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Amorfia em campanha

A ver se, na forma, a campanha de Lula será capaz de superar o conteúdo de fato amorfo, o rebaixamento moral, o semear despolitizante. A crise estética, na forma, vista no lançamento do último sábado, é desdobramento da crise real do conteúdo.
A ver se, na forma, a campanha de Lula será capaz de superar o conteúdo de fato amorfo, o rebaixamento moral, o semear despolitizante. A crise estética, na forma, vista no lançamento do último sábado, é desdobramento da crise real do conteúdo. Por Pedro Marin | Revista Opera
03.05.2022 – Lula participa de Ato de apoio do Solidariedade à sua candidatura à presidência da República. Geraldo Alckmin e Paulinho da Força participaram do evento. (Foto: Ricardo Stuckert)

Uma frase proferida por Geraldo Alckmin (PSB) durante o lançamento oficial da pré-candidatura da chapa PT-PSB no último sábado (7) chama a atenção: “Números diferentes, quando somados, não diminuem de valor. Pelo contrário: elevam a sua grandeza. Essa lógica aplica-se também à política.”

A colocação, muito didática, clama por atenção porque constitui o núcleo central desta frente ampla composta por PT, PSB, Solidariedade, PSOL, PCdoB, Rede e PV: a ideia de que a união de forças políticas diversas inevitavelmente leva a uma força maior, força esta necessária – diz a campanha – para “combater o fascismo” e “recuperar a democracia”.

Ocorre que, se é um fato inegável que assim é a lógica matemática, na política a mesma lógica não se aplica, ao contrário do que diz o pré-candidato a vice. A essência dos números, como Alckmin bem aponta, é a grandeza. Com exceção do zero, cuja essência é a ausência de grandeza, todos os números representam somente uma escala determinada de uma grandeza maior ou menor. O número três, sendo um amontoado de vários uns, se somado a quatro – outro amontoado de uns – de fato forma sete, número maior em grandeza que os anteriores individuais que foram somados, mas que é, de novo, só um amontoado maior de uns. A essência da política, no entanto, não é a grandeza: é uma mistura complexa, que une interesses objetivos, percepções subjetivas, sentimentos, movimento, disposição e moral, todos estes em movimento sob e sobre os três elementos fundamentais da política: programa, bases e estratégia. Um agrupamento grande, mas incoerente, desprovido de razão, com o moral baixo e defendendo desejos mesquinhos, não necessariamente vence um pequeno agrupamento que no entanto é coeso, consequente, convicto e defensor das maiores virtudes. Pelo contrário, a História prova que muitas vezes os pequenos vencem, porque perduram; e que por vezes acabam por tornarem-se maiores que seus inimigos. De exemplo serve o próprio PT, nascido nanico e tornado gigante e que, mesmo numa posição de força – no governo Dilma – foi derrotado, num processo que empossou um presidente desprovido de apoio popular e, depois, levou à ascensão inesperada de um deputado do submundo, junto de seu minúsculo partido.

É verdade para ambas as coisas, a lógica matemática e a lógica política, que a essência dos objetos se altera a cada operação ou passo dado. Três deixa de sê-lo quando somado a quatro; a junção dos dois números leva a sete, sendo sua essência – a grandeza – alterada. O que Alckmin deixa de dizer é que é isso que, sim, se aplica também à política. A aliança de “números diferentes” muda a essência da força: muda o programa defendido, tornando-o suficientemente palatável e possível para todas as partes; muda as bases, à medida que o programa interessa a algumas, que se unem à força, e não a outras, que a abandonam; e muda a estratégia, porque, mudadas as pedras essenciais da política – bases e programa – o caminho a se percorrer e a forma de percorrê-lo hão necessariamente de ser também alterados. Para prová-lo, basta propor que o leitor pense se uma aliança Lula-Bolsonaro ou Lula-Boulos não significariam coisas radicalmente diferentes da atual, em termos de programa, estratégia e bases.

