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Editorial: as eleições e a tempestade por vir

Fiadores da frente ampla, após as eleições, cobrarão a fatura; e terão extrema-direita organizada e Partido Fardado como auxiliares.
(Foto: Gabriel Fernandes)

“Na luta contra o golpismo militar, estabelecera-se uma ampla frente […] foi, importante, a participação da burguesia, de que uma parte se aproximou do povo, para a luta comum, enquanto outra parte se compunha com os golpistas. Tendo fins limitados – para muitos, apenas a defesa formal da legalidade – essa frente abrangia forças bastantes heterogêneas. O desfecho decorreu da hegemonia que a burguesia exerceu na frente que se formou ao calor dos acontecimentos e com um nível de organização ainda precário. As forças fundamentais não haviam alcançado ainda o preparo suficiente para dirigir a luta. Assim, o esforço do novo governo, nos moldes parlamentaristas, seria dirigido para entravar o avanço das forças populares, para destruir as formas de organização que haviam sido estabelecidas durante a crise e para impedir que prosseguissem em desenvolvimento aquelas forças que se haviam revelado no decorrer dos acontecimentos”.

O trecho de Nelson Werneck Sodré em seu “História Militar do Brasil” se refere ao ano de 1961 e ao contexto da iniciativa militar de pôr impedimento à posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros. Se faz relevante neste editorial pelos acontecimentos posteriores àquele momento e a descrição que Sodré faz deles. Esta ampla frente legalista que se formara, contando com uma mobilização nacional, greves, e até mesmo a Cadeia da Legalidade, liderada por Brizola a partir do Rio Grande do Sul, teve como desfecho a implementação do parlamentarismo como condição para a posse de Jango. Esta foi a solução decorrente da “hegemonia burguesa” naquela frente.

Derrotada sua tentativa de “golpe branco”, os golpistas passaram, desde então, a conspirar, em preparação para o golpe de 1964. Por outro lado, as frações da burguesia que haviam rejeitado o golpismo em 1961, a partir de então com um Congresso simpático às suas demandas, passaram a exercer pressão sobre o presidente, cuja “culpa fundamental […] passou, a partir daí, a ser, justamente, a de não empregar as ações repressivas para deter o avanço da mobilização política, de ampla base popular, que exigia as reformas”. Assim, “em março de 1964, o presidente João Goulart compreendia que o espaço de manobra que lhe restava era extremamente reduzido. A chamada ‘política de conciliação’, que vinha conduzindo, e que o desgastava enormemente nas duas áreas, esgotava rapidamente as suas possibilidades”.

Em resumo, Sodré descreve como um presidente, impedido de assumir, conquistou sua posição em decorrência de um amplo movimento popular, dirigido no entanto por um setor da classe dominante, que, no momento seguinte, passou a pressioná-lo, até o momento em que, indispostas com a política de conciliação de Jango, se juntaram aquelas frações “democráticas” da burguesia com as golpistas, em movimento cuja liderança e efetivação coube ao Exército. Negando-se a reagir a este golpe, como Brizola havia feito três anos antes, Jango deixou-o marchar livre, imaginando assim evitar derramamento de sangue; o golpe fê-lo jorrar, no entanto, por longos 21 anos.

O episódio descrito tem lá suas semelhanças de forma com a conjuntura que vivemos desde 2016, com o golpe contra Dilma, o retorno dos militares à cena política, a prisão de Lula e sua volta como o candidato favorito nas eleições deste ano. Não é no entanto a forma que nos interessa na comparação: é o conteúdo.

Tal qual em 1961, as classes dominantes hoje se encontram divididas. Como em 1961, há aqueles setores que, frente ao golpismo, juntam-se à frente ampla, em cujo centro está de novo figura popular e operadora da conciliação, e a hegemonizam. O que de forma mais relevante separa o “conteúdo” de 1961 e o de 2022 é a profundidade com a qual os setores ditos “democráticos” da classe dominante são acolhidos nesta frente ampla, e a intensidade com a qual esta mesma frente trabalha e trabalhou para tornar as forças populares inertes. Uma mobilização popular e de escala nacional, como a lançada contra o golpismo em 1961, ou ainda o nível de organização demonstrado pela classe trabalhadora entre 61 e 64, hoje mais parecem fabulações pueris.

Hoje, a falta de definição quanto ao programa econômico e a despolitização da campanha petista se somam à figura de Alckmin na vice-presidência. O fundamental deste elemento não é o fato de significar uma composição à direita, visando dar à chapa um verniz de moderação; nem o fato de ser uma ofensa aos que viveram (ou morreram) sob as gestões tucanas em São Paulo; nem tanto a gafe despolitizante que significa para as próprias bases petistas, que por tanto tempo combateram Alckmin nos mais duros termos e agora se obrigam a engoli-lo como um “companheiro”. O fundamental é que Alckmin significa de fato um freio de mão, colocado ali, na vice-presidência, para assegurar às classes dominantes que um governo Lula não sairá da linha. É curioso, mas a lição colhida pelo Partido dos Trabalhadores a partir da derrubada de Dilma em 2016 não foi da necessidade de apostar na mobilização popular; pelo contrário, o aprendizado foi quanto à utilidade de preservar inimigos na linha sucessória. A essa garantia se somam as mudanças e tentativas de aproximação com representantes incontestes do pacto neoliberal, às portas do 2 de outubro. Isto é, mesmo com resultados muito favoráveis nas pesquisas, a campanha segue aprofundando seus contatos à direita, ao tempo que alguns de seus acólitos “de esquerda” aproveitam a reta final da corrida eleitoral para boquejar contra candidaturas populares e minoritárias.

