Em julho de 1972, eu e meu amigo Francílio fomos ao Chile, com nossas companheiras, em uma viagem que misturava passeio e política. Allende era o Presidente chileno e a luta de classes no país atingia seu patamar mais alto. Eram momentos decisivos para o êxito da Unidade Popular. Era também uma grande oportunidade para revermos grandes amigos exilados em Santiago.
Na ida, fomos de carro, passeando, do Rio a Montevidéu. Lá, deixamos o veículo em uma garagem e partimos para a capital portenha, no navio a vapor Ciudad de Buenos Aires, onde pegamos um avião para Santiago.
A permanência no Chile foi emocionante. Reencontramos nossos amigos e conhecemos um pouco a experiência por que passava o país. Participamos da Marcha por los Cambios, uma imensa manifestação com mais de um milhão de pessoas no centro de Santiago, em apoio às mudanças que o governo Allende tentava implementar, em meio ao boicote da burguesia.
Na volta ao Rio de Janeiro, fomos de avião até Montevidéu, onde pegamos o carro e nos colocamos na estrada, sem saber que algumas surpresas nos aguardavam no caminho. Passamos em Punta del Este, com muita fome, por volta das 14 horas. Como era inverno, parecia uma cidade fantasma. Depois de muita procura, descobrimos um restaurante aberto, que nos pareceu o melhor do mundo, apesar de simples. Só uma das mesas estava ocupada, por um homem bebendo vinho.
Enquanto meu amigo ia ao banheiro, ocupamos uma mesa e descobrimos que as especialidades da casa eram sopas e vinhos. Nada melhor para famintos, no rigoroso inverno uruguaio.
De repente, meu amigo volta esbaforido e sussurra: “Sabem quem está ali naquela mesa? O Presidente João Goulart!”. Pensei com meus botões: “Esse cara está louco; imagina o Jango aqui nesta espelunca!” Aproveitei para ir ao banheiro e conferir. Quando cheguei perto do homem, não tive dúvida: estávamos diante do nosso ex-presidente, deposto pela ditadura militar. E nós chegando do Chile, onde a burguesia, com a indefectível ajuda da CIA, tentava derrubar outro Presidente!
Imediatamente, mudamo-nos para uma mesa próxima a Jango e tentamos conversar sobre política brasileira, mostrar-lhe as possibilidades de sua volta triunfal, com a derrubada da ditadura! Ele logo mostrou que este tema seria de mau tom. Parecia muito deprimido e desesperançado.
A conversa acabou girando sobre cultura e futebol. Os olhos de Jango marejavam, sobretudo quando se pronunciava a palavra Brasil. Dava vontade de botá-lo na mala do carro e trazê-lo de volta!
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Não era uma época de ouro para a cultura brasileira. Ao mesmo tempo, havia a ofensiva ufanista da ditadura, o “Brasil: ame-o ou deixe-o”, o “milagre brasileiro”. Na América Latina, a esquerda avançava e a direita articulava grande ofensiva: ditaduras militares, torturas, desaparecimento de militantes.
Perdi a noção de quanto tempo ficamos com Jango, até que seu filho João Vicente chegasse ao restaurante para levá-lo.
Dois dias depois, na fronteira Brasil/Uruguai, fomos parados em um posto do exército por militares que já nos esperavam com armas no acostamento e olhavam, fixamente, a placa do carro. Habilmente, levaram-nos a uma sala, a pretexto de verificar documentos, enquanto o carro permaneceu fora de nossas vistas. Logo, desconfiei: descobriram nossa ligação com o MR-8 e nos pegaram. O que fariam de nossas companheiras, que não compartilhavam nossa militância? Para onde nos levariam para iniciar a tortura?
Algum tempo depois, fomos liberados pelos militares, que devolveram a chave do carro e autorizaram nossa partida. Começamos a desconfiar que tudo havia sido revistado. A primeira coisa que percebemos foi o sumiço de vários rolos de filmes fotográficos, que guardávamos no porta-luvas, ainda virgens.
A desconfiança nos acompanhou a viagem toda. Será que nos pegariam mais à frente, para evitar um incidente na fronteira?
Praticamente, só paramos para nos alimentar, botar gasolina e nos revezarmos ao volante. Passaram o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Chegando à fronteira com o Rio de Janeiro, veio outra paranóia. Será que, por razões táticas, resolveram nos prender no Rio, já que éramos todos cariocas? Chegamos incólumes. O tempo foi passando e a desconfiança também.
Uns sete anos depois, quando eu já militava clandestinamente no PCB e era candidato a Presidente do Sindicato dos Bancários do RJ, chego ao trabalho no Banco do Brasil e um colega me entrega um envelope apócrifo, deixado por um homem de terno. Quando abri, eram as fotos daquela viagem, sem os negativos e, por norma de segurança, sem que, em nenhuma delas, aparecessem camaradas com os quais estivemos em Santiago.
Só podia ser um recado da repressão: “fomos nós; continuamos de olho!” A única dúvida, que perdurou por dez anos, era a razão de nos terem parado na fronteira. Teria sido o contato com dirigentes do MR-8 exilados no Chile ou o encontro fortuito com Jango no Uruguai, já que em ambos os países o SNI seguia brasileiros?
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O tempo passou mais um pouco até que, em 1982, fui preso, com cerca de 80 camaradas, quando a Polícia Federal desmontou um Congresso clandestino do PCB, em São Paulo. A invasão do local se deu de forma espalhafatosa, com dezenas de jovens agentes armados, tensos, gritando, mandando-nos botar as mãos para o alto. Na sede da Polícia Federal, dividiram-nos em pequenos grupos. No meu grupo, lembro-me do Armando Ziller, do Lourenço e do Takao Amano, que tinha fama de grande atirador e lutador de artes marciais, o único que ficou algemado.
O responsável pelo meu interrogatório era o delegado Veronezi, que mais tarde veio a ser diretor da Polícia Federal em SP. Depois das costumeiras preleções ameaçadoras, o delegado, com minha ficha na mão, finalmente, faz a primeira pergunta:
— Quer dizer que você era homem de ligação com o João Goulart no Uruguai?
Ainda bem que ele não perguntou nada sobre o MR-8. Talvez por isso é que eu e Francílio ainda estivéssemos vivos. E ainda bem que, em 1982, a repressão já não tinha mais condições de torturar presos políticos, com a ditadura enfraquecida pela resistência democrática. Além do mais, a notícia da nossa prisão correra o mundo e, na porta da Polícia Federal, havia uma vigília de solidariedade, por onde passaram inúmeras personalidades, inclusive um sindicalista chamado Luiz Inácio da Silva, cujo irmão, Frei Chico, era um dos presos.
Apesar de ser a mais pura verdade, minha resposta poderia parecer provocação. Disse ao delegado que devia haver algum engano do informante, pois meu único encontro com Jango foi casual, em uma adega uruguaia, onde bebemos vinho e conversamos apenas sobre música e futebol.
Por sorte, era 1982.
— Você acha que eu tenho cara de babaca? – aos berros, irado, perguntou o delegado e deu um murro forte na mesa. Em seguida, levantou-se para tomar café e se acalmar. Louco para me dar uma porrada!
*Este texto é parte do livro “68 – a geração que queria mudar o mundo”, editado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em 2011.