Tanto forças políticas, como números, se confrontam uns com os outros. Na matemática, a interação dos números é a operação; mas é aquele que escreve os números (4, 7) e os sinais (+,-,/,*) que define como interagem – definindo também, portanto, o resultado final. Na política, ninguém define como as forças interagem. A própria interação das forças, que é subjetiva, vai determinando as interações subsequentes, até que se atinja um resultado. Isso é: na política a existência de certos humores ou forças já altera o quadro geral para todas as forças em disputa e, além disso, a política comporta o acaso, a contingência, a fortuna. O líder não determina nada, ele navega, se preparando para aproveitar as surpresas se bom líder for. Outro exemplo: a impopularidade de Bolsonaro tenderia a levar à ascensão de uma outra força, provavelmente uma das várias que ainda disputam para representar uma “terceira via”, mas assegurar esta impopularidade não está em domínio completo de nenhuma das forças individualmente.

Em eleições, há de fato a tendência a unir a lógica matemática à lógica política. Essa tendência normalmente leva a concepções marketeiras – e erradas –, que creem possível produzir qualquer produto político, não importando qual seja o cenário; ou a adotar “fórmulas perfeitas” ao que consideram cenários dados, ignorando que há uma miríade de razões que consolidam um certo cenário, e que há também uma série de respostas possíveis a ele. As eleições são ligadas aos números, é certo: no Brasil, vence quem tem 50% mais um voto. Mas as eleições, por mais objetivas que possam ser, estão submetidas à política, que é arte, não ciência. Prova dou logo: tão submissas estão as eleições à política que, por razões políticas, pode ser que sequer eleições haja. Os números são, certamente, o que definem as eleições; mas os números são pessoas, com interesses, paixões e problemas específicos, à busca de resposta para suas demandas, que podem inclusive rejeitar as eleições.

Enfim, que importa todo esse falatório cansativo? Importa pelo que vimos no lançamento da pré-candidatura no último sábado. A união de humores diversos, de números em tese tão diferentes, levou a um espetáculo de amorfia e com conteúdo incerto: ruim para a matemática, é fórmula péssima para a política. O que se viu é um show de marketing, focado em alguns pontos-chave: lembrar de um “passado glorioso” ao mesmo tempo que se propõe esperança – isto é, uma campanha que quer ser ao mesmo tempo reformista e conservadora; propor “derrotar o fascismo” e “recuperar a democracia” por meio de eleições – coisas que somadas, se bem pensarmos, são completamente desprovidas de sentido; unir “eficiência econômica” e “justiça social” (como disse Alckmin em seu discurso, propondo “mudar os termos do debate político” – dando prova de que, como apontei, o marketeiro realmente é um tipo de criança que crê possível mudar o mundo por meio de frases de efeito).

A fórmula é ruim no geral porque trava o movimento, confundindo as bases sobre a própria estratégia: não sendo claro para onde se marcha, se marcha mal e pouco, sem vigor. Também é ruim porque dilui o líder como um ser distinto, dando-se a ele o caráter de um produto ao lado de tantos outros iguais: prejudica a ligação do líder com as bases e o público em geral. O líder deve apontar um caminho distinto, único, e de forma clara: até aqui, a chapa PT-PSB não o fez. Quanto ao cenário específico, é fórmula ruim porque implica ignorar a realidade presente e as ameaças futuras, talvez precisamente pela tentativa de sobrevalorizar o passado. A marca é demonstrada não só pelos problemas nos quais não se tocou, como os militares, ou na ridícula ideia de que “não se discute política econômica antes de ganhar as eleições”, mas numa concepção política mais geral da própria campanha: num país em que metade da população está esfomeada e com o salário mínimo achatado, não faz nenhum sentido que o humor prevalecente seja o desejo por “moderação”, que se busque fazer uma conta excelente sobre a escala “média” dos temperamentos, precisamente porque a fome é coisa que faz com que o estômago, que antes pedia, passe a exigir. Por trás da mais aparente humildade do pedinte há uma tonelada de ódio esperando a face de um líder ou a força de uma ideia para, no anonimato da multidão, se pôr em movimento. Ao invés de oferecer esta plataforma em um momento que tende à radicalidade, a chapa Lula-Alckmin oferece uma cadeira de balanço – que chamam esperança – para que os vitimados dos últimos seis anos aguardem até outubro.

