizam um golpe de Estado e terminam executando o presidente: Guevara é testemunha direta dos eventos, inclusive participando na débil resistência armada que a Aliança da Juventude Democrática, braço do Partido Comunista, desenvolve contra os golpistas. Che consegue se asilar na embaixada argentina, que abandona para refugiar-se no México. É ali onde conhece os irmãos Fidel e Raúl Castro.

Che, de Oesterheld e Breccia. Versão brasileira publicada pela editora ComixZone.

Precisamente, a história em quadrinhos descreve em particular este encontro, a participação de Che na Revolução Cubana, a luta em Sierra Maestra, o triunfo da Revolução e os cargos que ocupa no governo triunfante (Ministro da Indústria e presidente do Banco Central), e sua trajetória pelo mundo, até seu assassinato na Bolívia em 1967.

O caminho do Homem Novo

Oesterheld aproveita o pensamento do médico guerrilheiro para reforçar seu próprio compromisso com as ideias do “Homem Novo” e da Revolução, pelas quais ele mesmo arriscará a sua própria vida. Ressalta essa figura de quem “trabalha e se arrisca pelo incentivo moral… Sim, a revolução começa dentro de cada um” e enfatiza que “o verdadeiro revolucionário está guiado por grandes sentimentos de amor… Todos os dias é preciso lutar porque este amor à humanidade viva se transforme em fatos concretos, em ações que sirvam de exemplo, de mobilização… O revolucionário se consome nessa atividade ininterrupta que não tem outro fim que a morte, a menos que esta construção seja alcançada em escala mundial” (p. 65).

Germán transcreveu a carta de despedida escrita por Che a seus filhos Hildita, Aleidita, Camilo, Celia e Ernesto em março de 1965, na qual expõe seu profundo amor de pai e seu compromisso militante: “se alguma vez tenham que ler esta carta será porque eu não estou mais entre vocês. Quase não se lembrarão de mim e os mais novos não se recordarão de nada”. Ele explica que “foi um homem que atuou como pensava e, certamente, foi leal às suas convicções”. Che lhes pede que “cresçam como bons revolucionários, que estudem muito para dominar a técnica que permite dominar a natureza” e sentencia que “a revolução é mais importante que cada um de nós e que, sozinhos, não valemos nada” – uma frase que poderia ter surgido de uma reflexão do próprio Oesterheld.

O roteirista de histórias em quadrinhos mais importante da Argentina talvez tenha encontrado nesta carta, breve e cheia de sentimentos, o reflexo de seu próprio ideário, a ideia de um revolucionário mobilizado contra as injustiças, a importância da solidariedade entre a humanidade, e o “herói coletivo” como eixo central de seu próprio legado, expresso na missiva de Che.

A região contra o Império

A terceira das histórias que queremos resgatar neste texto é “América Latina e Imperialismo: 450 anos de guerra”, ilustrada por Leopoldo Durañona. Foi publicada na revista semanal El Descamisado a partir de 22 de maio de 1973 até seu fechamento por decreto em abril de 1974, quando foi interrompido o desenvolvimento da recapitulação proposta por Oesterheld, através de diferentes capítulos que refletissem ações do colonialismo e do imperialismo em nossa pátria e expressões de resistência nacional e popular.

A revista também expressava as opiniões da Tendência Peronista Revolucionária, que respondia à organização Montoneros. Possuía uma tiragem média superior aos 100 mil exemplares em seus 47 números, uma cifra extraordinária para uma publicação com essas características. A censura obrigou a troca do nome em duas oportunidades: “O Peronista Luta pela Libertação” na primeira instância e “A Causa Peronista” na segunda. O golpe de 24 de março de 1976 se consolidou quando o primeiro número da nova sucessora estava para ser lançado. 

Oesterheld iniciou a série com o compromisso de relatar “como o imperialismo nos roubou na América Latina”. Desenvolve suas consequências, instala fatos históricos específicos da Bacia do Rio da Prata e explica que “a história do imperialismo é a história do continente latino-americano – a Pátria Grande – e a história de nossa pátria. São 450 anos de guerra. Sim, de guerra. Porque os povos subjugados pelo invasor nunca se renderam. Peitaram. Lutaram. Deram a vida infinitas vezes em seu combate para serem livres. O imperialismo nunca foi uma simples frase de denúncia dos povos. Possuem nomes e sobrenomes. Possuem balas e sangue em sua sombria história”. (p. 5)

O trabalho traça um plano para encadear o percurso histórico, plano que não pode ser concluído pelo fechamento da revista. Ele contrapõe fatos históricos com eventos daquele presente. Começa com a “conquista” da América pelo império espanhol e, simultaneamente, denuncia o golpe contra o presidente socialista do Chile, Salvador Allende, em 1973: a ditadura de Pinochet, instalada com apoio da CIA, durou 16 anos.