Frente a tais composições, as forças de esquerda honestas – excluindo-se portanto os oportunistas mencionados acima – se dividem em dois campos. O campo hegemônico, que conta com a direção do grosso dos movimentos sociais e dos sindicatos, embarca na frente ampla sob a justificativa de que é necessário disputá-la; de que é ali, dentro dessa composição heterodoxa, que as forças de esquerda deveriam se manter – apoiando Lula desde já e a despeito das composições –, na perspectiva de empurrar o governo mais à esquerda. Um outro campo, decididamente radical, aposta em sua independência, em candidaturas próprias, não tanto na esperança de vencer as eleições, mas sim na de fortificar-se para, no momento seguinte, de fora do governo, pressioná-lo à esquerda.

Não há dúvidas de que as forças de direita que compõem a frente ampla já são, e serão ainda mais, um elemento de pressão contra os interesses populares na própria coalizão. Após as eleições, estas terão ainda o auxílio de uma extrema-direita organizada e mobilizada, e um bloco militar disposto a tudo – como dá prova suas incontáveis ameaças desde 2016 e sua participação ao longo de todo o governo Bolsonaro – para posicionar-se como representante máximo dos interesses da burguesia interna e do imperialismo quando estes setores o requisitarem. Isto tudo num cenário novo: não só pelo Brasil não conhecer uma extrema-direita tão organizada desde a década de 1930, e por, desde anos 1980, ignorar o fator militar, mas acima de tudo porque o cenário externo oferece menos margem de manobra, e nunca, nem sob a “Carta ao Povo Brasileiro”, uma candidatura do PT abriu-se tanto à influência da direita em sua própria chapa. Quanto a isso, ambas tendências têm acordo.

A esse cenário, no entanto, se soma o histórico de paralisia dos movimentos populares durante os governos Lula, a mais absoluta inação durante o impeachment de Dilma e a prisão do ex-presidente, e, o que é mais gritante, o processo de letargia ao qual o PT submeteu as manifestações contra Bolsonaro no ano passado. Mais que a participação de forças de direita na frente ampla, a maior dificuldade que as forças populares encontrarão será superar e se desvincilhar do entorpecimento ao qual o núcleo desta frente as tem submetido; condição não só para “forçar o governo à esquerda”, mas para impedir que seja destruído ou absolutamente controlado pelas forças de direita, dentro e fora dele.

A perspectiva de um golpe, se afastada momentaneamente, o foi pelos acordos, não pela mobilização popular. Os fiadores destes acordos – incluindo a embaixada norte-americana – por óbvio buscarão cobrar a fatura do futuro governo. Se seus apetites não forem atendidos, não terão o menor pudor de aliar-se com os que hoje fustigam. À medida que um futuro governo se desespere a atender esses interesses, no entanto, se fragilizará, abrindo as defesas para aquela fração dos inimigos aos quais não se aliou. De novo a insistência em confiar em forças pelas quais adia-se a ruína pelo tempo que for adiado o ataque; “na paz se é espoliado por elas e, na guerra, pelos inimigos”. Que os fazedores de tempestade agradem os vendedores de guarda chuva, é esperado. Mas é mais grave: na configuração atual do processo que deverá levar a um governo Lula, os vendedores de guarda chuva são também úteis aos fazedores de tempestade.

É precisamente pela avaliação de que o Partido Fardado e a extrema-direita seguirão na cena política, e que sua ação contra o governo beneficiará a direita acolhida na chapa Lula-Alckmin e vice-versa, colocando à componente de centro-esquerda o trágico cenário de “desgastar-se enormemente nas duas áreas” à medida que busca conciliá-las, que a Revista Opera declara seu apoio às candidaturas daquele campo radical que tanto se esforçou pela mobilização contra o governo Bolsonaro, quando os hoje insistentes na necessidade de “eleger Lula no primeiro turno” dobravam os esforços em espalhar o medo sobre as manifestações e desmobilizá-las. Apoiar este campo, muito mais do que posição de princípio, é fazer a escolha estratégica de fortificar hoje aquelas forças que, sem as amarras dos pactos, terão amanhã a flexibilidade não só para pressionar a direita neoliberal acolhida no governo, mas também de confrontar aquela formada por extremistas órfãos de líderes e generais ambiciosos por liderar.

Para a Presidência, apoiamos a candidatura de Leonardo Péricles, da Unidade Popular pelo Socialismo (UP).

No Estado de São Paulo, a candidatura de Gabriel Colombo, do Partido Comunista Brasileiro (PCB) para o governo do Estado, bem como Vivian Mendes (UP) para o Senado, Isis Mustafa (UP), colunista desta revista, para deputada federal e Amanda Bispo (UP) para deputada estadual.

Destacamos e declaramos apoio ainda às candidaturas de Jones Manoel (PCB), também colunista da Revista Opera, para o governo de Pernambuco; Renata Regina (PCB) para o governo de Minas Gerais; Juliete Pantoja (UP) para o governo do Rio de Janeiro; Vivi Motta (PCB) para o Paraná; Carlos Messalla (PCB) para o Rio Grande do Sul; Giovani Damico (PCB) para a Bahia; Aroldo Felix (UP) para Sergipe; Chico Malta (PCB) para o Ceará; Frankle Costa (PCB) para o Maranhão; Teodoro da Cruz (PCB) para o Distrito Federal; e Professor Pantaleão (UP) para Goiás.

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