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O Ocidente precisa parar de bloquear as negociações entre Rússia e Ucrânia

Para que Ucrânia e Rússia cheguem a um fim do conflito, é necessário alcançar um acordo – mas, para tanto, o Ocidente há de parar de bloquear as negociações.
Para que Ucrânia e Rússia cheguem a um fim do conflito, é necessário alcançar um acordo – mas, para tanto, o Ocidente há de parar de bloquear as negociações. Por Vijay Prashad | Globetrotter – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
O ex-primeiro-ministro inglês Boris Johnson com o atual presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskyy. (Foto: The Presidential Office of Ukraine / president.gov.ua)

A Rússia invadiu a Ucrânia no dia 24 de fevereiro deste ano. A guerra tem sido horrenda, apesar de não ser comparável à terrível destruição imposta ao Iraque pelo bombardeio estadunidense (sob a doutrina de “choque e pavor”) em 2003. Na região bielorrussa de Gomel, que faz fronteira com a Ucrânia e a Rússia, diplomatas ucranianos se encontraram no dia 28 de fevereiro, com a perspectiva de iniciar negociações para um cessar-fogo. Essas negociações desmoronaram. Depois disso, no começo de março, os dois lados se encontraram de novo em Belarus para outras duas rodadas de negociações. No dia 10 de março, os ministros de Relações Exteriores da Ucrânia e da Rússia se encontraram na cidade de Antália, na Turquia, e finalmente, no final de março, altos oficiais da Ucrânia e Rússia se encontraram em Istambul, na Turquia, graças à iniciativa do presidente turco Recep Tayyip Erdoğan. No dia 29 de março, o ministro de Relações Exteriores turco, Mevlüt Çavuşoğlu, declarou: “nós estamos contentes em ver que a reaproximação entre as partes cresceu em cada um dos estágios. Chegou-se ao consenso e à compreensão mútua em algumas questões”. Em abril, chegou-se a um entendimento sobre um acordo provisório entre a Rússia e a Ucrânia, de acordo com um artigo da Foreign Affairs.

No começo de abril, tropas russas iniciaram uma retirada do Oblast (região) de Chernigov, no norte da Ucrânia, o que significou a suspensão de operações militares russas ao redor de Kiev, capital do país. Os Estados Unidos e o Reino Unido afirmaram que essa retirada foi consequência de uma derrota militar, enquanto os russos disseram que era devida ao acordo provisório. É impossível afirmar, com os fatos disponíveis, qual dessas versões é a verdadeira.

Antes do acordo avançar, o então primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, viajou para Kiev, chegando no dia 9 de abril. Um veículo ucraniano, o Ukrainska Pravda, reportou que Johnson havia trazido duas mensagens para o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky: primeiro, que “se deve pressionar, não negociar” com o presidente russo Vladimir Putin; segundo, que mesmo que a Ucrânia assinasse os acordos com o Kremlin, o Ocidente não os aceitaria. De acordo com o Ukrainska Pravda, logo após a visita de Johnson, “o processo de negociações bilaterais foi congelado”. Algumas semanas depois, o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, e o Secretário de Defesa estadunidense, Lloyd Austin, visitaram Kiev e, após a viagem, Austin declarou, numa coletiva de imprensa em um local desconhecido na Polônia: “Nós queremos ver a Rússia enfraquecida”. Não há evidência direta de que Johnson, Blinken e Austin tenham pressionado Zelensky diretamente para que deixasse de lado as negociações, mas há evidências circunstanciais suficientes para apontar essa hipótese.

A indisposição de permitir que a Ucrânia negocie com a Rússia é anterior a estas visitas, e foi resumida em um artigo do Washington Post publicado em 10 de março deste ano, no qual altos oficiais da gestão Biden declararam que a atual estratégia dos EUA “visa assegurar que os custos econômicos para a Rússia sejam severos e contínuos, bem como[ [visa] continuar apoiando a Ucrânia militarmente em seus esforços para causar o máximo de derrotas possíveis à Rússia”.

Bem antes da invasão russa à Ucrânia, desde 2014, os Estados Unidos gastaram – por meio da Iniciativa de Assistência à Segurança da Ucrânia e o Departamento de Defesa – mais de 19 bilhões de dólares em treinamento e equipamento para as Forças Armadas da Ucrânia (dos quais 17,6 bilhões foram gastos após a invasão russa, em fevereiro de 2022). O orçamento anual total das Nações Unidas para 2022 é de 3,12 bilhões de dólares, bastante inferior ao gasto pelos EUA na Ucrânia hoje. Os armamentos para a Ucrânia, as declarações sobre enfraquecer a Rússia feitas por altos oficiais do governo dos EUA, e a recusa em iniciar negociações para o controle de armas só prolongam uma guerra que é horrenda e desnecessária.