Por outro lado, a obra questiona o conceito de “subdesenvolvimento” dos países latino-americanos, que expressa uma ideia conduzida pela noção de “evoluir” rumo ao modelo de países que, na realidade, possuem uma economia que domina as economias “periféricas” e termina condicionando-as e impedindo suas independências e, no lugar de “subdesenvolvidos”, os convertem em “dependentes”. Coloca assim em questão o conceito de “desenvolvimento” que as potências alcançam graças à exploração dos países do Terceiro Mundo.

Com clareza, Oesterheld prefere falar de “países roubados” no lugar de “países subdesenvolvidos”. A categoria de subdesenvolvimento, como outros conceitos utilizados para interpretar as realidades latino-americanas, é eurocêntrica, ou melhor, possui uma visão própria do “Norte”. Ela pretende jogar a responsabilidade do subdesenvolvimento na própria América Latina e, desta forma, encobrir a exploração das riquezas e dos recursos de nossas terras por parte dos chamados “países centrais”. Este é o conceito de imperialismo que a história em quadrinhos vai desenvolver.

Oesterheld denuncia o império espanhol pelo roubo do ouro e da prata, pelas condições desumanas que impôs nas minas destes minerais, onde os indígenas chegavam a preferir a morte ao trabalho em condições criminais. Ademais, o imperialismo causou guerras de dominação que esvaziaram o continente de homens e mulheres: quando a Espanha chegou na América, havia quase 90 milhões de indígenas; dois séculos depois, sobravam apenas 3 milhões… Quase 90 milhões de mortos, mais do que nas duas guerras mundiais (pág. 7 e 8).

Quando o “Renascimento” começou na Europa, nos territórios que seus invasores iriam chamar de “América” já existiam Impérios, cujas investigações mais recentes calculam mais de 60 milhões de habitantes, onde eram falados cerca de 1200 idiomas distintos; outras versões elevam o registro para cerca de 90 milhões de pessoas.

Aquele colonialismo mudou o rumo da história da região a partir de 1942, com o desembarque na ilha de São Domingos (hoje Haiti e República Dominicana) e logo em seguida no continente. Aquelas expedições introduziram ao continente americano doenças que arrasaram com a população nativa e debilitaram a agricultura de tal forma que chegaram a esfriar o clima planetário. Elas trouxeram epidemias como o sarampo, a varíola, a gripe e a peste bubônica, com consequências devastadoras para as populações originárias.

Junto a este flagelo, os invasores produziram guerras de dominação que contribuíram para “esvaziar” o continente de homens e mulheres. Como os indígenas “se esgotaram”, trouxeram mão de obra escravizada da África para trabalhar nos campos (pág. 7 e 8).

Os novos estudos apontam para um número chocante: no começo do século XVII o número de falecidos alcançou a marca de 56 milhões, isto é, 90% da população pré-colombiana e cerca de 10% da população mundial da época. Isto converte o etnocídio direto e indireto dos povos do continente no segundo evento mais mortal da história da humanidade em relação com a população mundial, superado apenas pela chamada “Segunda Guerra Mundial” que elevou a soma a cerca de 80 milhões de mortos. 

Contra essas violências, se levantaram processos de resistência. Oesterheld afirma que a América, “Nuestra América” nos dizeres de José Martí e Francisco Miranda, é rebeldia, vitória e luta, e destaca em um capítulo específico a rebelião de Tupac Amaru contra a dominação espanhola, contra os impostos abusivos cobrados dos indígenas, contra o maltrato das populações nativas. Por encarnar essa luta, Tupac Amaru foi esquartejado. Estas lutas pela libertação no passado são relevantes para a história em quadrinhos, que as apresenta como um exemplo para a libertação nacional do presente. Não à toa que O Eternauta, uma ficção, faz alusão às resistências dos povos originários diante do conquistador.