Enquanto isso, o candidato a que Lula se opõe – não-nomeado durante todo o discurso do pré-candidato, o que considero um erro – não retrocede nunca, dificilmente dá passos atrás. Aqui há algo que se precisa observar com atenção: uma das “virtudes” (se é que se pode empregar o termo para o caso) de Bolsonaro, antes de ser um “radical de direita”, foi ter sido um radical. Trata-se do único candidato presidencial que atacou a Rede Globo de dentro dela – Brizola o fez, mas enquanto governador. Se é verdade que este fato, que deve motivar vergonha à esquerda brasileira, é de segunda ordem, é também verdade que ele é um dos elementos que constroem uma percepção maior: a de que o presidente “vinha para mudar tudo”, “é contra o sistema”, “não tem papas na língua e fala a verdade”. O que a campanha petista propõe é que, depois da desilusão com Bolsonaro, o que o povo esfomeado espera é de um retorno às ilusões; uma recomposição do sistema político, talvez sem saber exatamente o que isso seja, mas com a esperança do pão ou das migalhas do pão. A promessa, se é ruim por si só, colocada tão abstratamente, sem apontar ao inimigo que tirou o pão, sem apontar às formas como o trigo pode ser colhido, sem apontar quem acenderá o forno, não tem nem poder de convencimento nem força para mobilizar. Mas, mais do que isso, deixa brechas aproveitáveis a Bolsonaro ou outros candidatos. O presidente tem, por exemplo, falado duramente contra os acionistas da Petrobras. Esconde que a responsabilidade sobre a Política de Paridade Internacional (PPI) é inteiramente dele, é claro; que com uma canetada ele poderia pôr fim à festança dos acionistas. Mas o que Bolsonaro faz é uma aposta: a de que falar grosso, mesmo que a origem da fala não tenha sentido, não só inflame as próprias bases, mas semeie o ódio dentre os indecisos. Aposta essa que é feita sem receios de que os acionistas se incomodem, é também bom que se note, enquanto a chapa PT-PSB procura dizer que vai “unir eficiência econômica e justiça social”.

Em resumo, o que se está fazendo é unir dois humores diversos, mas recauchutando suas diferenças, as recalcando; daí a amorfia da coisa toda. Ao incômodo e à vergonha que é a aliança, que é só a manifestação de uma interpretação errada no momento errado, vem somar a imaginada solução: ignorar tal incômodo e vergonha como se inexistentes fossem; suprimir as contradições (por meio de infantis piadas como “lula com chuchu”, típicas de um adolescente tentando quebrar o gelo em um encontro, ou frases como “uma coisa não exclui a outra” quando se fala em interesses econômicos) ao invés de enfrentá-las. Se isso é coisa possível aos políticos (tanto quanto é ridícula), é dura às bases. Também recalcando o fato, estas tendem, como se vê em casos recentes como o da comunicadora Rita Von Hunty, à fúria contra aqueles que, ao contrário delas, não atenderam ao incômodo e vergonhoso chamado; a fúria se desloca dos objetos que a motivam, porque um não pode ser pronunciado e o outro tornou-se aliado. Se a campanha de Bolsonaro atacar neste ponto – e tende a fazê-lo, usando fórmulas como “o sistema, desesperado, se juntou inteiro contra meu governo” – será difícil esconder o ferimento, e ignorá-lo, como se tem feito, pode custar caro.

A ver se, na forma, a campanha de Lula será capaz de superar o conteúdo de fato amorfo, o rebaixamento moral, o semear despolitizante. A crise estética, na forma, vista no lançamento do último sábado, é desdobramento da crise real do conteúdo. A confusão, a dissolução da própria mensagem e imagem, a tentativa de esconder o evidente, todas levam ao imobilismo; é nele, no imobilismo, que o PT vem apostando há muito tempo, e é essa a aposta que fez no ano passado. O político se vende no varejo, mas as elites o compram no atacado. Pouco importa, em eleições, os sentimentos destas últimas. Mas o povo o compra no varejo. Quer um caminho distinto, respostas, clareza. Tentar se vender tão desesperadamente no atacado, buscando agradar estas elites, deixa um enorme espaço à disposição do inimigo. E ao contrário do que ocorre no mundo da matemática, na política o inimigo se move, bagunçando cálculos com suas bases ou botas. Quem não é capaz de mobilizar uma campanha para derrotar estas primeiras nas urnas sequer terá chance contra estas segundas nas ruas; e apesar dos silêncios e das conversas de bastidor, este é um combate que inevitavelmente se imporá, de uma forma ou de outra.

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