A Ucrânia não fica em Iowa

Ucrânia e Rússia são países vizinhos. É impossível alterar a localidade geográfica da Ucrânia e transferi-la para o estado de Iowa, nos EUA. Isso significa que, para que Ucrânia e Rússia cheguem a um fim do conflito, é necessário alcançar um acordo. Em 2019, Volodymyr Zelensky teve uma vitória esmagadora (de 73%) nas eleições presidenciais da Ucrânia, contra Petro Poroshenko, o candidato favorito do Ocidente. “Nós não seremos capazes de impedir negociações entre a Rússia e Ucrânia”, disse Zelensky num programa de TV, “Pravo Na Vladu”, antes de se tornar presidente, de acordo com a rede de notícias TSN. Em dezembro de 2019, Zelensky e Putin se encontraram em Paris, junto da então chanceler alemã Angela Merkel e o presidente francês Emmanuel Macron, encontro conhecido como “Normady Four”. Esse encontro foi uma iniciativa de Macron e Merkel. Desde 2019, o presidente francês Emmanuel Macron argumentava que era hora da Europa “repensar […] nossa relação com a Rússia”, porque “empurrar a Rússia para longe da Europa é um erro estratégico profundo”.

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Em março de 2020, Zelensky declarou que ele e Putin poderiam trabalhar em um acordo ao longo de um ano, com base no acordo Minsk II, de fevereiro de 2015. “Há os pontos no Minsk. Se movermos eles um pouco, que mal pode haver? Assim que não houver mais pessoas com armas, os tiroteios vão acabar. Isso é importante”, disse o presidente ucraniano ao The Guardian. Em uma coletiva de imprensa em dezembro de 2019, Putin disse que “não há nada mais importante que os acordos de Minsk”. A esta altura, Putin dizia que tudo o que ele esperava era que fosse concedida à região do Donbass um status especial dentro da Constituição da Ucrânia, e durante a esperada reunião Ucrânia-Rússia em abril de 2020, as tropas de ambos os lados teriam recuado e concordado em “desengajar ao longo de toda a linha de contato”.

O papel de Macron

Em 2020 já estava claro para Macron que as negociações não se tratavam só dos acordos de Minsk ou da Ucrânia; se tratavam da criação de uma “nova arquitetura de segurança” que não isolasse a Rússia – e que tampouco fosse subserviente a Washington. Macron tratou desses temas em fevereiro de 2021, em duas direções, e falou sobre eles durante sua entrevista ao Atlantic Council (um think-tank dos EUA). Primeiro, ele disse que a OTAN tinha “empurrado nossas fronteiras o máximo possível em direção ao leste”, mas que a expansão da OTAN “não foi bem-sucedida no que se refere a reduzir os conflitos e as ameaças lá”. A expansão da OTAN em direção ao leste, ele deixou claro, não traria mais segurança para a Europa. Em segundo lugar, Macron disse que a saída unilateral dos EUA do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário em 2019 – e a resposta da Rússia, seguindo os mesmos passos – deixava a Europa desprotegida “frente aos mísseis russos”. Ele declarou ainda: “como um europeu, eu quero abrir uma discussão entre a União Europeia e a Rússia”. Tal discussão seria pioneira no entendimento de segurança pós-Guerra Fria, o que deixaria os Estados Unidos fora da conversa com a Rússia. Nenhuma destas propostas de Macron puderam avançar, não só pela hesitação russa, mas principalmente porque não eram vistas favoravelmente em Washington.

Havia confusão sobre se o presidente dos EUA, Joe Biden, seria bem-vindo ao encontro dos Normandy Four. No final de 2020, Zelensky disse que queria Biden na mesa, mas um ano depois se tornou claro que a Rússia não estava interessada em ter os EUA como parte do encontro. Putin disse que os Normandy Four eram “autossuficientes”. Enquanto isso, Biden optou por intensificar as ameaças e as sanções contra a Rússia, com base nas alegações de que o Kremlin havia interferido nas eleições de 2016 e 2018 nos EUA. Em dezembro de 2021, não havia mais nenhum diálogo recíproco adequado entre Biden e Putin. Putin disse ao presidente finlandês, Sauli Niinistö, que era “necessário abrir negociações imediatamente com os EUA e a OTAN” sobre garantias de segurança. Em uma chamada de vídeo entre Biden e Putin, em 7 de dezembro de 2021, o Kremlin disse ao presidente dos EUA que “a Rússia está seriamente interessada em obter garantias confiáveis e legalmente fixadas que excluam a possibilidade de expansão da OTAN para o leste e o envio de sistemas de armas ofensivas para estados adjacentes à Rússia”. Nenhuma garantia veio de Washington. As conversas desandaram.

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O histórico demonstra que Washington rejeitou as iniciativas de Macron, bem como as súplicas de Zelensky e Putin para resolver as questões por meio do diálogo diplomático. Até quatro dias antes da invasão russa, Macron seguia em seus esforços para impedir uma escalada do conflito. Àquela altura, o apetite por negociações em Moscou havia diminuído, e Putin rejeitou os esforços de Macron.

Uma política externa europeia independente simplesmente não era possível (como Macron havia sugerido e o ex-líder da União Soviética, Mikhail Gorbachev, tinha proposto em 1989, quando tratando de sua visão para uma “casa europeia comum” que se estenderia do norte da Ásia até a Europa). Tampouco um acordo com a Rússia era viável, se ele significasse que as preocupações russas seriam levadas a sério pelo Ocidente.

Os ucranianos estão pagando um preço terrível pelo fracasso em garantir negociações sensatas e razoáveis ​​de 2014 a fevereiro de 2022 – que, para começar, poderiam ter impedido a invasão russa, e, uma vez que a guerra havia se iniciado, poderiam ter posto um fim nela. Todas as guerras terminam em negociações, mas, para tanto, as negociações para acabar com as guerras precisam poder recomeçar.

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