Entre Espanha e Inglaterra

Outro conceito interessante utilizado, relevante no pensamento nacional, é o de “semicolônia”. Para Oesterheld, até 1810, quando se consolidou a Revolução de Maio, a bacia do Prata era uma colônia declarada e, a partir desta data, passou a ser uma “colônia disfarçada” – o autor utilizava os conceitos sem nenhum véu.  Depois, a dominação muda de mãos: da Espanha para a Inglaterra. Desenvolve três capítulos específicos sobre as Invasões Inglesas de 1806 e 1807, em que descreve como o “povo em armas” resistiu contra as tropas invasoras profissionais e muito melhor equipadas. Este é um tema também mencionado em O Eternauta.

O autor de “450 Anos de Guerra” questiona o revisionismo que afirma que em 25 de maio de 1810 o país tornou-se uma “pátria independente”; considera que na realidade a Argentina mudou de amo, o que constituiu uma transição de colônia declarada da Espanha a ser uma colônia disfarçada da Inglaterra, que passou a dominar a situação não com seus generais, mas através dos comerciantes e do contrabando. 

A revista “aceita” que, com o secretário da Guerra e de Governo da Primeira Junta, Mariano Moreno, perderam a mão, mas aponta três questões importantes: antes de tudo, de que se trata de uma história em quadrinhos, um gênero literário que permite alguns deslizes; segundo, expressa que Moreno é exaltado tanto por liberais quanto pela esquerda reformista; e, por último, defende sua opinião de que “enquanto Moreno enxergava a realidade através da Europa, dos contratualistas e de Rousseau”, aqueles que viviam nas margens não sabiam nada das ideias europeias, nem de Rousseau ou do Contrato Social. 

É possível analisar a discussão posterior a partir da explicação de Rodolfo Puiggrós na História dos Partidos Políticos Argentinos, onde afirma que a Revolução de Maio não pode ser explicada apenas pelas ideias da Revolução Francesa e nos eventos da Revolução Industrial, mas que a estrutura interna de nossa região (como a outorga de direitos aos povos originários) permitiu que os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade coincidissem com os ideais dos revolucionários de Maio. Deste modo, Puiggrós faz uma defesa de Mariano Moreno e de seus ideais contratualistas e sintetiza visões divergentes. 

De Rivadavia a Artigas e Rosas

Oesterheld também dedica capítulos a Bernardino Rivadavia, primeiro Intendente do porto considerado pela historiografia mitrista como “primeiro presidente”. Defende que foi o verdadeiro agente nativo dos ingleses, uma afirmação consensuada entre pensadores nacionais.

Com um diálogo simples e didático, o roteirista expressa os danos causados pelo imperialismo inglês e os efeitos negativos que produz em nossas região e para nossos povos:

“– O que foi, mãe? Por que não está tecendo? Não me diga que se cansou!
– Não, filhinho… É que não temos mais pedidos! Buenos Aires já não compra mais nada! Não sei do que vamos viver!” (p. 39)

É uma pincelada dramática da forma como as mercadorias provenientes de Londres, a baixo custo, destruíram a produção das indústrias locais e levaram à fome aqueles que as elaboravam.

Rivadavia foi o primeiro negociador de uma “dívida externa” [2] através do empréstimo com a Casa Baring Brothers de Londres, uma operação imposta como requisito explícito e formal para que o Reino Unido da Grã Bretanha reconhecesse a independência das Províncias Unidas do Rio da Prata. Este endividamento impôs uma subordinação extrema. Também foi o pai da Lei de Enfiteuse que, na prática, implicou na entrega de terras públicas a seus partidários, dando nascimento às oligarquias portuárias.

Outra figura, de signo oposto, destacada por Oesterheld através de seus vários capítulos de sua história em quadrinhos é José Gervasio Artigas, um dos fundadores da Pátria Grande, da Grande Nação Americana e da reforma agrária, impulsor da distribuição de terras públicas expropriadas dos espanhóis e dos “maus americanos” para entregá-las gratuitamente aos negros, aos mulatos, aos indígenas e aos crioulos pobres de modo que os infelizes fossem os mais favorecidos (p. 52).

O líder federal da Banda Oriental, considerado como o “pai dos pobres”, defendeu um programa de conteúdo revolucionário que incluía a declaração imediata da independência, sanção de uma constituição republicana, liberdade civil e religiosa, igualdade para todos os cidadãos, governo central com forte respeito às autonomias provinciais e o estabelecimento de uma capital que estivesse fora dos interesses portuários de Buenos Aires.

Juan Manuel de Rosas, esquecido e menosprezado pela história oficial, também encontrou espaço no relato da história de “América Latina e o Imperialismo”. Ela relata a “Lei de Aduanas” de 1835, que castiga com impostos as mercadorias que chegavam da Inglaterra, de modo a defender as indústrias e artesanatos provinciais. Com entusiasmo e espírito crítico expressa que “apenas 25 anos depois da Independência e graças a Rosas, Buenos Aires se lembra das 13 fazendas, as províncias! Graças a esta lei, voltam ao trabalho por todo o país os telares, os trapiches, as selarias, os estaleiros…” (p. 75).

A figura de Rosas será complexificada no interior do pensamento nacional e latino-americano; todavia, há consenso sobre a resistência realizada pelo Restaurador junto ao povo rioplatense contra o bloqueio imperialista anglo-francês.

Manuel Dorrego, Martín Miguel de Güemes e Facundo Quiroga são outras figuras cujas ações “tem cara de povo”, e que ganham um lugar ao longo da obra.

Em 8 de abril de 1974 a revista El Descamisado foi fechada pelo decreto 1100/74, sancionado pelo ministro do Interior Benito Llambí, que argumentou que a revista “promovia um caos conceitual e ideológico mediante a deformação da realidade e a destruição das instituições políticas e sociais”. Seria então barrada a ideia original de Oesterheld de cobrir 450 anos de história até chegar ao século XX.

Para fins de conclusão: os e as Oesterheld, o herói coletivo pelo qual militaram

Depois de suas ideias serem censuradas, como as de tantas e tantos outros, viriam sua detenção e sua desaparição, como as de 30 mil companheiros. O contraponto das histórias em quadrinhos com os fatos do passado e do presente obrigam a denúncia do modo de ação das ditaduras, argentina e latino-americanas, para impedir a libertação nacional e social dos países da região. A obra impressionante que foi desenvolvida em formato de história em quadrinhos expressa o ideal de toda uma geração decidida a transformar uma realidade injusta e desigual por outra igualitária, com independência econômica, soberania política e unidade continental. Além disso, sua militância montonera mostra a coerência entre seu pensamento e sua prática concreta nessas tentativas de transformação.

As detenções e desaparições do roteirista, de suas quatro filhas, três genros e dois possíveis netos nascidos em cativeiro, expressa de maneira irrefutável a prática genocida por parte do terrorismo de Estado na Argentina, que dizimou toda uma família como exemplo. Duas de suas biógrafas, Fernanda Nicolini e Alicia Beltrami, explicam com clareza: não se tratou de aniquilar a Germán Oesterheld mas “as” e “os” Oesterheld no plural, a este herói coletivo pelo qual militaram ele, sua família e toda uma geração.

“Às vezes a história de um país descarrega toda sua violência contra toda uma família”; e, também, contra toda uma geração.

Notas:
[1] – Alguns Centros Clandestinos de Detenção foram transformados em Museus de Memória e no dia da inauguração muitos filhos puderam deixar flores para seus pais.
[2] – Supunha-se que o empréstimo do Baring Brothers estava destinado a realizar obras como o melhoramento do porto e a ampliação da infraestrutura sanitária. Alguns afirmam que, na realidade, nos endividar foi “o preço de nossa liberdade”, para que a Inglaterra reconhecesse nossa independência: forma estranha de começar a história de um país livre. A rigor, o empréstimo foi de 1 milhão de libras (moeda inglesa). Porém, devido às comissões daqueles que foram negociar o empréstimo (entre eles Manuel García, amigo pessoal de Rivadavia), aos custos, impostos, etc, nos cabia receber apenas 552.700 libras (quase a metade). Para piorar, este dinheiro… não chegou! Existe registro do ingresso de apenas 160.678 libras. O que aconteceu com as demais 412.700 libras? Mais um mistério em nossa história. Finalmente, o empréstimo só terminou de ser pago quase 100 anos depois, por um total de 5 milhões de libras (quatro vezes o montante que havia sido outorgado). Mais que um ato de corrupção, uma verdadeira fraude.

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